Indignação pública contra a violência doméstica ainda é “insuficiente”
Rui do Carmo, coordenador da equipa que analisa o que correu mal em situações de homicídio, diz que há áreas geográficas com mais casos e que “está nas mãos da população” exigir melhores respostas.
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É urgente estudar as sentenças dos tribunais de primeira instância nos casos de violência doméstica para concluir se os tribunais portugueses têm ou não “mão leve” para com os agressores, aponta Rui do Carmo, coordenador da equipa criada há três anos para a analisar o que correu mal em casos de homicídio em contexto doméstico ou de intimidade.
Quanto ao alegado recurso excessivo à suspensão da pena, lembra que o importante seria analisar se “as condições de suspensão da pena estão a ser “efectivamente cumpridas e fiscalizadas”. Porque ninguém há-de querer “transformar o país numa colónia penal” e a suspensão da pena até pode ser benéfica em termos de reinserção do agressor, o procurador da República jubilado diz-se à espera do manual de boas práticas que a Procuradoria-Geral da República se comprometeu a fazer para uniformizar a actuação dos tribunais nestes casos.
A legislação que existe é suficiente mas está dispersa. Falta ainda, aponta nesta entrevista a propósito do Dia para a Erradicação da Violência Doméstica, que se assinala este domingo, que a opinião pública se indigne, forçando o Estado a uma resposta mais eficaz perante um flagelo que, só este ano, já matou 24 mulheres.
A incomunicabilidade entre as diferentes entidades chamadas a intervir é o grande denominador comum aos vários casos?
Sim. Mesmo quem estuda estas matérias percepciona que o problema da desarticulação do sistema acontece com muita frequência. Fizemos essa recomendação no terceiro relatório, a partir da análise retrospectiva de um caso em que a Saúde interveio, a Segurança Social interveio, as forças de segurança intervieram, a Justiça interveio, mas depois se concluiu que não houve diálogo.
Como é que se instauram esses vasos comunicantes entre os diferentes intervenientes?
Neste momento, resultante também do contributo que nós demos, estão previstos protocolos de actuação que visam que as várias entidades possam saber com quem hão-de-comunicar e como é que hão-de interagir entre elas. Temos que obrigar as entidades a contactarem entre si, a noticiarem os factos que conhecem e a colaborarem. E tem que haver uma entidade que coordene essa actividade.
Recomendaram que a Procuradoria-Geral da República (PGR) elaborasse um documento hierárquico de boas práticas. Isso foi acolhido?
Já há um despacho nesse sentido da senhora procuradora-geral. A doutora Joana Marques Vidal nomeou um grupo de trabalho, definiu o caderno de encargos e até deu um prazo para lhe ser apresentada a primeira proposta.
Que esperança deposita neste manual de boas práticas?
Espero que se consiga uma actuação mais uniforme e eficaz do Ministério Público nas situações de violência doméstica. O que temos são algumas directivas da PGR relativamente à violência doméstica mas que são "atomísticas", o que faz com que sejam menos eficazes. Deve haver um único instrumento de trabalho que sintetize o que deve ser a intervenção do Ministério Público e que defina boas práticas de actuação. Um documento assim tem a virtualidade de uniformizar procedimentos com uma fasquia já elevada em termos de qualidade de intervenção.
E as restantes recomendações estão a ter acolhimento?
Na área da Saúde, o nosso último relatório, que incide muito sobre a actuação das entidades de Saúde, foi grandemente divulgado pelos serviços. E isso significa que o que lá está escrito deve ser tomado em boa conta na prática futura. Na GNR as normas de actuação nesta área estão a ser reponderadas, aperfeiçoadas, à luz das nossas recomendações.
Referiu terem detectado zonas geográficas do país mais vulneráveis à ocorrência destes homicídios. Que zonas são essas e porquê?
No segundo relatório [que analisou um femicídio ocorrido em Valongo, 37 dias depois de a mulher se ter queixado ao Ministério Público], detectámos de facto a necessidade de se planearem acções preventivas e de informação em áreas geográficas de menor implantação de entidades no terreno, nomeadamente de entidades que criem opinião desfavorável a esses comportamentos. Fruto dessa falta de intervenção, a própria comunidade adoptou uma atitude passiva. E são zonas, por outro lado, onde há uma escassa capacidade de intervenção das forças policiais, por carência de recursos especializados.
