Herança do Governo de Costa será no sistema político e não na economia
A um ano do fim do mandato, o Governo deixa para a História, de acordo com académicos ouvidos pelo PÚBLICO, um novo tipo de aliança parlamentar à esquerda e mudanças nos partidos. Mas na economia os sucessos “são muito exagerados”.
A estreia de uma aliança parlamentar à esquerda, que não inclui o partido mais votado mas que trouxe mudanças dentro do PS, do BE e do PCP, é a herança mais significativa que o actual Governo deixará para a História. Já a situação de equilíbrio das contas públicas e os resultados económicos obtidos pelo executivo não são valorizados pelos dois académicos ouvidos pelo PÚBLICO e que fazem uma abordagem à actualidade baseada na sua formação histórica: Manuel Villaverde Cabral, investigador do Instituto de Ciências Sociais e ex-vice-reitor da Universidade de Lisboa, e Rui Bebiano, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e director do Centro de Documentação 25 de Abril.
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A estreia de uma aliança parlamentar à esquerda, que não inclui o partido mais votado mas que trouxe mudanças dentro do PS, do BE e do PCP, é a herança mais significativa que o actual Governo deixará para a História. Já a situação de equilíbrio das contas públicas e os resultados económicos obtidos pelo executivo não são valorizados pelos dois académicos ouvidos pelo PÚBLICO e que fazem uma abordagem à actualidade baseada na sua formação histórica: Manuel Villaverde Cabral, investigador do Instituto de Ciências Sociais e ex-vice-reitor da Universidade de Lisboa, e Rui Bebiano, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e director do Centro de Documentação 25 de Abril.
Do ponto de vista político, Villaverde Cabral admite que “o exercício de governo de frente popular é uma experiência que pode ficar na História”. E explica que “António Costa tinha de o fazer, porque se não o fizesse, desaparecia politicamente”. Além disso, defende, “Cavaco Silva e Passos Coelho são de total rigidez e incapacidade de adaptação e não conseguiram encontrar uma solução alternativa” por falta de flexibilidade. “Nem que tivessem de esperar pela posse do novo Presidente que convocasse eleições. Em Espanha, Sanchez está a fazer isso, a adiar uma solução.”
Rui Bebiano destaca várias mudanças no perfil político da democracia em Portugal que poderão ficar para o futuro. “Foi a primeira experiência da II República assente numa maioria parlamentar, mas não no partido mais votado”, afirma, considerando que “é uma nova possibilidade democrática em Portugal que é normal no norte da Europa”.
“Reformulação da esquerda”
Outra novidade detectada por Bebiano é “a reformulação da esquerda política” que estabelece a três níveis. O primeiro é o “desbloqueio da resistência atávica que dividia a esquerda desde antes do 25 de Abril”, explica, sublinhando: “É a primeira vez que os partidos à esquerda se aceitam como parceiros numa discussão séria, com desconfiança menor.” O segundo nível desta mudança, encontra-o Bebiano “dentro dos próprios partidos” que assinaram os acordos de governação. Isto porque, defende, “há sectores dos três partidos que não estão a conviver tão bem com as decisões das direcções”.
Mesmo dentro do PS “há um sector que não gosta” desta solução, regista. Mas “também no BE” e sobretudo “no PCP”, já que entre os comunistas há “um conjunto de posições tomadas a nível parlamentar” que provocam “no terreno da luta de rua e sindical uma atitude diferente”. E conclui: “Estou convencido de que o equilíbrio se vai manter, até porque há interesse em manter a relação com o poder. Mas é uma dinâmica da qual todos os partidos vão sair transformados.”
A “reformulação da esquerda” que Bebiano salienta passa também pelo surgimento de uma “noção de moderação como princípio do jogo político”, que atinge os três partidos. Ou seja, há “a necessidade de encontrar soluções que permitam os acordos parlamentares” e em que “a moderação substituiu o confronto”.
O director do Centro de Documentação 25 de Abril destaca ainda o facto de “nestes três anos ter acontecido uma espécie de superação do estado de depressão colectiva”. E explica: “Não sabemos do êxito ou não desta solução no futuro. Mas há três anos vivíamos na ideia de que não havia alternativa. Tudo era mau e ia ser pior. Não víamos saída para a situação. Foi a ideia que se criou e foi talvez o pior erro de comunicação do anterior governo. Hoje, essa noção foi ultrapassada. Existe uma dimensão de esperança no futuro e um clima social mais optimista.”
Nos últimos três anos, há ainda um fenómeno político que Bebiano considera “curioso” e que, pensa, será referenciado no futuro. Trata-se da “aparente contradição” que advém do “equilíbrio entre a esquerda parlamentar” e do facto de, “nestes anos, ter havido maiores índices de reivindicação e de greves”. E conclui: “Parece contraditório. Há a necessidade de manter o Governo, mas este merece distância. Quer os sindicatos da oposição, como o dos enfermeiros, quer a CGTP têm necessidade de marcar o calendário. A luta sindical surge como mais exequível.”
Por fim, Bebiano aponta uma questão que, diz, “não foi resolvida” mas sim “agravada: a relação com a Europa”. O historiador salienta que “esta questão tem sido afastada do debate, tem sido empurrada com a barriga” pelos parceiros de aliança parlamentar que governa. E sublinha que “saber se e como se vai resolver as divergências sobre a União Europeia não é prioritário, e não o é porque é a questão que levanta mais problemas à solução de governo”.
