O touro que queria ser cão
A tourada, despida de toda a roupagem e maravilha sensorial, consiste em retirarmos prazer do sofrimento de um ser colocado em posição inferior. É a apologia da barbárie.
Discute-se se se discute civilização quando são discutidas touradas. Debatendo nós noções fundamentais acerca do tratamento de animais que consideramos em inferior posição e, assim, o autocontrolo sobre o nosso próprio poder e o quadro de valores que nos define enquanto espécie, que outra coisa poderemos nós estar a discutir que não civilização?
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Discute-se se se discute civilização quando são discutidas touradas. Debatendo nós noções fundamentais acerca do tratamento de animais que consideramos em inferior posição e, assim, o autocontrolo sobre o nosso próprio poder e o quadro de valores que nos define enquanto espécie, que outra coisa poderemos nós estar a discutir que não civilização?
Recordo aqui uma porção elucidativa da lei aprovada em 2014 - “Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão”. Daqui retiro duas ilações. Ou deduções. Ou outra coisa qualquer. Existe um princípio fundamental que faz distinguir, em essência ou natureza, os animais de companhia dos demais. Ou, em alternativa, existe um motivo legítimo para, e cito, infligir dor e sofrimento nos animais. A famosa terceira via, porventura, é uma embriaguez de hipocrisia.
Sempre ouço, das mais diversas e tremendas fonte de sapiência, que nós, seres humanos, somos animais racionais, não somos como os outros. Somos mais evoluídos. Somos superiores. Não, meus caros, não somos. Está nos livros. E quem não os lê, que olhe em volta. A vaidosa superioridade, que espertamente gostamos de ostentar, serve apenas como hábil máscara de hipocrisia, ocultando em trajes, música, arenas e espectáculo, a saciedade que nos dá o cheiro a sangue. Somos iguais à bicharada que tanto desprezamos. Só que nos vestimos melhor.
A marcha pelos direitos dos animais assenta na consciencialização e no conhecimento que progressivamente acumulamos sobre a biologia animal e, especificamente, sobre aspectos da sua dimensão sensorial, emocional, social e até do seu sentido de consciência. Os humanos não são uma entidade celestial, lateral à arborização evolutiva que a Natureza arquitectou, num caminho para atingir um qualquer gáudio teleológico. A evolução é um processo gradual e que diferencia espécies fundamentalmente numa lógica quantitativa, na qual o Homem é excelso numas capacidades e medíocre noutras tantas. Quer isto significar que não há a pedra e o Homem, haverá sim um gradiente de complexidade intelectual e social entre todos os animais. Gradiente, aliás, que espelha a maquinaria interna dos mesmos. O que atribui ao homem as suas excepcionais qualidades é, não uma descendência divina espírita, mas o cérebro que traz consigo. Do mesmo modo, tantas outras espécies, com complexidades distintas, carregam consigo o substrato biológico que lhes permite, embora com menor grau de complexidade, sentir felicidade, dor, ansiedade, angústia, desejo, entre tantas outras sensações. Espécies mais sofisticadas como o elefante, o golfinho ou o chimpanzé organizam-se em intricadas relações sociais, sociedades onde se assiste à prática de funerais, onde se faz o luto, onde há uma teia hierárquica social mutuamente reconhecida, onde se brinca e se ajuda, onde se ensina e se aprende. Onde há cuidado, protecção, laços que duram uma vida, onde há aquilo a que, francamente, qualquer um de nós que olhasse atentamente chamaria amor.
E onde temos uma noção mais próxima desta sofisticação da natureza é junto daquilo que temos por perto, já que ao desconhecido cedemos à tendência humana de voluntária desconsideração. Nos nossos gatos, e sobretudo nos nossos cães, encontramos ecos suaves da nossa própria dimensão e sentido de consciência, decorrendo daí uma vontade colectiva de os proteger, incluindo com instrumento legal. Sentimos repulsa, em geral, por quem abusa dos seus animais de estimação, agredindo-os sistematicamente, ou sujeitando-os a condições de vida degradantes. Ninguém grita, “Espanque o seu cão! Vá, mais!”. Mas, já pelo cair da noite, a chiqueza folclórica reúne-se no Campo Pequeno para se rejubilar com o tradicional e “legitimamente” admirado espetáculo cultural que é a grande tourada portuguesa. O puritanismo quotidiano contra a violência é substituído pelo excitante e vibrante arrepio dos poros que sentimos quando, lá em baixo, na arena, o mestre cavaleiro, de grande destreza, acaba de trucidar um pouco mais o dorso do animal. Mas, como diz a lei, tal é legítimo. E como não é de mais citar, certamente “existe um motivo legítimo para infligir dor e sofrimento nos animais” quando esse motivo é o deleite de uma multidão que “legitimamente” parece ter todo direito de tirar prazer da tortura de um animal. É porque é disso que se trata. É que para ouvir música, apreciar trajes, visitar arenas ou vislumbrar animais, existem outras atividades que não envolvem esfacelar um ser vivo.
Há com certeza um sentido de espectáculo numa tourada, mas isso está longe de configurar uma noção de arte ou cultura. Alguém duvida que uma luta de gladiadores ou outras demonstrações de maior crueldade nos circos romanos configuravam grandes espectáculos? Seguramente que, com toda a sua violência e visceralidade, aqueciam as paixões das suas assistências, tal é a tendência primal do homem para se enfeitiçar com o sangue, com a morte e com a brutalidade. Não por isso lhe podemos chamar arte, nem tão pouco poderemos justificar qualquer acto com a invocação da tradição. Como este parágrafo deixa subentendido, tradições perdem-se nos caminhos da História. Felizmente, as sociedades evoluíram ao longo de séculos para entender a arte como um elevador intelectual, como um elemento de transcendência da nossa “existência animal”, despertador e provocador da consciência cívica, como um veículo de significado e como uma forma de expressão e comunhão da nossa complexa humanidade.
A tourada, despida de toda a roupagem e maravilha sensorial, consiste em retirarmos prazer do sofrimento de um ser colocado em posição inferior. É a apologia da barbárie. Até segundo uma visão antropocêntrica, é-me difícil compreender esta lógica. Então, se nos consideramos mais valiosos que o restante mundo natural, se somos melhores que os outros animais, não deveria isso trazer a responsabilidade e o dever de deles cuidar? Não é a verdadeira medida de um homem ou mulher a forma como trata aqueles em posição inferior à sua? Eu sou um humanista e no meu modelo de humano não há espaço para o prazer com a tortura e o sofrimento.
A lei que temos contra os maus-tratos a animais está certa e espelha já a tal orientação de civilização. Mas o mesmo carácter pedagógico e dissuasor que imprime ao condenar o abuso dos animais de companhia é cabalmente e escandalosamente desautorizado, quando, no mesmo quadro legal, se permite não só maltratar, mas brutalizar outros animais, para puro deleite de uma plateia. O grande mantra: só lá vai quem quer. Bem, menos os touros. Como uns são filhos e outros enteados, também uns são cães e outros touros. Citando, com a devida ironia, Miguel Esteves Cardoso, como é linda a puta da vida.