Do Martim Moniz ao Adamastor: Lisboa a ferver
Em Lisboa estamos num novo momento. As pessoas fartaram-se de ser receptores passivos, ou mesmo vítimas, das transformações e querem ser ouvidas.
Estava-se mesmo a ver. As mudanças em Lisboa nos últimos anos foram bruscas e aceleradas. O regozijo inicial deu lugar à apreensão e, agora, perante a inabilidade dos poderes públicos, está a gerar contestação.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Estava-se mesmo a ver. As mudanças em Lisboa nos últimos anos foram bruscas e aceleradas. O regozijo inicial deu lugar à apreensão e, agora, perante a inabilidade dos poderes públicos, está a gerar contestação.
Foi isso que se sentiu nesta terça-feira na apresentação pública do novo projecto comercial para a Praça Martim Moniz, com a Câmara de Lisboa e o concessionário a serem alvo de duras críticas. E é isso que também se tem pressentido na abordagem ao caso do miradouro de Santa Catarina (Adamastor), que está vedado ao público desde o mês de Agosto.
Nos dois casos reina a confusão e quase ninguém parece satisfeito. E, no entanto, era importante que se tirassem ilações do que está a acontecer. Em ambas as situações é nítido que a edilidade não está a conseguir ter uma leitura consequente da realidade. Ainda não percebeu que estamos num novo momento. As pessoas fartaram-se de ser receptores passivos, ou mesmo vítimas, das transformações e querem ser ouvidas.
No Adamastor a edilidade, em vez de actuar com prudência, ouvindo previamente entidades públicas e privadas, activistas, associações ou instituições culturais, avançou a todo o vapor e o resultado está aí: passaram quatro meses, o lugar continua vedado aos cidadãos e, perante as críticas, a edilidade está agora a fazer o que deveria ter feito inicialmente: dialogar. No Martim Moniz não se quis cometer o mesmo erro. Mas a interlocução chega também tardiamente. Apresentou-se um projecto sem consulta prévia e o resultado está aí: outra embrulhada.
Curiosamente, mas não por acaso, os dois imbróglios acontecem em pontos da cidade com uma forte identidade. O Adamastor, enquanto ponto de encontro interclassista e intercultural, marcado pela informalidade e pelas sociabilidades transitórias, e o Martim Moniz, identificado pelas vivências da população imigrante e das minorias étnicas.
E também, não por acaso, em ambas as situações, estamos a falar de espaços que já foram alvo de diversas requalificações, argumentando-se, invariavelmente, para o concretizar das mesmas, com concepções enevoadas, como o mau ambiente urbano ou a degradação dos lugares, que cada um instrumentaliza como quer, sem que tenhamos acesso a dados credíveis que sejam apresentados de forma transparente e pública, não apenas sobre criminalidade, mas também sobre desertificação dos bairros, especulação imobiliária, impacto do turismo ou desagregação das redes de vizinhança. É preciso olhar para estas questões de forma integrada, ou então continuar-se-á a cometer os erros que nos fizeram chegar aqui.
Uma praça penalizada
A Praça do Martim Moniz foi sempre mal-amada, seja pela estética, seja pela função e utilização comercial e recreativa. Em 2007, numa eleição a que se atribuiu a designação Os Sete Horrores de Portugal, a partir de votação efectuada por leitores, baseados numa lista de arquitectos e urbanistas, a praça foi a mais penalizada. Na altura escrevi uma crónica a contrariar essa visão. E mantenho-a. Tornou-se banal desprezar a sua arquitectura, dominada pelos centros comerciais, que arruinariam a visão das colinas circundantes, impedindo a vista de uma Lisboa romantizada e medieval.
Poderá não ser esteticamente harmoniosa, mas em relação a tantas outras praças foi sempre vivida, coisa rara em Lisboa, onde por norma os lugares semelhantes são áridos. O primeiro projecto para o local, de 1997, foi muito contestado pelas escolhas estéticas e funções, mas a praça foi sendo aos poucos apropriada por aqueles que viviam na área. Essa sempre foi a sua mais-valia — a reapropriação pelos que abrangem os interstícios da sociedade e da sua economia para descansar, estar, parar, continuar, jogar, brincar, habitar o espaço público — e também paradoxalmente o problema, porque aquilo que ali foi sendo experimentado parece não se adequar à idealização que alguns fazem do que deveria ser aquele sítio.
Quando ocorreu, em 2011, a concessão a privados dos quiosques e do mercado, os discursos que se ouviram eram bem-intencionados, em prol da diversidade e da interculturalidade. No entanto,desde o início que foi visível um equívoco de base. Não só fica a ideia de que as dinâmicas ali pré-existentes – como a economia baseada na informalidade ou a específica realidade comercial local – nunca foram integradas, nem a população que ali vive ou transita estava representada nessa mesma lógica comercial. Desperdiçou-se o trabalho das comunidades e houve incapacidade em gerar um elo de ligação entre um projecto com algumas qualidades, mas que não teve em atenção as características da zona.
A sensação que fica é a de que os diversos planos para a praça nunca tiveram em atenção a orgânica da área. É como se existisse uma Lisboa de elite que até tolera uma outra Lisboa mais remediada e informal, mas que ao mesmo tempo não quer ser confrontada com ela. Os argumentos para as diversas requalificações são sempre os mesmos, mistura de juízos estéticos e sociais. E a sensação que paira é que camuflam esse parecer de que a praça não deve ser dos imigrantes ou dos jovens. Põe-se em causa a forma como a reorganizam e habitam, quando isso só enriquecerá quem esteja disponível para contactar com a sua diferença e também dos outros.
No Adamastor acontece exactamente o mesmo. Quatro meses depois de o espaço ter sido interditado ninguém usufruiu dele. Os visitantes ficam perplexos e os moradores dividem-se consoante a sensibilidade. Existe quem não consiga olhar para o problema de forma integrada — só se focando nos incómodos do pequeno tráfico de droga, defendendo qualquer tipo de solução casuística para o mesmo —, mas há também quem perceba que o que está em causa é mais do que um assunto de pequena criminalidade, por mais que este seja desagradável e deva ser combatido.
A este propósito, estes meses têm sido significativos. Se havia sensação de insegurança, ela só se intensificou, principalmente à noite, porque o local é agora um ermo. Ao mesmo tempo os pequenos traficantes vão-se deslocalizando. Agora estão em zonas onde toda a gente passa e com isso os níveis de agressividade aumentaram, entre quem solicita e é alvo de solicitações. Por outro lado, o barulho, nomeado e bem pela câmara como uma questão sensível, tendo em conta algumas das famílias que vivem em redor do miradouro, é hoje ocasional. Mas o paradoxo persiste, porque muitas mais famílias da zona se queixam do ruído permanente oriundo de estabelecimentos nocturnos que a mesma câmara licencia.
Significa isto que, seja no Martim Moniz ou no Adamastor, as autoridades públicas não devem efectuar intervenções? Não é isso, claro. Mas o que estes dois casos estão a mostrar de forma evidente é que têm de o fazer com precaução, promovendo o diálogo e fazendo-o de forma límpida, ao mesmo tempo que é necessário ter em atenção as dinâmicas já existentes e não querer condicionar a utilização pública dos espaços privilegiando privados ou meras lógicas comerciais. Criar muros, restringir horários através de vedações, ou criar lógicas comerciais artificiais que não vão ao encontro do uso quotidiano dos lugares não parece ser a solução para uma cidade onde os valores da integração, da coesão social, da segurança e da convivialidade entre todos devem ser tidos em conta.