Matias Damásio: “Hoje o céu de Angola está mais limpo”

O cantor angolano apresenta em Lisboa o seu mais recente disco, Augusta. Um nome, o da sua avó, que remete para uma infância difícil mas, diz ele, feliz. Este sábado na Altice Arena, às 21h30.

Foto
Matias Damásio fotografado para o disco Augusta CELSO COLAÇO

Matias Damásio sobe este sábado ao palco da Altice Arena, em Lisboa. Voz aveludada de cantor romântico, aparência de crooner, subiu a pulso as escadas do êxito. O disco que agora apresenta tem duas faces: a consagração do seu sucesso e as memórias de uma infância que foi tudo menos fácil. Augusta tem o nome da avó materna, que ele homenageia.

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Matias Damásio sobe este sábado ao palco da Altice Arena, em Lisboa. Voz aveludada de cantor romântico, aparência de crooner, subiu a pulso as escadas do êxito. O disco que agora apresenta tem duas faces: a consagração do seu sucesso e as memórias de uma infância que foi tudo menos fácil. Augusta tem o nome da avó materna, que ele homenageia.

Nascido em Benguela, Angola, em 9 de Maio de 1982, o cantor recorda ao PÚBLICO esses tempos. “Nasci no Bairro da Lixeira, irmão de mais nove. O meu pai, como todo o homem pobre, fez muitos filhos. Quando ele foi para a tropa, para o Cuando-Cubango, éramos dois. Só podia levar a minha mãe e um dos filhos, então levou o meu irmão Jaime, ainda bebé de colo.” Isso foi em 1984 e ele ficou com a avó. “Tinha três anos. Fiquei com ela, fui alimentado por ela. Cultivava os alimentos e cozinhava no final do dia. Vivíamos num bairro muito pobre mas foi lá que aprendi os meus primeiros valores. O diferencial desses bairros é que as pessoas são muito unidas por terem muito pouco. E quando faltava comida numa casa, havia na do vizinho.”

Como não tinha televisão nem rádio em casa, a avó deixava-o sair até a uns alambiques onde vendiam bebidas fermentadas “porque lá havia uns gramofones com música”. E ele gostava. “Ficava duas a três horas, como se fosse um viciado em álcool, mas o meu objectivo era o contacto com a música.”

Sacrifício e felicidade

Nessa altura teria uns cinco anos. “Foi uma infância feliz, apesar de todas as dificuldades. A avó Augusta está presente quando respiro e transpiro: ‘Matias, o amor é a coisa mais importante da vida. Com as dificuldades que temos, se não é Deus, se não é amar o próximo…’. Vivi com uma doutrina quase bíblica, de abraçar, de amar. Foi muito importante na minha vida. A forma como ela recebia as pessoas na sua humilde casa, um quarto e sala, a forma como cozinhava para todos mesmo tendo pouco. Às vezes tínhamos só uma refeição por dia, com muito sacrifício, antes havia uma oração. Tudo isso teve uma importância vital na minha forma de olhar para o mundo, na minha ideologia, naquilo em que acredito, no que canto.”

Viveu assim cinco anos, até à mãe voltar para Benguela grávida de uma menina. O pai ficou. “Voltou umas duas, três vezes, mas depois desapareceu por um tempo, sempre nas tropas [era das FAPLA, o exército do MPLA]. Depois foi para Luanda, andámos desencontrados.” Augusta morreu, tinha ele 15, 16 anos. Incentivou-o na música, mas já não assistiu à sua ascensão. Por isso Matias Damásio lhe dedica o disco, dando-lhe o seu nome. “Sinto que a minha base como ser humano é a Augusta, daí a minha gratidão. Podia dar isso aos meus pais, que estão vivos e são extraordinários, mas na verdade foi a minha avó.”

Rumo à “cidade grande”

O regresso da mãe trouxe-lhe outra responsabilidade. “Eu tinha cerca de 11 anos, éramos quatro lá em casa e eu senti que devia ajudar a minha mãe, porque o meu pai não estava. Então, fiz o que muitas crianças fizeram: fui para Luanda. Havia uns barcos pesqueiros no Lobito que faziam o trajecto Lobito-Cuanza Sul. Eles aceitavam pessoas com 11 a 13 anos para serem cobradores nesses barcos, porque eram mão-de-obra barata e podiam até não pagar. Era um período de guerra, tiros, bombas, tanques. Fui, como cobrador, fui parar ao Roque Santeiro, não fui nenhum herói porque fiz o que os outros fizeram. Havia muita criança a ir para a cidade grande, por isso houve o fenómeno dos miúdos de rua.”

O que faziam eles, em Luanda? Engraxar sapatos, escamar peixe, revender. “Tínhamos uns quartos onde pagávamos a renda aos mais velhos, éramos mais uma vez explorados, mas já tínhamos o nosso sono bendito e no dia seguinte era dia de trabalho. Fiquei, um ano e tal nestas vidas de luta, e voltei quando consegui algum dinheiro.” Mais um leitor de cassetes, que comprou para ouvir as suas músicas. Isso até irem todos viver para Luanda, com o pai. “Construímos uma casa de chapa no quintal do tio Cândido. E foi ali que comecei a pensar mais na música, a escrever algumas coisas.”

