Carlos Kaiser, o malandro que nunca quis jogar futebol
“Kaiser: O Grande Jogador que Nunca Jogou Futebol” passa neste sábado no festival Porto/Post/Doc. O PÚBLICO falou com o homem que nunca foi craque e que esteve perto de ser um não-jogador em Portugal.
Esta não é a história de um craque. Esta é a história de um não-jogador de futebol. Pela sua própria admissão, Carlos Henrique Raposo nunca foi um jogador de futebol e nunca quis jogar futebol, mas teve uma carreira de mais de 20 anos em alguns dos maiores clubes brasileiros e no estrangeiro. Ninguém (ou pouca gente) o conhece por Carlos Henrique Raposo, mas pelo apelido famoso tomado de um genial futebolista alemão chamado Franz Beckenbauer (ou de uma marca de cerveja, dependendo de quem conta a história). Sem nunca ter marcado um golo de levantar um estádio, Carlos Kaiser ficou para a história do futebol como um grande enganador, um malandro que viveu vida de futebolista sem nunca ter jogado.
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Esta não é a história de um craque. Esta é a história de um não-jogador de futebol. Pela sua própria admissão, Carlos Henrique Raposo nunca foi um jogador de futebol e nunca quis jogar futebol, mas teve uma carreira de mais de 20 anos em alguns dos maiores clubes brasileiros e no estrangeiro. Ninguém (ou pouca gente) o conhece por Carlos Henrique Raposo, mas pelo apelido famoso tomado de um genial futebolista alemão chamado Franz Beckenbauer (ou de uma marca de cerveja, dependendo de quem conta a história). Sem nunca ter marcado um golo de levantar um estádio, Carlos Kaiser ficou para a história do futebol como um grande enganador, um malandro que viveu vida de futebolista sem nunca ter jogado.
“Não joguei, não marquei, não dei um chute”, é uma das primeiras frases proferidas pelo próprio em “Kaiser: O Grande Jogador que Nunca Jogou Futebol”, um documentário de produção britânica realizado por Louis Myles e que tem estreia portuguesa neste sábado no festival de cinema documental Porto/Post/Doc (sessão de abertura às 21h45, no Cinema da Trindade, repetindo a 1 de Dezembro, às 17h, no Passos Manuel). Em conversa por telefone com o PÚBLICO, tal como no filme, Carlos Kaiser, agora com 55 anos e instrutor de fisioculturismo no Rio de Janeiro (só treina mulheres e com prémios ganhos), conta a sua verdade sobre o futebolista que nunca foi. Logo nos primeiros minutos garante: “Entrei neste filme para ser sincero.”
“Eu me arrependo de não ter levado a sério a minha carreira de futebolista. Se prejudiquei alguém, prejudiquei a mim mesmo”, atira Kaiser quase no fim da conversa, depois de ter repetido várias vezes que nunca quis ser jogador de futebol e que só entrou nessa vida porque a mãe (adoptiva) o obrigou. “Marcos – é Marcos, não é? – olha, eu nunca quis ser jogador de futebol, não gosto de jogar futebol, nunca quis ser famoso, nunca quis isso para mim. Queria estudar e ser professor de Educação Física”, conta Kaiser. E gosta ao menos de ver futebol? “Vejo pelos meus amigos.”
Se tivesse mesmo jogado, Carlos Kaiser teria tido uma carreira incrível, com passagens pelos quatro grandes do futebol carioca (Botafogo, Flamengo, Vasco da Gama e Fluminense) e outras do Rio (América, Bangu), por outros clubes da América Latina (Puebla, do México, Independiente, da Argentina), da Europa (Gazèlec Ajaccio, da França), dos EUA (El Paso). Foi “só” uma vida incrível cheia de histórias para contar. O que já não é pouco. Porque as histórias, dentro do futebol e fora de campo, são muitas.
