Assombrações do Rio

O nome de Bolsonaro raramente foi pronunciado e todas as palavras foram medidas. O Festival do Rio na ressaca das eleições brasileiras - e perante a desmaterização fantasmagórica do mal.

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A Sombra do Pai, de Gabriela Amaral Almeida

Jair Bolsonaro foi eleito três dias antes do início do 20.º Festival Internacional do Rio. Deste lado do Atlântico, antes de partir, assistia a um pequeno filme de 3 minutos que a realizadora Teresa Villaverde rodou no dia da eleição, em São Paulo, e logo disponibilizou na sua página de Vimeo. Chama-se, simplesmente, Av. Paulista 28.10.18. E tão simples como o título é a sua estrutura: essencialmente um plano fixo, frontal, de um cinzento pelotão de militares que servem de fundo às sucessivas poses fotográficas dos apoiantes do novo presidente eleito, quase sempre envergando a colorida bandeira brasileira. A campanha fascizante de Bolsonaro logrou apropriar-se de duas iconografias: o festivo uniforme da selecção de futebol do Brasil e, por outro lado, a monótona e escura farda militar. Um nacionalismo militarista que o testemunho de Villaverde capta na sua ostensiva contradição pictórica.

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Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, de Renée Nader Messora e João Salaviza, e Domingo, de Clara Linhart e Fellipe Gamarano Barbosa

Esperava portanto um país em guerra civil, confrontos na rua, comícios em cada esquina. Achei que não haveria festival, que todas as sessões seriam interrompidas por clamores de “Ele Não!” (na verdade o festival esteve para não acontecer mas por questões de financiamento decorrentes da mudança do Prefeito do Rio de Janeiro – de um partido democrático cristão –, que cortou todos os apoios ao evento). Mas chego ao Rio e tudo está calmo, as pessoas tomam cerveja nas esplanadas, conversam, aparentemente felizes e descontraídas. Questiono as minhas novas amizades sobre este estado de coisas: é a ressaca, respondem-me.

Depois de uma campanha eleitoral que levantou quezílias antigas e fez surgir novas, que dividiu famílias e separou amigos, a vontade de descanso e escapismo impuseram-se. Isso, mas também a consciência de que uma sombra escurece tudo e todos. Ao contrário do esperado, nenhum dos realizadores gritou o que fosse – excepção para João Salaviza. O nome da besta raramente era pronunciado e todas as palavras eram cuidadosamente medidas, como se, mesmo ali, numa sala de cinema cheia de “pessoas da cultura”, não se soubesse exactamente quem se tinha na frente. Convém lembrar que, no final das contas, quase 60 milhões de pessoas votaram em Bolsonaro.

Esse peso sente-se por entre a jovialidade de quem quer, finalmente, ver filmes e pensar noutras coisas. Um peso que se traduz na ponderação das palavras e no tom de voz à mesa do jantar. Mas que, também é certo, se dissipa rapidamente no anonimato de uma plateia de sala de cinema que irrompe violentamente em aplausos, defronte de um filme que acicate os seus de sentimentos de revolta e indignação. Duas curtas-metragens, em particular, invocaram as fatídicas palavras do então deputado Bolsonaro aquando do impeachment da presidente Dilma, em que este louvou Carlos Alberto Brilhante Ustra (o primeiro militar condenado pela Justiça Brasileira pela prática de tortura durante a ditadura, em 2008): Universo Preto Paralelo e Mais Triste que Chuva num Recreio de Colégio. Em ambas os realizadores optaram por apenas usar a trilha sonora desse momento, retirando o corpo à voz. E aqui começa o processo de desmaterialização fantasmagórica do mal que parece caracterizar este cinema “pós-golpe”.

Bolsonaro não é mostrado, apenas aludido, o seu nome não é pronunciado, apenas subentendido – como já disse, nos filmes e também nas ruas –, e parece que a sua figura se aproxima de uma qualidade imaterial. Como comentava um amigo de redes sociais, sobre esta questão, “No judaísmo, o nome de Deus não se pronuncia, porque seria o equivalente a fazer decair o sagrado à finitude da linguagem.” A recusa da concretude grotesca de Bolsonaro só ajuda a mitificá-lo e o cinema brasileiro, até agora e na medida do que pude ver, ainda não soube pegar o touro pela cornadura – o mais próximo terá sido O Processo de Maria Augusta Ramos. Fiquemo-nos então pelos fantasmas e pelas alegorias. 