A primeira canção que escreveu foi sobre a sua mãe. “Na nossa casa entrava água quando chovia, levantámo-nos todos, era uma lástima! E via a minha mãe, que trabalhava como lavadeira na casa do general Bazuca (já falecido), ir a pé, voltar a pé, com os pés inflamados. Escrevi: ‘Manhã cedo, mamã querida se levanta, lava a roupa do vizinho.’ Foi o meu ponto de partida para escrever letras.” Tinha então 15 anos.

“Ganhei um carro e vendi-o”

Aprendeu depois a tocar viola nas ruas, entrou em concursos, tornou-se notado. “Uma das coisas mais bonitas foi aprender a tocar viola com o Guito e o Timóteo no Morro Bento, o bairro onde nós morámos. E com a viola comecei a sonhar mais alto.” E a cantar em bares. No primeiro concurso onde entrou, saiu vencedor. “Ganhei um Volkswagen Polo e vendi-o no dia seguinte. Precisava de ajudar os meus pais a construírem a casa.” E vieram outros. “Fui ganhando concurso após concurso, foram uma forma de me ir impondo no mercado.”

Em 2005 lançou um primeiro disco, Vitória. “Uma homenagem a todas as vitórias que eu tinha tido.” Ao segundo chamou Amor e Festa na Lixeira (2008): “Pensaram que eu estava a fazer política, mas na verdade era o que acontecia no meu bairro, a Lixeira. As pessoas tinham dificuldades mas era uma verdadeira festa. Só que havia pouca esperança. Se algum de nós dizia que queria ser piloto, levava logo no côco. Tinham medo. Como eles tinham fracassado, não acreditavam que fosse possível, matavam os nossos sonhos. Mas não era por mal. Então o disco foi uma homenagem a todos os meus amigos, alguns falecidos.”

O terceiro disco, Por Angola (2012), foi para homenagear o seu país. “Foi na altura da paz. Lembro-me que quando anunciaram a paz na televisão não senti festa, as pessoas não estavam contentes, não acreditaram. A paz não se anuncia, sente-se.” Mas quando Angola foi qualificada para o Mundial de futebol já houve festa. “Para nós, o Mundial era para países normais, países ricos, diferentes, e nós não nos considerávamos um país normal. Mas quando fomos qualificados, houve mais festa do que no dia da paz. Porque nos mostrou que afinal a nossa bandeira podia estar entre as bandeiras do mundo inteiro.” E o disco quis reflectir isso. “Tem até uma canção chamada Angola país novo, que hoje em Angola é como se fosse um hino, dedicada a esses momentos que vivemos.”

Porrada e um pai herói

Desde a primeira canção que Matias Damásio escreve regularmente. “Adoro escrever. E se um dia eu deixasse de cantar, era na escrita que me posicionava. Levávamos muita porrada porque éramos obrigados a ler muito: Pepetela, Luandino Vieira, Jacinto de Lemos. O meu pai dizia: ‘Homem pobre tem de ser culto.’ Era uma coisa frenética.” Hoje com 36 anos, Matias Damásio tem a noção de que viveu tudo muito cedo: o aventurar-se na “cidade grande”, o trabalho, até o amor (“Apaixonei-me pela minha mulher, Carolina, aos 21 anos”).

E tudo isso ligado à escrita. “Fui para escola e fui bom aluno por causa da porrada do meu pai. Comecei a gostar de ler mais tarde, mas nunca achei que isso fosse importante sequer. Até aos 19 anos, quase odiava o meu pai por isso. Éramos muito pobres, e eu queria ter ténis, ter coisas que não tinha na altura, e olhava o meu pai como um homem fracassado. Mas quando cheguei aos 19, 20 anos e comecei a ver a importância daquilo tudo, quando tive os meus filhos, é que percebi que por mais dinheiro que eu ganhe nunca vou conseguir ser como o meu pai. Ele deu o máximo dele, nós é que não compreendíamos. Numa canção que lhe dediquei [Papá], escrevi: ‘Papá quando eu era pequeno queria que fosses rico/ Julgando eu que riqueza era só dinheiro/ Não sabia eu que tinhas dentro do teu peito/ O diamante mais precioso do universo.’ Hoje é a minha referência, um herói para mim.”

As estrelas, sem bombas

Antes de Augusta (2018), Matias Damásio lançou ainda outro disco, Por Amor (2016). “Até 2012 era impossível falar de amor. O contexto do país era muito diferente, as músicas eram muito de intervenção social. Depois, estar num ambiente de paz, conhecer a Carolina, os nossos filhos [tem três rapazes, com 15, 11 e oito anos], tudo isso foi muito importante.”

Em 2017, Matias Damásio deu mais de quatro dezenas de concertos em Portugal, esgotando a lotação dos coliseus de Lisboa (Abril) e Porto (Maio). Trazia, então, o seu disco Por Amor. Agora o novo disco, Augusta, vai ser apresentado este sábado ao vivo na Altice Arena, em Lisboa às 21h30, com três cantoras convidadas: Áurea, Mariza, Pérola e Vanesa Marín. Duas delas participaram no disco: Áurea e Pérola. Além da brasileira Claudia Leitte. “Hoje, olha-se para as estrelas, já não com vontade de fugir à guerra mas sim de estar apaixonado. Nós víamos muito fumo, muitas bombas. Hoje o céu de Angola está mais limpo.”