É absurdo presumir que há maior incidência deste tipo de homicídios em zonas rurais?
Não me referi a homicídios. Referi-me a uma maior incidência de comportamentos de violência doméstica, ou seja, de padrões de maior desigualdade nas relações de género. Não falei em homicídios até porque, infelizmente, não temos um mapa dos homicídios. Os relatórios anuais [de Segurança Interna] não fazem esse trabalho. Portanto, não podemos dizer que há mais homicídios ali ou acolá. Mas podemos dizer que há zonas onde, do ponto de vista cultural, as relações de desigualdade estão mais enraizadas na comunidade.
Que reacção lhe suscitam os acórdãos que desculpabilizam o agressor, como aquele que, a partir da Bíblia, invocava o adultério da vítima como atenuante ou ainda aquele em que o facto de a vítima estar inconsciente no momento da violação ajudou a relevar a gravidade do crime?
Situações anómalas hão-de existir sempre. Eliminar completamente estas situações que nos deixam a todos desconfortáveis é difícil. Penso que devemos continuar a fazer formação. E aqui é muito importante a discussão cívica. A justiça é, diz a Constituição, administrada em nome do povo. Isto significa que o povo tem não só direito a assistir aos julgamentos mas também a pôr em causa e a avaliar as decisões judiciais. Este escrutínio público da justiça é muitíssimo importante.
Pode-se concluir que os tribunais têm “mão leve” com os agressores ou estes disparates, sem necessário reflexo na pena aplicada, decorrem do que alguém chamava há tempos o “avassalador dever de fundamentação” das sentenças?
Acho que não há nenhum mal que possa ser atribuído às sentenças por haver dever de fundamentação. O dever de fundamentação é uma exigência da justiça democrática: os tribunais têm que dizer as razões por que tomaram aquela decisão.
E não se exagera cá em Portugal?
Sim, mas isso já não é culpa da lei. A fundamentação numa sentença não obriga a dizer disparates. E não há nenhuma métrica para a fundamentação. Ninguém é obrigado a escrever 50 páginas sobre uma coisa e 30 páginas sobre outra coisa. Portanto, dizer que tais disparates decorrem do dever de fundamentação é uma falácia absoluta. Mas também se tem avançado no tratamento destes casos. Aliás, era importante ver como é que está a ser tratada a violência doméstica nos tribunais de primeira instância. É analisando as decisões de primeira instância que se vê o estado da arte.
Os tribunais tendem a ter “mão leve” para com os agressores, como vêm denunciando alguns investigadores?
Mas acho muito simplista aquela ideia dicotómica segundo a qual se há prisão efectiva foi-se afirmativo se não há prisão efectiva não se foi afirmativo. Pode-se dizer que, na grande maioria dos casos, as penas são de prisão suspensa na sua execução, ou com regime de prova ou com obrigações a cumprir. Mas como é que é feito o regime de prova? Como é que é acompanhado e fiscalizado o cumprimento das obrigações? Não temos dados. E sem estes dados não podemos saber se as condições de suspensão da pena estão a ser cumpridas e fiscalizadas e se contribuem para a modificação do comportamento daquele agente, para além do aspecto de prevenção geral. Era importante que fizéssemos um estudo sobre isso. Podemos alegar que são poucos os [agressores] que são presos, mas certamente que nenhum de nós quer transformar o país numa colónia penal. Até porque sabemos que, em muitos casos, se ganha mais em ter o arguido com pena suspensa com regime de prova do que em colocá-lo na prisão, do ponto de vista da sua reinserção.
O Governo está a ser suficientemente enfático na forma como procura assegurar o dever de protecção das vítimas?
É importante criar opinião pública sobre a necessidade de prosseguir este combate e de o Estado disponibilizar meios para o fazer. Essa opinião pública de exigência de acção eficaz é condição para que os níveis de empenho se reforcem. Acho que as forças sociais devem ser mais incisivas quanto à necessidade de afectar recursos a esta área e de se poder contribuir dessa forma para uma resposta eficaz a este flagelo. Está sempre nas mãos da população influir naquilo que são as políticas públicas. E aqui penso que, do ponto de vista dos cidadãos, há ainda uma insuficiente indignação. É importante que essa indignação aumente para que as pessoas se mobilizem elas próprias para ajudar a combater este fenómeno, coisa que não se tem visto muito.