O púlpito dos charlatões
Há assuntos sobre os quais a televisão, seja pelas características e exigências actuais, seja pela profunda ignorância e filistinismo dos autores e apresentadores dos programas, presta um serviço fraudulento de desinformação.
Na passada segunda-feira vi o programa Prós e Contras, na RTP 1, e a conclusão a que cheguei, no final, é que há assuntos sobre os quais a televisão, seja pelas características e exigências actuais deste medium, seja pela profunda ignorância e filistinismo dos autores e apresentadores dos programas, presta um serviço fraudulento de desinformação, presta-se a ser o veículo de ideias que não deveriam poder ser difundidas e amplificadas num estação pública, em programas que se reclamam do estatuto de serviço público.
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Na passada segunda-feira vi o programa Prós e Contras, na RTP 1, e a conclusão a que cheguei, no final, é que há assuntos sobre os quais a televisão, seja pelas características e exigências actuais deste medium, seja pela profunda ignorância e filistinismo dos autores e apresentadores dos programas, presta um serviço fraudulento de desinformação, presta-se a ser o veículo de ideias que não deveriam poder ser difundidas e amplificadas num estação pública, em programas que se reclamam do estatuto de serviço público.
O nível da abjecção e da total ausência de pudor é diariamente atingido naqueles programas da manhã e da tarde que supõem a existência de um público lobotomizado. Mas aqui, nos Prós e Contras, apesar da deriva demagógica do título, indiciando que há muita probabilidade de as coisas não correrem bem, supõe-se que é um programa para uma classe de espectadores bem informados, que esperam muito mais do que um serão de entretenimento.
O último Pros e Contras era sobre as touradas, sobre as razões que levam uns a defender que elas devem ser mantidas e sobre as razões que levam outros a defender que elas deviam ser abolidas. Como sabemos, este debate está instalado entre nós com bastante virulência e já se percebeu que ele é extremamente incómodo para alguns partidos políticos e para o Governo, que quer fugir dele como o diabo da cruz. É preciso dizer que ele não deve ser desvalorizado, com aquele argumento de que há coisas muito mais importantes e esta não passa de algo inócuo. O que está aqui em jogo, a discussão de fundo, é algo fundamental que se inscreve no cerne da biopolítica contemporânea.
A ideia de que está em curso ou já se consumou um animal turn, uma viragem animal, convoca-nos hoje seriamente através de uma bibliografia imensa que se tem produzido nos últimos anos sobre o assunto, vinda sobretudo dos lados da filosofia. O que descobrimos quando frequentamos esta vasta bibliografia é que a questão animal, nas suas mais variadas dimensões (morais, antropológicas, legais, etc.), incluindo a questão maior de saber se eles podem e devem ser sujeitos de direito, está presente nos grandes obras de filosofia, desde Aristóteles a Heidegger, de Derrida e Martha Nussbaum. Está longe, portanto, de ser uma questão exclusiva do nosso tempo. Daí que seja chocante ouvir pessoas que são chamadas a falar sobre o assunto porque lhes é conferida, por qualquer razão, autoridade para tal, mas discorrem sobre ele com a maior das ignorâncias.
Neste último Pros e Contras destacou-se neste exercício de desinformação e de ignorância um aficionado chamado Luís Capucha, imbuído de filosofia das Lezírias que nem dá para comentar neste espaço. Mas vale a pena revisitar um dos seus argumentos, o de que regime nazi foi muito amigo dos animais e fez legislação que o comprova, para dizer que esse mito com origem na propaganda (“O nosso Führer ama os animais”) já foi longamente desmentido, em primeiro lugar por Victor Klemperer, o autor de LQI. A Linguagem do III Reich.
E, no início dos anos 90, em França, Luc Ferry publicou um livro onde transmitia essa mensagem (e onde traduzia documentos da legislação nazi) que foi muito contestado e deu origem a uma enorme polémica. Ora, o que se passa entre nós é que alguém (na circunstância, um professor universitário de Sociologia) pode dar-se ao luxo de fazer afirmações na televisão como se fossem verdades irrefutáveis, desconhecendo ou fazendo que desconhece a contestação e a polémica que elas suscitaram.
Este dispositivo retórico, propagandístico e inimigo do saber e da ciência porque é usado com fins exclusivamente ideológicos é o do discurso político, em relação ao qual já criámos muitas defesas, mas não pode ser a regra numa discussão na televisão pública, sobre um assunto sério, para o qual se convida, para o debate, “especialistas”, gente a quem se confere uma qualquer autoridade. O sociólogo, o aficionado, o propagandista e o inimigo do saber, tudo na mesma pessoa, só na televisão é que é possível.