Carlos Kaiser começou como muitos começam, como um garoto a jogar futebol na rua. Alguém do Botafogo deu por ele quando tinha dez anos, numa "pelada", e levou-o para o clube que tinha sido de Mané Garrincha. “Com dez anos eu já sustentava a minha família toda. Era considerado um fenómeno”, recorda. “Depois, com 16 anos, assinei o meu primeiro contrato profissional com o Puebla, do México”, conta Kaiser. Desta aventura mexicana, Kaiser diria na altura que “tinha arrebentado” ao ponto de o terem convidado para jogar na selecção mexicana.
Não há um único registo visual de Kaiser a jogar futebol, nem no México, nem em lado nenhum, e são raras as fotografias em que aparece equipado com alguma das camisolas dos clubes por onde passou, ele que era tido como um avançado, artilheiro, homem dos golos – aparece em muitas fotos com a camisola encarnada e azul do Gazèlec Ajaccio, clube da Córsega, mas sozinho e com uma bola. “Quantos jogos eu fiz? Inteiros, de 90 minutos? Uns 20. E golos? Uns 15”, calcula Kaiser, uma estimativa talvez generosa para os mais de 20 anos que passou sem jogar. Parecem demasiados jogos que Kaiser deixou passar sem fingir que estava lesionado. Ou que tinha problemas de dentes. Ou qualquer outra desculpa. “Se tivesse de matar, simbolicamente, a minha avó”, conta no filme, “eu matava”.
“Simulava contusões, provocava expulsões e pedia a colegas que me lesionassem nos treinos. Fazia de tudo para não jogar”, resume Kaiser. Um dos episódios mais famosos aconteceu no Bangu, em 1988. Este clube carioca era então presidido por Castor de Andrade, o mais poderoso bicheiro (magnata do jogo do bicho, uma espécie de totoloto ilegal) do Brasil. Castor gostava de Kaiser e queria que ele jogasse e, depois de uma noitada, Kaiser foi obrigado a ir para o banco num jogo com o Coritiba. O treinador recebeu a ordem presidencial e mandou Kaiser aquecer.
Já era demasiado tarde para dizer que estava com dores de dentes ou dores musculares e, desesperado, fez o que a sua mente ágil lhe mandou. Saltou para a bancada, começou a andar à pancada com adeptos adversários e foi expulso do jogo antes de entrar em campo. “Era o único jeito, naquela hora, simular aquela briga para não jogar”, conta. Depois, veio a bronca de Castor de Andrade no balneário, mas Kaiser voltou a pensar depressa. Na cara do presidente que andava de pistola à cintura, disse que só estava a defender a sua honra e que olhava para ele como um pai. “Renovou-me o contrato e ainda me dobrou o salário.”
Era gente perigosa que Kaiser enfrentava e enganava. “No Bangu e em todos os lugares. Na Córsega, jogava para a Máfia e um que jogou comigo, o Fábio Barros, ficou com medo. Ele levou-me para lá, mas no filme, com medo dos corsos, ele negou que me tenha levado. Ainda assim eu o admiro muito, pai de família e um cara sério, ao contrário de mim.”
Era assim que os clubes iam contratando Kaiser, o malandro. Fazia-se amigo dos presidentes e fazia-se amigo dos jogadores, e fazia tudo o que fosse preciso, desde que nada disso envolvesse jogar futebol. Kaiser também fazia amizade entre os jornalistas, trocando o acesso aos seus colegas craques por promoção nas páginas dos jornais. Eram contratos de curta duração que podiam, ou não, ser renovados. Garantir um contrato maior ou melhor com golos e bom rendimento era secundário. O que interessava era receber as luvas da assinatura do contrato e começar a pensar no próximo.
Kaiser conta que esteve perto de ser um não-jogador em Portugal. É uma nota de rodapé sem muita cor nesta história. Não havia dinheiro, não houve Kaiser. “Saí do Vasco em 1989 e fui para o Louletano. Fiquei aí uns três meses e não gostei. O Louletano estava com problemas financeiros graves e fui directo para França”, contou sobre a sua breve passagem pelo clube algarvio. Mas acrescenta que, fora do Brasil, gostaria de viver em Portugal e diz que o seu único aluno homem é um senhor português, do Porto, com 80 anos e chamado João Silva.
