O intimismo de Tim Bernardes e Saxophones iluminaram a Avenida
Na segunda noite de Super Bock em Stock, a Avenida da Liberdade, em Lisboa, foi contaminada pela quietude radical do brasileiro Tim Bernardes e dos americanos The Saxophones.
Foi como estar no quarto deles. O brasileiro Tim Bernardes trouxe a guitarra, o piano e um candeeiro de mesa para palco, o Tivoli envolto na escuridade, imerso naquelas canções cheias de alento, projectadas por uma voz imensa.
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Foi como estar no quarto deles. O brasileiro Tim Bernardes trouxe a guitarra, o piano e um candeeiro de mesa para palco, o Tivoli envolto na escuridade, imerso naquelas canções cheias de alento, projectadas por uma voz imensa.
Por sua vez, os californianos The Saxophones levaram cantigas de um desnudamento radical ao cinema São Jorge, apenas a voz, os acordes soltos de uma guitarra e aquela percussão mínima escoltada por linhas de baixo. Lá fora, na Avenida da Liberdade iluminada, chovia, e a última coisa que apetecia era sair dali, do fundo das palavras, daquela forma cúmplice e generosa, quase silenciosa, de comunicar connosco.
Foram deles os dois momentos mais emocionantes da segunda noite do Super Bock em Stock. Claro que também houve festa — e muitos problemas técnicos — com Jungle, U.S. Girls ou Dino d’Santiago, mas por uma vez deixemos de lado o lugar-comum de que em clima de festival não é possível criar intimismo. Claro que é. Haja talento e canções para isso. Tim Bernardes tem as duas coisas. E carrega consigo também aquela coisa meio indefinível chamada verdade, que por norma aflora em quem não receia “se conhecer, estar só, muito vivo”, haveria de dizer.
As canções, disse ele, foram compostas, à noite, no silêncio do quarto. E foi como se o Tivoli repleto tivesse tido a oportunidade de voltar a vê-lo nesse ambiente, enquanto ele ia interagindo de forma segura e divertida com o público. De repente, uma multidão havia invadido o seu quarto e ele quis recebê-la condignamente. Apresentou-nos canções de amor e de desamor, todas simples, sensíveis e transcendentes, com cada palavra ou nota em suspenso, como a respiração do público que, silencioso, apenas no final, irrompia em aplausos. O que é interessante nele é que apesar do traçado emocional das canções ser muito semelhante, nunca se repete.
Há versatilidade na forma como estica ou reduz a voz, existem subtilezas na maneira como aborda o tecido instrumental, tanto optando por investidas mais aveludadas ao piano ou encorpadas na guitarra eléctrica. Pelo meio trouxe várias versões (Black Sabbath, Gilberto Gil ou da sua banda O Terno) e canções como A história mais velha do mundo, com o som do piano a envolver palavras simples (“O que a gente quer é gostar de alguém / E quer que esse alguém goste da gente também”), ditas por muitos outros, mas não daquela forma, naquele cerimonial intimo, que acabou como havia começado, com Recomeçar, os dedos acariciando o piano, a voz expandindo-se pelo espaço, num momento arrepiante. No final, uma estrondosa ovação. Chama-se Tim Bernardes. Lançou o ano passado o álbum a solo Recomeçar. E está pronto para voltar.
Ode ao romance
O mesmo deverá acontecer com o casal Alexi Erenkov e Alison Alderdice, os The Saxophones, acompanhados pelo baixista Richard Laws. No caso dos americanos, quem não ficou nas primeiras filas do cheio São Jorge é capaz de ter perdido alguma coisa. É que a sua música é de uma quietude extrema. Poder-se-ia pensar que o romantismo e a voluptuosidade de parte das suas canções (do EP If You’ re on the Water de 2016, e do álbum deste ano, Songs Of The Saxophones), seria torneada por mais dinamismo ao vivo, mas nada disso. Pelo contrário. Ficou a ideia que, em palco, o minimalismo é ainda mais austero. Por vezes pensa-se nos Young Marble Giants, grupo dos anos 1980 de vida breve, que apostava em instrumentação mínima, originando uma pop solene, fora de tempo.
No caso dos Saxophones chega a ser hipnótico vê-los, esforçando-se por manter a combustão lenta, com a percussão apenas afagada, enquanto o dedilhar da guitarra é amplo e a voz grave de Alexi vai convocando humanidade, mas sem que se perceba exactamente se regressamos ao passado, ou se estamos afinal imersos numa possibilidade de futuro, onde volta a existir espaço e tempo para que a comunicação seja possível. No final, em Just you — original de Badalamenti da série de TV Twin Peaks — ela sai da bateria e junta-se ao marido na frente do palco e ali ficam os dois, e o público com eles, magnetizados por aquela ode ao romance.
Ficar do início ao fim, apesar dos acidentes
Estes foram os concertos em que apeteceu ficar do início ao fim. De outros, ficaram impressões. Algumas delas fortes, como a folk distintiva, tão sonhadora quanto sombria, dos portugueses April Marmara, de Bia Diniz, quatro mulheres e um homem em palco, no ex-Maxime, para uma música que respira uma inquieta serenidade, tocada por palavras que têm essa capacidade de ser tão introspectivas quanto universais. Com uma ressonância algo semelhante merece também destaque o americano Conner Youngblood que, na sala mais pequena do São Jorge, exibiu boas canções folk, envoltas por electrónica ambiental, que por vezes mais parecem esboços, mas que procuram sempre um ângulo muito singular.
Para aproximações mais fulgurantes à realidade era preciso contar com o projecto U.S. Girls, desenvolvida pela americana Meg Remy a residir no Canadá, que, acompanhada por um naipe de sete cúmplices, se apresentou no Coliseu. O centro do concerto foi o magnífico álbum deste ano, In A Poem Unlimited, mas nem tudo correu bem, já que a qualidade do som foi sofrível. Mas deu para perceber que a sua pop elaborada, com laivos de psicadelismo, jazz-funk ou electrónicas, tem músicos e performers à altura, num todo teatralizado que resulta surpreendente para quem toma contacto com a sua veia artística pela primeira vez. Quem acha que valem mesmo a pena — é o nosso caso — e ficou com a ideia de que a coisa não funcionou totalmente no Coliseu, tem este domingo, pelas 19h, uma hipótese de absolvição, já que as U.S. Girls vão actuar na galeria ZDB.
Também acidentado foi o concerto dos britânicos Jungle, com várias interrupções por motivos técnicos. Eram de longe o nome mais conhecido para a maior parte e o Coliseu a abarrotar comprovou-o, com muita gente de fora, porque nas restantes salas também já haviam terminado os concertos. Quem já os viu em palco inúmeras vezes, como no nosso caso, sabe que são fiáveis e eficazes. Mas a verdade é que o último álbum, For Ever (2018), está a léguas do primeiro e isso acaba por se fazer sentir no resultado final. São ainda as canções do primeiro registo homónimo de 2014 que fazem a festa junto de um público que se balançou ao som de vozes soul e elementos funk, com sete músicos em palco a mostrarem sentido de espectáculo, mas em muitas alturas pressente-se que o som agora está mais domesticado e a vibração dos tempos recentes já nem sempre mora lá.
Fica aliás a ideia de que faltaram à edição deste ano do festival nomes mais estimulantes em termos de cabeças-de-cartaz, embora seja verdade que a identidade do festival faz-se de muitas variáveis, entre elas a aposta em figuras a irromper, como aconteceu com o português Pedro Mafama na sexta-feira, ou em ascensão, como no caso de Tim Bernardes e dos The Saxophones.