Assim, hoje, no poder “convivem o europeísmo do PS, a posição soberanista do PCP e as objecções soberanistas do BE”. E Bebiano conclui: “É engraçado que, na Convenção do BE, Catarina Martins pôs cinco condições para um novo acordo, mas acrescentou depois mais uma sexta: o fim do Tratado Orçamental. Foi assumido como importante, mas não como uma condição em conjunto com as outras. É a questão que podia suscitar um conflito inultrapassável com o PS e é posta à parte.”
“Muito exagerados”
Fora a dimensão política, o que é visto como o sucesso económico do Governo de Costa não é referido por nenhum dos dois académicos ouvidos pelo PÚBLICO como algo que fique para a História. Nem o menor défice em Democracia, nem a presidência do Eurogrupo, nem as novas tecnologias, com a Web Summit.
“Os alegados sucessos económicos do Governo são muito exagerados, nada faz pensar que o anterior governo, depois de 2015, não tivesse os mesmos resultados ou até melhores”, defende Villaverde Cabral, para quem o último ano do mandato está a ser “preparado”, como “é normal”. “Qualquer outro primeiro-ministro o faria, só se não pudesse, como aconteceu com o anterior primeiro-ministro que não tinha folga.”
Sem negar a importância da “diminuição do défice”, o sociólogo e historiador adverte que este “é o único compromisso europeu que o Estado português não pode deixar de cumprir. O Governo sabe o que se passou em 2010 e o que aconteceria se tal se repetisse. Seria a quarta vez, e sempre em governos socialistas”. E sublinha: “Qualquer um faria o mesmo, é a conjuntura da saída da crise.” Villaverde Cabral considera mesmo que Portugal está “completamente entregue à União Europeia”, onde “não é possível uma repetição do que aconteceu em 2011, depois da Grécia e do Brexit.” E, irónico, afirma: “Podem é os [países] mais ricos sair por cima, fazer um upgrade, mas aí, Portugal acaba. Ficaremos enfeudados aos espanhóis.”
Ausência de reformas
O ex-vice reitor reconhece que “a situação internacional é periclitante” e que, “comparativamente, Portugal está bem, sobretudo quando tudo está como está: o Brexit, Trump, o Brasil, a Espanha no impasse, a Itália que pode rebentar com a Europa”. Mas puxando a reflexão para Portugal, frisa que a dívida externa estava em 126,2% do PIB no final de 2017, para lembrar que o Governo de Costa “diminuiu os juros, trocou dívida cara por mais barata, mas o governo de Passos já tinha feito isso.” Conclusão: “Estamos tão mal preparados como em 2011. Não foram feitas reformas e temos a mesma estrutura de Estado pesada que tínhamos.”
Villaverde Cabral defende que, com o actual executivo, “não foram feitas reformas no Estado, mas elas também não existiram com o anterior governo. Costa reverteu tudo, mas mesmo Passos não reformou, porque o então líder do CDS, Paulo Portas, não deixou”. Assim, conclui que “a situação do país é de estagnação” e a expressão desse bloqueio é a abstenção, para a eleição do Presidente da República a abstenção foi quase de 50%”. Contundente, diz: “Somos uma democracia clientelar e de gosto duvidoso.”
Indo mais longe, o historiador e sociólogo afirma mesmo que “Portugal está pior do ponto de vista estrutural interno” e que “o Estado está diminuído, daí os incêndios”. Defende, aliás, que “as pessoas vão levar tempo a relacionar os desastres da protecção civil, os incêndios de 2017, com a falta de estrutura do Estado”. Isto, porque, neste momento, “há muito envolvimento emocional, uns acham que o Governo é responsável por tudo porque não gostam dele, outros atribuem à má sorte”. Mas frisa: “Há colegas meus que defendem que foi aí que Costa perdeu a possibilidade de ter maioria absoluta.”
Manifestando o seu cepticismo sobre a herança económica positiva do Governo de Costa, Villaverde Cabral sublinha que “os problemas do país permanecem”. No que se refere às desigualdades, cita os estudos de Carlos Farinha Rodrigues, que “mostram que a polarização entre os mais pobres e os mais ricos não se atenuou”. Salienta que “a ocultação de rendimento atinge 20% a 25%” e que, “do ponto de vista económico, não recuperámos a perda”. Portugal está “mais ou menos como em 2011, no que se refere ao PIB per capita”, sendo que “a carga fiscal é muito alta”. Mais: “a baixa produtividade de Portugal, comparada com outros países, continua”, assim como “permanece o peso do Estado Social”.
Já sobre o peso real do crescimento da economia, Villaverde Cabral lembra que “Portugal tem problema de crescimento muito antigo” e que “o ciclo actual de baixo crescimento vem desde o governo de António Guterres”. Além de que “ninguém fez crescer mais o Estado Social em Portugal do que Cavaco Silva”.
Isto, num país em que prossegue o “reforço estatal”, com “um aumento do emprego no Estado e nos prolongamentos do Estado”. A consequência é, para o antigo vice-reitor, “a degradação dos serviços sociais”. Centrando-se no exemplo da saúde, que estuda há duas décadas, afirma: “Temos assistido à progressiva privatização do sistema de saúde. Há mais de vinte anos, o recurso a privados que representava 8% agora é de 25% ou mesmo 30%. E as pessoas continuam a pagar a saúde ou directamente ou através do IRS.”
Ao fim de três anos de Governo, na perspectiva dos dois académicos ouvidos pelo PÚBLICO, para a História Costa deixa a inovação na estratégia de alianças e as alterações que esta provocou no sistema político.