Os maus selvagens
As Black Fridays são dias negros para a humanidade. Matar por um LCD em suposta promoção revela o mau selvagem que existe em muitos de nós.
Não foi só este ano. Tem sido quase sempre assim, desde que os publicitários inventaram as chamadas Black Fridays. O nome não podia ser mais adequado. É, de facto, um dia negro para a humanidade. Todos assistimos, sobretudo nos EUA, mas também cá no burgo, à corrida desenfreada a produtos supostamente com preços loucos, gente que se espezinha, que se insulta, que se agride fisicamente e que até se mata (literalmente). E para quê? Para adquirir um LCD, um portátil, electrodoméstico ou gadget a um custo muito inferior ao habitualmente praticado.
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Não foi só este ano. Tem sido quase sempre assim, desde que os publicitários inventaram as chamadas Black Fridays. O nome não podia ser mais adequado. É, de facto, um dia negro para a humanidade. Todos assistimos, sobretudo nos EUA, mas também cá no burgo, à corrida desenfreada a produtos supostamente com preços loucos, gente que se espezinha, que se insulta, que se agride fisicamente e que até se mata (literalmente). E para quê? Para adquirir um LCD, um portátil, electrodoméstico ou gadget a um custo muito inferior ao habitualmente praticado.
Todavia, em regra é falso que os preços sejam, de facto, mais baixos. Está provado que as empresas vão subindo os mesmos nos meses anteriores, de forma a que quem acompanha a sua evolução fique com a impressão que naquele específico dia ou dias fará um belo negócio.
A isto juntam-se versões antigas dos produtos, os quais têm de ser escoados, de modo a que o novo substitua o velho, nesta sociedade de usar e deitar fora. Cria-se, assim, na maior parte dos casos, a aparência de uma jogada inteligente. E, claro está, todos gostamos de ser ou parecer inteligentes, de mostrarmos aos nossos semelhantes que sabemos usar a massa cinzenta de forma mais competente.
O “xico-espertismo” não é património luso, mas da humanidade. A UNESCO já o devia ter declarado.
A psicologia do consumo explica estes movimentos, esteados em sentimentos básicos do ser humano: desejo de se sobrepor aos demais, de se evidenciar, de aumentar a auto-estima e o autoconceito, de aparecer aos olhos do outro como mais competente para a vida selvagem que aí está; numa palavra, por não perder uma boa oportunidade quando ela espreita. Simplesmente, estes sentimentos despertam aquilo que está à flor da nossa pele: a bestialidade, o basismo, a violência, a perda de valores quando está em causa demonstrar aos demais que somos mais poderosos e habilitados a viver neste mundo.
Tenho a certeza que muitos daqueles que acampam antes da abertura dos estabelecimentos comerciais, que batem nos outros para ficar com a última peça em promoção, que espezinham para entrar mais depressa nas superfícies, se parassem para reflectir nos seus comportamentos, sentiriam uma profunda vergonha e remorso. Ou não.
Tantos são os sociólogos que estudaram este pós-consumismo líquido que me dispenso de os mencionar. Luta-se por um aparelho em regra mais ou menos supérfluo como se se lutasse por pão ou água, como se a sobrevivência dependesse daquela marca do “ter”. Sim, “ter” é o verbo mais conjugado. “Ser”, o mais esquecido. Matar por um LCD em suposta promoção, quando até se sabe que os preços foram anteriormente manipulados, revela o mau selvagem que existe em muitos de nós. Não em todos. Ainda acredito – porque conheço muita gente que nos últimos dias tem ficado boquiaberta com os acontecimentos – que as imagens choquem muitos de nós.
Mais uma vez, Rousseau errou: parece que uma boa parte de nós é naturalmente má. Que pode matar por futilidades. Nada de novo para quem conheça o conceito de “motivo torpe ou fútil” como exemplo-padrão do crime de homicídio qualificado, p. ex. É conhecido o caso de um indivíduo que, repreendido pelo vizinho por estar a sacudir a toalha da mesa para cima deste, à janela, foi buscar uma caçadeira e matou o outro. Como é que o outro se atreve a repreender-me, eu que tudo sei, que sou auto-suficiente, qual pirâmide kelseniana, como dizemos no Direito?
Os bons selvagens foram louvados ao longo da História, como fautores de mudança, como escrínio de valores irredutíveis que vão passando de moda. Mas esta gente não é nada. Mesmo nada. Quando estiver a ver uma série no LCD obtido por espezinhamento, o mais certo é ainda se rir da situação e gabar-se da sua habilidade. Não há limites para o comércio. Qual quê a ideia de sustentabilidade nas trocas, do comércio justo e outras tretas? Tudo isso é não conhecer a natureza humana maioritária.
Vejo que, na Suíça, algumas livrarias resistem: propõem aos clientes arredondamentos nos preços a favor de instituições sociais. Aí penso que nem tudo está perdido. E não me venham com o nível médio de vida dos suíços, pois os verdadeiros black friday crimes acontecem em países supostamente desenvolvidos.
E o que é ser um “país desenvolvido”? Aquele que tem um elevado PIB, uma boa posição no coeficiente de Gini ou no índice de desenvolvimento humano da ONU? E que depois tem cidadãos que se comportam como bárbaros (com todo respeito pelo sentido histórico destes povos)?
Não. Vou emigrar para um país economicamente pobre, mas onde uma pessoa valha por uma pessoa, onde os animais não sejam mais que os seres humanos, onde a sociedade não se preocupe mais com a protecção destes últimos que com as crianças que morrem de fome todos os dias. Para países onde a grande discussão do Orçamento do Estado não seja a de as touradas merecerem ou não um regime privilegiado de IVA. Black days are here yet and more are still to come.