É comum dizer-se que em períodos de administração republicana, no Estado Unidos da América, há uma renovação do género de terror no cinema de Hollywood. Nos últimos dois anos, no Brasil, o cinema de terror começou também a ganhar mais espaço e a tornar-se eminentemente político. Veja-se o regular trabalho de Marco Dutra e Juliana Rojas (cujo mais recente título estreou nas salas nacionais, As Boas Maneiras), os primeiros passos de Gabriela Amaral Almeida (cujo mais recente A Sombra do Pai passou nesta edição do Festival do Rio, assim como a sua estreia, no ano anterior, O Animal Cordial), o cinema de Guto Parente ou a estreia de Dennison Ramalho (com Morto Não Fala, também em competição no festival – que o Motelx apresentou na última edição).

A acção destes filmes tende a trabalhar os confrontos de classe, opondo muitas vezes dois mundos: o centro moderno da cidade e a periferia. É esse o caso dos dois filmes de terror que competiam este ano pelo Prêmio Petrobras de Cinema, os já referidos A Sombra do Pai e Morto Não Fala. Aliás, ambos partilham uma série de lugares-comuns: uma semelhante família quebrada (em ambos a presença fantasmática da mãe ausente influi no quotidiano dos vivos); uma semelhante figura paterna autoritária; uma parecida lacuna afectiva na descrição das crianças; o mesmo tratamento evocativo dos objectos do morto; um aproximado retrato suburbano das grandes metrópoles brasileiras (o trabalho mal pago e a sombra do desemprego). Claro que o tom do filme de Dennison Ramalho está muito mais perto do cinema de culto, enquanto que o filme de Amaral Almeida é o de bom aluno do “cinema de fluxo” contemporâneo. O que importa notar nestes dois filmes, como reflexo de um Brasil convulsivo, é a desagregação familiar e o convívio com o sobrenatural como coisa quotidiana (e não como algo extraordinário). Como se falar com um morto desmembrado na morgue ou enterrar um dente do ciso e ver germinar dele a mãe morta fosse algo tão comum como fritar um ovo ou ir à escola.

Mas se estas são as aproximações mais directas a uma realidade perturbada pelo fascismo e pelo tele-evangelismo, outros títulos procuram encontrar no desenho do passado um caminho para compreender o presente. Deslembro, de Flávia Castro, é um retrato doce e íntimo de uma adolescência em tempos de ditadura. Sendo que muito daquilo que é a história do filme é profundamente pessoal: um despertar para a idade adulta de uma filha de pai vítima da ditadura militar brasileira e de padrasto militante da resistência chilena. Um mapeamento afectivo das sequelas familiares que os espíritos revolucionários da esquerda dos anos 1970 deixaram junto dos seus entes queridos.

E de forma muito distinta, também Gilda Brasileiro Contra o esquecimento, de Roberto Manhães Reis e Viola Scheuerer, aborda uma história não tão distante assim da realidade brasileira contemporânea: a escravatura. Os realizadores acompanham Gilda, uma mulher que investiga a herança esclavagista da sua cidade. Em particular, um trilho e uma casa de comércio de seres humanos que funcionou durante várias décadas após a abolição da escravatura no país. E o que é surpreendente são os testemunhos fotográficos (o brilho revelador dos daguerreótipos) e documentais, mas também dos vivos que ainda conheceram os resquícios desse horror. Quando no Brasil se questiona os factos do período ditatorial e assomem as formas mais básicas de racismo (pela boca do presidente eleito) estes filmes servem como exercícios de rememoração colectiva do um terror muito recente.

Os melhores filmes brasileiros que competiam na secção principal eram dois títulos assombrados: pelos “antepassados” e pelo próprio cinema.

Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, de Renée Nader Messora e João Salaviza, foi feito junto de uma comunidade indígena brasileira, os Krahô, e adaptou histórias e rituais locais. Em especial o de um rapaz da aldeia que começou a ser assombrado pelo espírito do seu falecido pai, vendo-se obrigado a realizar a sua festa de fim de luto. ?Essa presença fantasmática leva Ihjãc, o protagonista, a fugir da aldeia para a cidade mais próxima onde lida com a burocracia e os vídeo-jogos do café. Uma das sequências mais curiosas do filme (que desmonta um pouco a aura mística que os povos indígenas sempre têm aos olhos ocidentais) corresponde a essa estadia, repleta de gags cómicos que se prendem com uma incompreensão mútua entre mundos, línguas, culturas e costumes.

Só que Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos existe sempre em tensão. Uma que se prende, paradoxalmente, com a sua extrema proximidade à comunidade que filma e com a vontade de fazer um objecto cinematográfico que represente bem os Krahô e, ao mesmo tempo, represente bem a cinefilia do olhar dos cineastas. Os realizadores admitem que tentaram evitar o "tratado antropológico" fazendo algumas cedências, nomeadamente no que respeita à fidelidade da tradução da língua indígena, mas noutros momentos, como a descrição dos rituais fúnebres, optaram por preservar a cronologia dos eventos, mesmo a desfavor do ritmo narrativo. O filme habita então um limbo entre o desejo de cinema e o desejo de fidelidade, como que lutando consigo mesmo. E os primeiros minutos são particularmente importantes na forma como parecem expor esse “processo de intenções” de forma clara mas também simbólica: numa espécie de noite americana azulada conhecemos uma figura masculina por entre a vegetação, quase confundindo-se com ela, em planos fixos, quase abstractos de tão escuros. Depois a câmara fixa-se nas costas dessa figura. Nelas projectam-se os raios de lua filtrados pelo rendilhado das folhas e das árvores altas. As costas feitas tela, o corpo feito ecrã, o meio projectado no homem e o homem projectando-se no meio. Tensão e simbiose no cerrado do Tocantins.

Domingo, de Clara Linhart e Fellipe Gamarano Barbosa, começa com um tango argentino na trilha sonora; no segundo plano apresenta três personagens alcoolizados, deitados em espreguiçadeiras, junto à água; as crianças brincam e na primeira linha de diálogo ouve-se “que saudades tenho de Buenos Aires”. Só não percebe quem não quer: Domingo é uma releitura brasileira de O Pântano de Lucrécia Martel em versão comédia sexual de desenganos – a primeira versão do argumento data de 2004, quando o Novo Cinema Argentino começava a transformar-se em cânone da contemporaneidade. Aqui encontramos uma mesma burguesia decadente, o mesmo ambiente pantanoso e o mesmo conflito de classe entre a família rica e os criados. Mas onde o filme de Martel levantava já várias questões sobre a interiorização do colonialismo na sociedade argentina, Domingo trabalha isso segundo o ponto e vista da política contemporânea brasileira: tudo se passa em 2003, no dia da tomada de posse de Lula da Silva. Era portanto para ser uma sátira sobre o fim de uma época, onde os antigos privilégios se democratizavam e já só restava o fogacho das aparências. No entanto, por questões de produção, o filme só ficou pronto em 2018, o que lhe dá um sentido diametralmente oposto. Já não é a vingança do proletariado, tudo virou profecia negra sobre a ascensão do fascismo: o anti-petismo como ideologia dominante.

Alguém diz a certa altura, “quero ver o circo a arder” e de facto a dupla de realizadores delicia-se nesse fim de tempo onde tudo está à beira de se desmoronar. E perante a queda inevitável só resta beber, beber, snifar, foder e beber um pouco mais. Aí o filme encontra o seu centro, no humor triste e desesperado feito de portas trancadas e de trancas abertas. Especialmente quando se filmam cenas de conjunto, onde a dúzia de actores do filme ocupam todo o espaço e se movimentam elegantemente em redor de uma câmara que flui pelos rostos e pelos gestos de cada um deles. Mas o momento mais perturbante é quando se ouve a voz de Lula, no seu discurso de tomada de posse, feita assombração do conturbado presente brasileiro. Também aí não há corpo e, ouvidas agora, essas palavras de 2003 parecem já saídas da prisão onde o ex-presidente habita nos dias de hoje. Roucas e sem esperança, soterradas por um presente inimaginável. Quem diria que este era o futuro do Brasil…