O dia de abrir as talhas e provar o vinho novo

A Herdade do Rocim, no Alentejo, fez a festa a 11 de Novembro, dia de São Martinho, retomando a tradição da abertura das talhas. Entre portugueses e estrangeiros, foram mais de vinte os produtores presentes. E o vinho jorrou do barro.

Fotogaleria

“No Dia de São Martinho, vai à adega e prova o vinho." É o que diz a tradição e foi o que fizemos no dia 11 de Novembro, saindo de Lisboa debaixo de um dilúvio, a caminho da Herdade do Rocim, na alentejana Cuba, para assistir à abertura das talhas e provar o vinho novo.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

“No Dia de São Martinho, vai à adega e prova o vinho." É o que diz a tradição e foi o que fizemos no dia 11 de Novembro, saindo de Lisboa debaixo de um dilúvio, a caminho da Herdade do Rocim, na alentejana Cuba, para assistir à abertura das talhas e provar o vinho novo.

O Rocim faz vinho de talha desde sempre, mas agora que a tradição está a renascer em força, os enólogos Pedro Ribeiro e Catarina Vieira decidiram organizar o primeiro encontro de produtores nacionais e internacionais de vinhos fermentados ou apenas envelhecidos nas grandes talhas de barro características do Alentejo.

Há no ar um clima de excitação, garrafas ainda sem rótulo, vinhos que foram retirados naquela mesma manhã das talhas, enólogos que estão pela primeira vez a fazer um vinho desta forma. “Tive que dar um passo atrás e desaprender”, diz Tiago Macena, dando-nos a provar um vinho que ainda não está engarrafado. Foi em 2017 que, numa visita ao amigo David, na Amareleja, almoçou em casa do avô deste e provou o vinho da talha.

“Foi o melhor vinho branco que provei no ano passado. Delicioso, tinha volume, era maduro, era alcoólico mas não se sentia o álcool, era supercomplexo. Eu disse: 'você tem que me ensinar a fazer isto'.” O avô do amigo surpreendeu-se com o pedido. “Eu? Eu não sei fazer, meto as uvas no pote e já está.” Tiago lançou-se à aventura e, pelo caminho, teve alguns momentos de angústia. “Quando vi o mosto, pensei ‘o que é que a gente está a fazer?’. Era castanho, opaco, horroroso.”

Mas, com o tempo, as coisas foram evoluindo bem e teve até alguma sorte porque, trabalhando com vinhas de pé franco e raízes mais profundas, escapou às consequências do famoso golpe de calor do início de Agosto, que deu cabo de muitas videiras. Habituado ao Dão, tinha olhado inicialmente para as videiras achando que tinham folhas a mais. “Pensei que ia dar asneira, mas aqui não aparecem doenças, porque é muito seco.”

Foto
Ricardo Bernardo

Percorremos os corredores onde os vários produtores mostram os seus vinhos e as histórias têm todas alguma coisa desse entusiasmo de quem está a experimentar coisas diferentes e a trabalhar com muito menos rede do que é habitual. Há até quem faça coisas tão fora da caixa que acha que os consumidores ainda não estão prontos para elas. É o caso de Virgílio Loureiro, profundo conhecedor da história do vinho, que há vários anos faz experiências para reproduzir a bebida tal como se fazia no tempo dos romanos.

Entregando-nos um copo cheio de aromas inusitados, explica: “Estes são os verdadeiros vinhos romanos de há 2000 anos. Eles não bebiam só vinho puro nem só misturado com água. O vinho estava a meio caminho do medicamento e da bebida." Esperando, curioso, pela reacção de quem prova, prossegue: “Este é para abrir o apetite e para a ansiedade."

No aroma e no sabor sobressaem as especiarias. Virgílio Loureiro confirma, mas não revela quais as que utilizou. “Este chama-se Piteira aromatizado n.º 1 [é feito na Amareleja, com o produtor José Piteira]. Gosta? Não se pode saber o que leva. É um bocado perigoso fazer isto sem conhecimento de causa, tem que se usar tudo com conta, peso e medida, como faria um boticário, até porque o álcool do vinho potencia muitas das substâncias activas das ervas e das especiarias.”