A partir de certa altura, diz Kaiser, já era perfeitamente assumido que os clubes não o contratavam para jogar. Queriam-no para outras coisas. “Dava-me bem com toda a gente. Dava-me bem com os jornalistas, os jogadores não deixavam que me mandassem embora. Nunca fui mandado embora de nenhum clube. Era uma tristeza quando eu ia embora. Eu era uma espécie de líder positivo. Evitava que os jogadores se envolvessem com drogas, com bebidas. Eu era babá de futebolistas. Havia clubes que só me contratavam para isso. E muitos até cediam parte do seu salário para mim, para me convencerem a ficar.”
Há a tentação de se questionar tudo aquilo que Kaiser diz, e o filme também vai por aí, fazendo algum contraditório em relação a algumas das suas histórias, mas há algo que é absolutamente inquestionável. Kaiser deixou muitos amigos no futebol e não há ninguém que diga mal dele. Há muitos depoimentos de muita gente conhecida, desde Carlos Alberto Torres, grande capitão da selecção do Brasil campeã mundial, em 1970, Bebeto, avançado campeão mundial em 1994, Zico, Júnior, e de gente que passou pelo futebol português, como Roger (ex-Benfica) ou Ricardo Rocha (ex-Sporting).
Todos falam de Kaiser, não como um craque que mereça admiração, mas como um amigo que merece carinho. Sobretudo Renato Gaúcho, um dos grandes craques do futebol brasileiro dos anos 1980 e 1990 e actualmente treinador do Grémio de Porto Alegre, com quem Kaiser era muitas vezes confundido. Tinham fisionomias semelhantes e o mesmo corte de cabelo, em Portugal conhecido como o “cabelo à Futre”.
“Gosto mais do Renato do que da minha mãe”, resume Kaiser. São várias as histórias em que Kaiser era confundido com Renato e disso se aproveitava para entrar nas boites da moda e na sedução. Não era bem assim, diz o malandro: “Eu não me fazia passar por ele, mas a semelhança era muito grande. E muitas vezes ele usava-me para dizer à mulher dele que não era ele que estava nos lugares, era eu.”
Também era para isto que Kaiser queria estar dentro do futebol, sempre fora de campo, ter acesso à vida de futebolista e a tudo o que isso implicava naquele Rio de Janeiro dos anos 1980: festas e mulheres (na sua lista, de centenas, garante, estão desportistas famosas e actrizes, uma delas “estrela” de filmes porno). E por aqui também se percebe a popularidade de Kaiser entre os colegas. Era o “cafetão”, aquele que organizava as paródias. “Conheço muitas mulheres, quando você vier cá eu te apresento 500… Isso é verdade. Num clube que estive no Rio [Botafogo], eu chegava dois dias antes do jogo ao hotel da equipa, metia umas 15 mulheres dois andares abaixo do andar dos jogadores. À noite, os jogadores desciam as escadas e fazíamos festas, e ninguém ficava a saber. Não era preciso fugir da concentração.”
Há um lado sombrio na história de Kaiser que está no filme e que também se apresenta nesta conversa. “Fui muito explorado. O meu empresário ficava com 80% e por isso eu fiz o que fiz”. Refere-se também em poucas palavras à morte do seu filho e das três mulheres com quem foi casado. E fala de um início de vida complicado – “a minha mãe adoptiva roubou-me” – e de um momento actual difícil – “estou a viver um momento triste, terminei um noivado há dois meses”.
Mas afinal, Carlos Kaiser, o futebolista que não queria jogar futebol, sabia jogar futebol? No filme, Bebeto não tem dúvidas: “O Kaiser não jogava nada.” A esta pergunta, Kaiser responde com outra pergunta: “Você acha que alguém passou por esses grandes clubes todos sem saber jogar?” Seria possível alguém fazer o mesmo hoje em dia, em que o mundo está ligado pela Internet e pelas redes sociais? Responde Kaiser: “Não poderia acontecer, mas lá que há muito jogador que tenta, isso há…”