Ucrânia instaura lei marcial para responder a "agressão" russa
Kiev e Moscovo trocaram acusações acerca do confronto entre embarcações de dois países ao largo da Crimeia. Aliados ocidentais tentam baixar tensão e exigem à Rússia a libertação dos marinheiros detidos.
A tensão entre a Rússia e a Ucrânia subiu para novos níveis depois do episódio que culminou com a apreensão de três navios da Marinha ucraniana pelas autoridades russas no domingo. Em Kiev, as forças militares foram postas em alerta máximo e foi decretada uma lei marcial com efeitos limitados. Os dois lados acusam-se mutuamente e estão mais longe do que nunca de uma solução para o abismo que os separa desde 2014.
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A tensão entre a Rússia e a Ucrânia subiu para novos níveis depois do episódio que culminou com a apreensão de três navios da Marinha ucraniana pelas autoridades russas no domingo. Em Kiev, as forças militares foram postas em alerta máximo e foi decretada uma lei marcial com efeitos limitados. Os dois lados acusam-se mutuamente e estão mais longe do que nunca de uma solução para o abismo que os separa desde 2014.
A União Europeia, os EUA e a NATO juntaram-se para condenar a Rússia, e exigiram a devolução dos navios ucranianos e a libertação dos 24 marinheiros detidos na Crimeia. Mas de Moscovo apenas ouviram acusações dirigidas às autoridades ucranianas e aos seus aliados ocidentais.
A reunião de emergência do Conselho de Segurança das Nações Unidas foi o palco que melhor representou as dificuldades de um entendimento. Perante a ausência de uma reacção explícita do Presidente norte-americano, Donald Trump, foi a embaixadora Nikki Haley a denunciar “a violação revoltante da soberania do território ucraniano”. “Como o Presidente Trump disse muitas vezes, os Estados Unidos seriam favoráveis a um relacionamento normal com a Rússia, mas acções ilegais como esta continuam a tornar isso impossível”, afirmou Haley.
O embaixador-adjunto russo, Dmitri Polianskii, garantiu que a Rússia “não deu o primeiro golpe, mas sabe como proteger-se” e acusou o Presidente ucraniano, Petro Poroshenko, de ter orquestrado o episódio com fins eleitorais. “Isto trata-se de cancelar as eleições [presidenciais marcadas para Março do próximo ano], apesar de todas as garantias de Poroshenko”, afirmou o diplomata.
A NATO também reuniu de urgência e o secretário-geral, Jens Stoltenberg, garantiu o “apoio total à integridade territorial e à soberania da Ucrânia”, apesar de não integrar a Aliança Atlântica. Garantias semelhantes foram dadas por Berlim, Londres e Bruxelas.
Confronto no mar
Os dois lados oferecem versões diferentes sobre o que se passou no domingo, quando três embarcações da Marinha ucraniana (dois navios de pequeno porte e um rebocador) foram apresadas pela Armada russa, que também disparou contra os navios. Foram detidos 24 tripulantes, seis dos quais ficaram feridos. A frota ucraniana tinha saído de manhã do porto de Odessa, no Mar Negro, e tinha como destino Mariupol, no Mar de Azov, o que obriga a uma passagem obrigatória pelo estreito de Kerch, entre a Crimeia e a Rússia.
Foi quando entrava nas águas territoriais da Crimeia, administradas pela Rússia desde a anexação da península em 2014, que a frota foi abordada pelas forças russas. Segundo o FSB, os serviços secretos russos, os navios ucranianos não notificaram a Marinha russa, ignoraram os tiros de aviso e apontaram a artilharia na direcção das embarcações russas. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, garantiu que “o lado russo agiu em respeito tanto da lei doméstica como internacional”.
O Governo ucraniano disse que os seus navios respeitaram as normas internacionais e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Pavlo Klimkin, afirmou tratar-se “de actos de agressão planeados”.
Lei marcial na Ucrânia
Em resposta às detenções, o Parlamento ucraniano aprovou esta segunda-feira a introdução da lei marcial, embora com várias limitações para não pôr em causa a realização das eleições presidenciais e legislativas marcadas para 31 de Março. O regime de excepção irá vigorar durante 30 dias e será aplicado apenas às zonas do país “sujeitas à agressão russa” – ou seja, as áreas na fronteira leste e na costa do Mar de Azov.
A introdução da lei marcial – cuja aplicação restringe fortemente as liberdades individuais dos cidadãos, como o direito de manifestação, para além de impedir a realização de eleições e até de campanha eleitoral – gerou muita controvérsia em Kiev. A oposição a Poroshenko, liderada pela ex-primeira-ministra e candidata à presidência Iulia Timochenko, a acusá-lo de tentar explorar a situação para adiar as eleições. Os índices de aprovação do actual chefe de Estado são baixíssimos e é mais do que provável que tenha uma votação inexpressiva.
Uma das linhas de argumentação de Moscovo também apontou o dedo a Poroshenko, acusando-o de ter promovido o confronto no estreito de Kerch para beneficiar politicamente.
O analista do Instituto de Cooperação Euro-Atlântica, um think-tank sedeado em Kiev, Andreas Umland, não acredita que qualquer adiamento pudesse funcionar a favor do líder ucraniano. “O problema para Poroshenko é que nos últimos quatro anos não houve qualquer vitória para a Ucrânia. E aquilo que Poroshenko necessita é de uma vitória, e não uma nova escalada”, disse Umland ao PÚBLICO, por telefone.
Mar turbulento
Há meio ano que o Mar de Azov se vinha tornando em mais uma arena de conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Em Março, um navio pesqueiro da Crimeia foi detido pelas forças ucranianas por navegar com a bandeira russa – Kiev não reconhece a soberania russa sobre a península. Moscovo, que com a anexação passou a controlar efectivamente os dois lados do estreito de Kerch, respondeu com a militarização rápida da região, redireccionando cinco navios da sua frota no Mar Cáspio para o local.
Desde então, mais de uma centena de embarcações civis ucranianas foram apresadas, numa tentativa, segundo Kiev, de asfixiar economicamente os portos de Berziansk e Mariupol. A Ponte da Crimeia, que liga os dois lados do estreito, inaugurada em Maio por Vladimir Putin, também impede o trânsito dos navios de maior dimensão.
Um tratado assinado em 2003 pela Ucrânia e pela Rússia estabelece o regime de partilha das águas territoriais entre os dois países, mas a anexação da Crimeia parece ter feito deste entendimento letra morta. “A Rússia não reconhece nenhum tratado assinado com a Ucrânia antes de 2014 [ano em que o Presidente Viktor Ianukovitch foi deposto], porque diz que nesse ano um novo Estado emergiu e esses tratados já não são válidos”, disse Umland.
O analista diz que a pressão russa tem sido feita de forma “subtil”. “A Rússia não está a fazer um bloqueio de larga escala dos portos ucranianos, mas está a prejudicar o comércio.”