Mais à frente, outro projecto novo, a Adega do Mestre Daniel, que nasceu em Vila Alva da vontade de Daniel Parreira recuperar a adega, e a forma tradicional de fazer vinho, do seu avô, e dar uso às 26 talhas que ali sobreviveram. “O meu avô fez vinho durante trinta anos, depois a adega esteve fechada e era um sonho antigo reactivá-la”, conta. “Queremos manter a tradição que nos foi ensinada pelos nossos pais e avós.”

O adegueiro é pai do Ricardo Santos, sócio de Daniel. “Faz vinho de talha há muitos anos, para ele é muito fácil e nós vamos aprendendo com ele." O resultado é o Branco do Tareco e o Tinto do Tareco e, a partir de Fevereiro, um vinho já certificado como de talha.

É todo um regresso ao passado e um respeito pela história do vinho. Diz Daniel: “O nosso projecto é autêntico, estamos numa localidade que tem vinho desde o tempo dos romanos, fizemos uma exposição na nossa adega em que contamos a história do vinho em Vila Alva, onde temos vinhas centenárias, muito diferentes das aramadas actuais.” A produção é muito inferior, por isso recorrem também a vinhas mais recentes, mas com as castas tradicionais, Diagalves, Perrum, Manteúdo, e a “uva de algibeira, como os nossos avós lhe chamavam, porque como tinha a pele muito rija, podia pôr-se na algibeira” e, no tinto, a Tinta Grossa, por exemplo (além do Moreto, uma das mais usadas para a talha).

Ao lado está António Marques da Cruz, da Quinta da Serradinha, com um rosé saído da talha, que já faz desde 2013. Depois de umas tentativas de fazer rosé em inox, que não correram como esperava, tinha decidido nunca mais fazer rosé. “Depois pensei, tenho lá a talha, deixa ver o que acontece. E gostei”, conta. “A talha prepara os vinhos para serem bebidos muito cedo. Nas tascas do Alentejo já estamos a beber vinho de 2018. Como se dá uma certa oxidação, o vinho arredonda um bocadinho mais cedo e acho interessante essa ideia de beber o vinho do ano no próprio ano.”

Entre os 23 produtores que estiveram presentes no evento, encontram-se projectos com características muito diferentes, desde os grandes como a Adega José de Sousa, a Herdade de São Miguel/Casa Relvas ou a Herdade do Esporão, aos que estão agora a lançar-se no mercado, passando por consagrados com vontade de arriscar.

Foto
Ricardo Bernardo

A enóloga Susana Esteban, que veio ao Rocim mostrar o Procura na Ânfora, de 2017, explica que não queria “um vinho sujo, nem laranja, queria elegância, um vinho sofisticado, mas queria que a talha fizesse esse trabalho”. Sónia Martins, da Lusovini, está a mostrar o Tapada do Coronel Vinho da Talha, feito na serra de São Mamede, Portalegre, que é o primeiro vinho da talha do projecto e o primeiro que fez na sua vida de enóloga.

Na Quinta do Montalto, mais conhecida pela produção do vinho Medieval de Ourém, André Gomes Pereira quis provar que era possível usar talhas revestidas no interior com o pez à antiga “sem que o vinho ficasse com esse sabor, mesmo no primeiro ano”. Mostra no telemóvel imagens do artesão a quem encomendou as talhas, em Tomar, explica como são feitas e como é colocada a resina no interior, mas tem que ser “uma resina que nos dê confiança” para garantir que o cheiro não passa para o vinho.

