“Houve um falhanço para explicar o que significa a Europa”

O co-fundador da European Alternatives alerta para o perigo de os partidos políticos tradicionais europeus deslocarem-se para a direita para recuperar eleitores aos populistas da extrema-direita. E reafirma a importância da resistência dos cidadãos para não perder de vista o bem comum europeu.

Foto
"A nossa classe política actual não vai lidar com o problema [europeu] a não ser que sejam mesmo obrigados pelos cidadãos", afirma Niccolò Milanese Nelson Garrido

Niccolò Milanese é co-fundador da organização European Alternatives — torce um pouco o nariz à expressão think tank, sorri à palavra rede —, que procura promover a reflexão entre indivíduos e organizações da sociedade civil. Iniciou o European Alternatives em 2007 com o amigo Lorenzo Marsili — que mais tarde esteve na fundação do DiEM25 — e hoje o grupo tem escritórios em Londres, Paris, Roma e Berlim, promovendo eventos e debates em outras cidades, incluindo Lisboa. Em conjunto, como europeus, por todo o continente, “vamos ter que inventar novas formas de fazer política”, diz.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Niccolò Milanese é co-fundador da organização European Alternatives — torce um pouco o nariz à expressão think tank, sorri à palavra rede —, que procura promover a reflexão entre indivíduos e organizações da sociedade civil. Iniciou o European Alternatives em 2007 com o amigo Lorenzo Marsili — que mais tarde esteve na fundação do DiEM25 — e hoje o grupo tem escritórios em Londres, Paris, Roma e Berlim, promovendo eventos e debates em outras cidades, incluindo Lisboa. Em conjunto, como europeus, por todo o continente, “vamos ter que inventar novas formas de fazer política”, diz.

Milanese - que com Marsili publicou este ano o livro “Cidadãos de lado nenhum” - esteve em Serralves, no Porto, esta segunda-feira, para participar no ciclo de conferências “Utopias Europeias”, onde se reflectiu sobre cidadania europeia.

Em conversa com o PÚBLICO antes da conferência, este activista fala sobre o “falhanço catastrófico da coordenação europeia” e da “necessidade de uma imaginação europeia colectiva”.

Quais são as propostas do European Alternatives para estas eleições europeias?

Vamos enviar caravanas pelo continente europeu, antes das eleições europeias, para falar com as pessoas. Não tanto sobre as eleições europeias, mas sobre o que é que as preocupa enquanto cidadãos. Não estamos em campanha, porque não somos candidatos. Também não estamos a tentar convencer as pessoas a votar. Queremos que as pessoas vejam a importância das questões europeias para as suas vidas quotidianas, mostrando-lhes como é que os diferentes assuntos que as preocupam estão relacionados com as mesmas questões para outras pessoas em outros países da Europa. Se estão a tentar parar uma exploração de minério no norte da Roménia, explicamos-lhes como é que isso está ligado a campanhas contra a exploração no Mar Adriático. Se estão a melhorar a situação de migrantes, explicamos-lhes como é que isso está ligado ao que outras pessoas estão a fazer pela Europa. Pode haver uma solução europeia para isso. Estamos a tentar, de uma forma muito concreta, usar a oportunidade das eleições para construir solidariedade e entendimento entre cidadãos da Europa. Estamos a fazer isto, e também a preparar o nosso festival, que vai acontecer em Palermo em Outubro.

Depois das eleições.

Exactamente. Vai ser uma oportunidade para avaliar o estado das novas instituições europeias. Talvez haja uma nova Comissão nessa altura. O plano é continuar a resistência.

Nestes 11 anos de European Alternatives, o que mudou na Europa?

Tornou-se claro para nós que havia um grande vazio político na Europa, onde os cidadãos deveriam estar. Quando começámos a European Alternatives, em Londres, ninguém sabia o que é que estávamos a tentar fazer. Dizíamos que nos chamávamos European Alternatives e as pessoas perguntavam "o que é que isso quer dizer". Hoje, dizemos que nos chamamos European Alternatives e as pessoas respondem que isso é exactamente o que precisam, mesmo antes de explicarmos o que significa. E há uma reacção à extrema-direita, a tudo o que está a acontecer na Europa nos últimos dez anos, a crise do euro, o desemprego jovem, o Brexit, por aí fora. Há agora jovens europeus radicais, e isto já não se via nos últimos 60 anos, na história europeia.

Quando diz europeus radicais, fala de radicais progressistas ou de uma ideia radical de Europa?

O que significa ser um europeu radical hoje em dia é ainda indefinido. Certamente não é a mesma coisa que se passava nos anos de 1980 quando se pensava num estado ou federação europeia, mas talvez seja algo mais semelhante a uma "europeidade" radical dos prisioneiros do 2010, Altiero Spinelli e as pessoas da resistência italiana. Os jovens de hoje vêem-se numa posição de resistência, em que nenhuma opção política lhes parece boa. Sentem-se, por um lado, totalmente comprometidos, mas por outro lado não se sentem bem representados. E fortemente ligados a uma ideia de Europa.

