Os corpos de Né Barros estão prontos para a revolução
Da França de 1789 à Rússia de 1917, da Grande Marcha ao Maio de 68, quantos corpos saíram à rua e se atiraram para a luta, construindo no processo uma linguagem corporal da contestação? Revoluções, de Né Barros, inventaria essas e outras rupturas tão físicas quanto ideológicas, incluindo as muitas que ao longo do século XX aconteceram em cima de um palco.
São todas iguais, as imagens das revoluções. Rasurados os rostos, as roupas e os penteados, desfocadas as bandeiras e as faixas com palavras de ordem, desvinculadas de tudo o que lhes dá um aqui e um agora (o letreiro da leitaria à direita, o Citroën 2 CV virado ao contrário, a espessura da neve acumulada no passeio ou do gelo a flutuar no rio, a manchete do jornal que declara, consumando o anticlímax: “De Gaulle: Je reste. Je garde Pompidou”), nada a não ser corpos em posição de ataque, corpos em posição de defesa, corpos turbinados pela urgência de fazer o possível e o impossível.
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São todas iguais, as imagens das revoluções. Rasurados os rostos, as roupas e os penteados, desfocadas as bandeiras e as faixas com palavras de ordem, desvinculadas de tudo o que lhes dá um aqui e um agora (o letreiro da leitaria à direita, o Citroën 2 CV virado ao contrário, a espessura da neve acumulada no passeio ou do gelo a flutuar no rio, a manchete do jornal que declara, consumando o anticlímax: “De Gaulle: Je reste. Je garde Pompidou”), nada a não ser corpos em posição de ataque, corpos em posição de defesa, corpos turbinados pela urgência de fazer o possível e o impossível.
Eis uma maneira de ler uma iconografia com centenas de anos, talvez mesmo a única maneira de a ler quando se tem a dança como campo de trabalho e de intervenção: “O corpo dançante é um território ideal para a metamorfose, para a revolução constante”, diz Né Barros a propósito da peça que estreou há uma semana no Teatro Municipal do Porto e que esta sexta-feira apresenta na Casa da Cultura de Ílhavo. Sincronizada com o programa de investigação sobre o Maio de 68 que o Grupo de Estética, Política e Conhecimento do Instituto de Filosofia da Universidade do Porto desencadeou para sinalizar os 50 anos do Maio de 68 (que são também os 50 anos de outras peças fundamentais dessa iconografia: a Primavera de Praga e o apogeu do movimento dos direitos civis, nos Estados Unidos, e da Revolução Cultural, na China), Revoluções tem certamente às costas o infindável acervo de imagens e de produção teórica e historiográfica sobre os movimentos revolucionários acumulado até ao presente. Mas Né Barros precisou de se desligar dele para poder trabalhar a partir de um imaginário, não das manifestações concretas desta ou daquela revolução, e assim construir “um dispositivo de distância” multidisciplinar (dança, música, instalação, imagem, luz, maquinaria teatral) que catalisa em palco todo o potencial dessa ideia abstracta de transformação. “É quase uma sequência cinemática: o espectáculo discorre sobre várias iconografias e sobre vários materiais associados ao imaginário da revolução. Não quis tratar uma revolução específica, até porque as revoluções podem ser muito diferentes (íntimas ou colectivas, públicas ou privadas, micro ou macro), quis tratar estados de revolução”, explica a coreógrafa.
Apesar da vinculação do espectáculo a uma efeméride muito particular, cujo impacto na história artística e cultural da Europa demorará pelo menos outros 50 anos a desbravar, Revoluções radica também no corpo de trabalho que Né Barros vem desenvolvendo e nos seus temas-fetiche da paisagem inteligente, da ocupação do território e, sobretudo, das zonas de contacto e de fricção entre o corpo poético e o corpo político. Algures durante o processo, conta ao Ípsilon, uma frase do colectivo insurreccional francês Comité Invisible intrometeu-se nas leituras e ficou a reverberar (reverberando ela própria o mantra bem mais antigo de Gil Scott-Heron segundo o qual a revolução não passará na televisão): “Todas as razões para fazermos uma revolução estão aí (…). O naufrágio da política, a arrogância dos poderosos, o reinado dos falsos, a vulgaridade dos ricos, os cataclismos da indústria, a miséria galopante, a exploração, o apocalipse ecológico (…). Contudo, não são as razões que fazem as revoluções, são os corpos. E os corpos estão diante dos ecrãs.”
Mas talvez esta seja uma frase demasiado definitiva, como todas as frases revolucionárias: se chamarmos pelo corpo, ele vem.
Da utopia ao trauma
É mais ou menos assim que Revoluções começa: cinco corpos são chamados ao palco (“o lugar do trabalho”, aponta Né Barros, mas também: o lugar de todas as possibilidades, de todas as transformações), onde um sexto corpo os espera, já de fato-macaco, pronto para a acção. O que têm pela frente não é uma revolução, são várias, e às vezes ao mesmo tempo. Mas à medida que certos gestos icónicos dos movimentos de contestação, Revolução Francesa à cabeça, vão sendo activados e actualizados (mas não necessariamente “declamados”), o espectáculo passa da teoria à prática, compondo um arco, sublinhado pela intervenção em contínuo do colectivo de música experimental e electrónica Haarvöl, que começa na utopia e acaba no trauma pós-revolucionário – o corpo de novo sem uniforme, sem bandeira, sem filiação ideológica ou partidária, entregue a si mesmo.
Um fim em anticlímax, como o do Maio de 68? Exactamente o contrário disso: para uma coreógrafa, as revoluções são “material que gera, que rende”, e o corpo em movimento é “inesgotável”. A dança é em si mesma revolucionária, inevitavelmente: “Tem essa pulsação, essa lógica de intensificação do gesto, da intenção, da velocidade.” Mais do que “o manifesto final”, interessou-lhe portanto ir buscar à revolução, às revoluções, “o lado mais processual, o lado das forças internas que conduzem à mudança” – que encontrou não apenas nos grandes movimentos políticos e sociais, mas também nas vanguardas artísticas que ao longo de todo o século XX puseram a música e a dança a dar o seu grande salto em frente, e que despontam no espectáculo “em livres justaposições temporais e temáticas”.
Tal como a Revolução Francesa e o Maio de 68, também as sucessivas rupturas a que revolucionários como Stockhausen, Bernard Parmegiani, John Cage e Steve Reich submeteram o paradigma musical se manifestam no espectáculo, mesmo que a banda sonora encomendada à Digitópia, a plataforma de música digital da Casa da Música, não se limite a reproduzir os gestos fundadores desses compositores. Do mesmo modo que os seis bailarinos não se limitam a reproduzir os gestos fundadores de coreógrafos como Loïe Fuller, Martha Graham, Merce Cunningham, Trisha Brown e Lucinda Childs que Né Barros quis incorporar em Revoluções: aqui, a linguagem corporal é a das vanguardas da dança americana, mas também é a linguagem da rua, venha ela das lutas estudantis ou das danças urbanas, uma linguagem que mais dia, menos dia, quando os ecrãs se desligarem, voltaremos a falar.