O nicho vai deixar de ser nicho

Há também histórias de vinho feito com este método noutros países. O francês Sebastien David, vindo do Loire, trouxe um livro com fotografias para mostrar as diversas formas de ânforas que utiliza, algumas das quais desenhadas por ele – o feitio da ânfora tem importância para o resultado final do vinho, garante Sebastian, quinta geração de uma família de produtores de vinho, cuja propriedade data do século XVII.

Um dos vinhos mais surpreendentes mostrados no Rocim veio da Arménia pela mão do casal Yeraz e Zorik. “A Arménia é uma história à espera de ser contada”, anuncia o folheto. Eles estão aqui para a contar. Se a Geórgia conseguiu já afirmar-se internacionalmente pela sua tradição dos vinhos feitos no barro, a Arménia está apenas a começar essa aventura e a apresentar ao mundo as karas, usadas no país desde há 6000 anos.

Os vinhos Zorah vêm de vinhas de pé franco (a filoxera, que no século XIX destruiu grande parte das vinhas europeias, nunca aqui chegou) situadas a 1400 e 1600 metros de altitude, no bíblico Monte Ararat, numa adega que fica em frente do local onde foram encontrados vestígios de vinho com 6000 anos.

O Karasì, feito com a casta Areni, que existe apenas na Arménia, e o extraordinário Yeraz, feito a partir de um field blend de vários ramos da mesma Areni, ainda não estão à venda em Portugal, mas o casal de arménios que nasceu na diáspora mas trocou Itália pelo seu país de origem para fazer vinho, tem esperança de vir a vendê-lo também cá.

No final, cumpriu-se a tradição e, ao som do cante alentejano, o Rocim abriu as suas talhas e deu a provar o vinho novo. Pedro Ribeiro não escondia a satisfação com o sucesso do evento, que atraiu perto de mil pessoas. “Sentimos que o momento era este”, diz. “Com a evolução dos mercados e do consumidor, com esta procura de vinhos mais autênticos, com mais carácter, menos industrializados, que reflectem mais o terroir, sentimos que não dava para esperar muito mais tempo.”

Foto
dr

Admite que se trata ainda de um nicho de mercado, mas acredita que é um fenómeno em crescimento. “Ouvimos muitas vezes dizer que as talhas são uma moda, mas nos anos 1980 e 90 as barricas de carvalho francês também se tornaram uma moda. De repente, começou-se a usar e uma moda transformou-se numa coisa importante. No caso da talha, não é tão fácil escalar este método de vinificação ou de envelhecimento por todas as condicionantes de fragilidade do próprio recipiente, mas não tenho dúvidas de que vai haver um crescimento e que o nicho vai deixar de ser tão nicho.”

Há ainda muitos preconceitos, reconhece. “Os produtores que fizeram o seu crescimento nos últimos anos a fugir de tudo isto, e que tiveram o seu valor, não gostam de perceber a ascensão de um produto que, no fundo, vai contra tudo pelo qual eles lutaram. Compreendo que os enólogos e produtores que construíram as suas carreiras nos anos 1980 e 90 fugindo deste ambiente artesanal não vejam com bons olhos a ascensão de um produto de intervenção mínima.”

O Rocim nunca deixou de fazer vinho desta forma, que “era famoso aqui nas aldeias ao lado”, mas só em 2012 é que começou a engarrafar. “Era 99,9% para exportação, destinado a mercados mais sofisticados, aos estrelas Michelin de Nova Iorque. Tudo nasce nesses mercados, os sommeliers vestiram a camisola deste tipo de vinhos.”

Foi só uma questão de tempo até a moda chegar a Portugal. “Confesso que no início dizia aos meus comerciais para não o tentarem vender cá, o mercado não estava preparado, podia ser mal interpretado.” Mas “acontece tudo num momento”. E, hoje, “o vinho de 2017 [Herdade do Rocim Amphora], que lançámos em Março de 2018, já esgotou”. Quanto ao Abertura das Talhas - Amphora Wine Day, já tem segunda edição prometida: será na Herdade do Rocim a 11 de Novembro de 2019.