A juventude, em particular, não parece identificar-se com estruturas tradicionais como partidos ou mesmo o voto.

Depois da experiência da crise económica e dos movimentos de protesto, Occupy e outros, tentaram ter alguma influência e em alguns aspectos falharam totalmente. [Mas] não concordo que os mais jovens estejam desinteressados nos partidos políticos. Percebem cada vez mais a importância do voto, também. Não me surpreenderia se a afluência ao voto nas eleições europeias for maior. As pessoas estão a perceber como é importante envolverem-se nas instituições, ou então acabam com instituições de que gostam ainda menos. Também em vários países diferentes, em particular à esquerda, há movimentos juvenis fortes a tentar reformar os partidos. Claro que não são todas as pessoas jovens no país, mas há uma fatia suficiente a organizar-se e a tentar transformar a política partidária.

E as próximas eleições? Como se está a lidar com os discursos populistas e nacionalistas?

Antes de mais, não devemos entrar em pânico em relação à extrema-direita. É correcto dizer que existe um perigo de a extrema-direita ganhar uma percentagem grande [de votos], mas não há nenhum perigo, de acordo com as sondagens, de que eles tenham uma maioria, estamos a falar de 15%. E mesmo aí a extrema-direita está dividida em diferentes grupos políticos, pode ser que se reorganizem, mas ainda assim são pequenos.

O verdadeiro perigo é que os grupos políticos tradicionais, em particular o PPE, mas também os socialistas, pensam que têm que usar a linguagem da extrema-direita para ganhar mais alguns votos. Este é o perigo. Porque aí temos os partidos tradicionais, que vão [de facto] compor a maioria do Parlamento, a mover-se cada vez mais para a direita. A extrema-direita está presente e é um perigo, mas não representa as opiniões da vasta maioria dos europeus. A vasta maioria dos europeus está até bastante chocada e preocupada com o facto de a sociedade estar a tornar-se mais e mais racista e colérica. Esta é uma responsabilidade nossa em relação aos políticos. Toda a gente está a falar sobre a Europa agora, o que quase nunca se vê em eleições europeias. E os partidos tradicionais estão a trazer as mesmas campanhas aborrecidas, com os seus partidos políticos nacionais a fazer o mesmo tipo de argumentos sem nenhuma agenda transformadora para a Europa. E temo que não haja tantas novas propostas vindas de novos actores porque é deliberadamente difícil formarem-se novos partidos políticos na Europa. Há algumas tentativas, a European Spring, o Volt. O que gostaríamos que acontecesse era que os principais partidos políticos reparassem na emergência destas novas iniciativas e pensassem que afinal não precisam de andar sempre atrás da extrema-direita.

Diz que as ideias da extrema-direita não são necessariamente apoiadas pela maioria da população. Está-se a dar demasiada atenção a esses discursos?

Não deveríamos estar fascinados com a extrema-direita, e não acho que vão vencer as eleições europeias, mas também temos que reconhecer que a extrema-direita está no poder em alguns países. Claramente, a extrema-direita é um perigo real. E porque é que as pessoas se sentem pressionadas a votar neles? Faltam alternativas credíveis a nível nacional. Há uma combinação de pessoas desesperadas e pessoas genuinamente racistas a votar pela extrema-direita. E as pessoas que não votam pelos partidos estão muito frustradas. Uma das grandes razões para isso é que é impossível apresentar alternativas credíveis. Por exemplo, para a crise migratória — que não é uma crise sobre migração, mas é assim que lhe chamam —, ou para a crise do euro... É impossível apresentar alternativas credíveis para essas coisas a nível nacional. Só podem ser resolvidas através de coordenação europeia, e esta tem falhado nestes últimos dez anos. Houve um falhanço catastrófico da coordenação europeia e de uma imaginação europeia colectiva. Porque é que estas coisas acontecem? É um misto de líderes políticos que infelizmente não estiveram à altera da tarefa histórica com que se depararam - temos que reconhecer isso -, mas também um falhanço na criação de pré-condições na sociedade para uma cooperação europeia real funcionar.

Falta uma esfera pública europeia para pôr as pessoas a pensar "europeicamente"?

Sim, apesar de que falar na falta de uma esfera pública europeia é um pouco abstracto. Há coisas muito concretas que a União Europeia devia ter feito, desde o Tratado de Maastricht [em 1992], e particularmente no contexto do alargamento. No momento em que o muro de Berlim caiu, o que deveria ter sido feito era um grande esforço para explicar aos europeus ocidentais e orientais quem eram os seus novos vizinhos. Um esforço público, a envolver escolas, informação na televisão, líderes políticos a desenvolver discurso para explicar o que é esta nova comunidade. Se não explicarmos às pessoas a comunidade política de que agora fazem parte, é claro que em momentos de crise acontece todo o tipo de incompreensões. Temos que reconhecer que isto falhou na Europa. Um falhanço de responsabilidade intelectual... Não apenas dos intelectuais, apesar de eles também terem tido o seu papel, mas de todas as pessoas em posições de autoridade na sociedade, para explicar o que significa a Europa.

Quais seriam os meios para atingir este pensamento europeu?

Na Europa, temos o luxo de ter tempo para construir uma alternativa radical, que possa tornar a globalização democrática e progressista. Temos sistemas legais relativamente sólidos, temos riqueza relativa na sociedade, temos segurança global contra a guerra ou a fome, e com esse enorme luxo vem uma forte obrigação, em particular para as pessoas em posições de autoridade que falam publicamente, para explicar o que a Europa significa, explicar as obrigações e vantagens que traz para todos nós. Não temos que concordar em tudo, mas temos que admitir que se queremos ter uma capacidade colectiva de mudar o curso da História global num momento em que todas as pessoas reconhecem este perigo, vamos ter que trabalhar juntos, como europeus, por todo o continente. E vamos ter que inventar novas formas de fazer política. No Parlamento Europeu, e até nos parlamentos nacionais.

“Cidadãos de lugar nenhum”. Qual é a ideia do seu livro?

O título do livro vem daquela espécie de insulto que Theresa May, a primeira-ministra britânica, fez em Outubro de 2016, quando disse “se pensam que são cidadãos do mundo, são na verdade cidadãos de lado nenhum”. E o que dizemos no livro é que, se quisermos ler de outra forma o que Theresa May quis dizer, talvez possa haver alguma verdade ali. Mas não a verdade que ela pensa. Porque todos nos tornamos cidadãos do mundo, desde os mais ricos aos mais pobres. Hoje, todas as pessoas estão cientes de que fazem parte de um mundo interconectado onde o que acontece em lugares muito distantes pode ter consequências muito imediatas para elas. Têm reacções muito diferentes a esse facto, mas temos consciência de que esta é uma viragem histórica. Se nos tornarmos cidadãos do mundo, somos ainda cidadãos de lado nenhum, de alguma forma, porque ainda não temos uma agência cívica para ter influência na direcção do mundo onde vivemos.

Falava das questões que nos preocupam colectivamente, como o ambiente, a questão dos refugiados. Como encontrar união nestas questões?

As instituições europeias são das mais poderosas do mundo e, para bem e para o mal, não há como escapar a isso, se se estiver nesta parte do mundo. É muito melhor estar dentro da UE, tentar influenciar a forma como estas instituições muito poderosas funcionam, e perceber que com esta capacidade colectiva, como o maior mercado do mundo que é o que é o mercado único [europeu], podemos ter uma influência enorme sobre a forma como a globalização funciona. Isto é uma conclusão muito concreta. Mas parte dessa conclusão requer compreender que todos temos que trabalhar em conjunto por toda a Europa para fazer isso. Se andamos a lutar uns contra os outros para ter um mínimo de vantagens nacionais e recusarmos cooperar... Nós vimos nos últimos dez anos que isto leva apenas a tentativas de criar muros entre nós que não funcionam. Nós temos a experiência de não-cooperação europeia, e deveríamos perceber a tolice que é termos refugiados retidos em ilhas no Sul da Grécia, mini-empregos na Alemanha pagos a 200 euros por mês, níveis históricos de pobreza no Reino Unido, desemprego jovem maciço em Espanha e em Portugal. Estas são consequências da "descooperação" europeia. Agora, vamos tentar a cooperação europeia?

Veio ao Porto falar sobre a utopia europeia. A cidadania europeia é algo fora do alcance? Estamos mais perto disso, apesar das forças antieuropeias? 

É uma boa pergunta. Penso que a resposta é ambígua. A sociedade está dividida. Há uma tendência para ignorar o vizinho, há uma crescente incompreensão. O que não é o mesmo que ignorância, não é que os alemães não saibam que os italianos estão lá ou que os franceses estão lá. É precisamente por saberem que os outros estão lá que começam a tentar ignorá-los, ou a não ouvi-los devidamente. Há esta espécie de incompreensão crescente, mas por outro lado há uma energia positiva, utópica. Mais e mais pessoas estão a aperceber-se de duas coisas. A primeira, que muitas áreas da política não estão a funcionar de forma isolada na Europa. A segunda, a nossa classe política actual não vai lidar com o problema a não ser que sejam mesmo obrigados pelos cidadãos. Nos últimos dez anos, entre alguns grupos da população europeia tem havido uma reivindicação da cidadania europeia, enquanto antes poderia ser apenas uma coisa escrita no passaporte, agora as pessoas estão a reclamar isso para si mesmas. Com mais força, claro, no Reino Unido, onde há o risco de isso ser retirado, mas também entre outras pessoas. Quando Nicolas Sarkozy tentou expulsar pessoas de etnia cigana de França, muitas dessas pessoas e também associações romani diziam “nós somos cidadãos europeus, temos direito de estar aqui”. Há esta espécie de reivindicação de uma cidadania europeia, independentemente do que as autoridades nos digam. E isto é uma coisa muito positiva.