Aparições da arte vídeo em Nice
Até ao próximo dia 25, a terceira edição do festival de vídeo OVNi invade as ruas da cidade do Sul de França com brisa da liberdade e da arte. E trabalhos de artistas portugueses.
Chama-se OVNi, mas existe e pode ser visto. Numa livraria, numa capela, numa loja de design, num apartamento. Embora nem sempre se identifique com exactidão, não tem a ver com objectos voadores. É algo de mais singelo, mundano: um festival de vídeo arte que, até ao próximo domingo, serpenteia nas artérias e ruas de Nice, entre o azul do Mediterrâneo e o Fórum do Urbanismo e da Arquitectura.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Chama-se OVNi, mas existe e pode ser visto. Numa livraria, numa capela, numa loja de design, num apartamento. Embora nem sempre se identifique com exactidão, não tem a ver com objectos voadores. É algo de mais singelo, mundano: um festival de vídeo arte que, até ao próximo domingo, serpenteia nas artérias e ruas de Nice, entre o azul do Mediterrâneo e o Fórum do Urbanismo e da Arquitectura.
Dirigido por Odile Redolfi, o OVNI (Objectif Vidéo Nice) encontra-se na sua terceira edição e inscreve-se na história de uma relação. Aquela que vários artistas, em épocas diferentes, estabeleceram com a cidade. Henri Matisse, Marc Chagall, Arman, Niki de Saint Phalle (cujas cores e formas despontam em fachadas de edifícios ou em esculturas públicas), Yves Klein (ele próprio natural de Nice), Ben Vautier (um residente), todos foram protagonistas dessa grande narrativa que compreende o fauvismo, o surrealismo, o novo realismo e o movimento fluxus.
A modernidade artística europeia esteve em Nice, inspirou-se na sua realidade natural e artificial e a cidade lembra nos seus museus, nas suas ruas, nas suas galerias o que foi o maravilhamento dessa inspiração. Quem contemplar o mar e acolher as cores quentes da arquitectura, quem reunir no espírito estes dois momentos, imaginará o que poderá ter sido essa inspiração.
Odile Redolfi gostaria de proporcionar algo semelhante, mas noutro sentido, noutro tempo. Numa das salas do Fórum do Urbanismo e da Arquitectura, a directora do OVNi frisa o desejo “de levar o vídeo e a arte contemporânea a um público pouco habituado às suas manifestações”. Mostrando as obras em “espaços pouco óbvios, para que as pessoas os possam ver e conhecer de modo mais democrático". O festival, sublinha, não se dirige "apenas aos especialistas, mas também aos iniciados e curiosos”.
Outro objectivo do OVNi passa por estender a experiência da descoberta das obras ao interior da cidade. “Os trabalhos não estão em galerias; a sua visita implica entrar em casas, passear, percorrer as ruas, conhecer os seus lugares e monumentos, outras histórias que não as da arte contemporânea”, acrescenta a também directora do Hotel Windsor, cujos quartos estão decorados com obras de Ben Vautier, Robert Barry, Glenn Baxter, entre outros artistas.
Focos de luz
Procurar e descobrir as aparições do OVNi não é um exercício difícil. Com avenidas amplas e ruas estreitas, colorida pelo comércio local, Nice espreguiça-se por bairros e casarios como se fosse uma extensão transfigurada da Promenade des Anglais. A poucos metros desta avenida, é possível assistir a In search of Eternity III, da dupla francesa Brodbeck & de Barbuat.
Projectado no apartamento de Stéphane Brasca, director da revista de fotografia de l’ air, o vídeo mostra travellings e ângulos picados sobre ruas, edifícios e pessoas na região indiana de Maharashtra. As imagens aparecem à beira de uma suspensão, num movimento quase imperceptível, lentíssimo, que proporciona ao espectador uma meditação sobre a fotografia e a morte, o filme e a vida, o tempo e o mundo.
Mas a decisão de mostrar filmes em espaços privados ou semi-públicos não se fez sem condições nem sem riscos. A sensação de se estar, ainda que por minutos, na esfera de uma intimidade ou num lugar em que a arte não é convidada habitual, pode ser desconfortável ou favorecer a distracção; porém, a presença dos ecrãs assegura a familiaridade e o envolvimento. Afinal, todas as nossas salas podem ser salas escuras com um foco de luz.
Na casa de Collete Soardi, sem vista para o mar, o visionamento de Threefold, da artista holandesa Katja Mater, acontece sob a luz natural que entra no apartamento concebido pelo arquitecto Cyril Chênebeau. O trabalho foi escolhido pela comissária Bérangère Armand, do colectivo we want art everywhere, e põe em diálogo a imagem em movimento com a actividade da pintura. Na parede, vêem-se num ecrã três planos distintos de uma mão que desenha a espiral de Fibonacci em tempos diferentes (passado, presente e futuro).
No fim, os três planos concluir-se-ão numa só imagem, uma pintura num filme, antes de o processo se reiniciar. Para a comissária, que concebe programas de apoio a arquitectos, cineasta e artistas, este é um trabalho que oferece à arquitectura da casa, ainda que temporariamente, um objecto no interior do qual vemos o desenho a fazer-se.
Não muito longe desta habitação, anima-se mais um vídeo, La vitesse de l’olivier, de Henri Olivier. O lugar da sua exposição, uma ampla loja de design e decoração, contrasta com a realidade que despertou a atenção do artista. Sentados em cadeiras, canapés, sofás, os visitantes assistem a uma paisagem vista de um comboio. Formam-na oliveiras altas, antigas, firmemente plantadas: “são as mais belas do Mediterrâneo”, acrescenta o artista.
A imagem é familiar, quase banal, mas esconde algo de maligno. “Algumas destas árvores estão contaminadas por uma bactéria mortal, outras já terão desaparecido. Quis que o trabalho incluísse essa denúncia, mas de um modo poético. Quando olhamos, aborrecidos, uma paisagem natural, podemos estar a olhar para algo que está doente, a morrer."
A brisa da arte
Os vídeos do OVNi foram seleccionados por um conjunto extenso de curadores, aspecto que afirma a multiplicidade de propostas, universos, abordagens e temas do festival. Na capela homónima que alberga o espaço cultural La Providence, no coração da Nice velha, a luz e a arquitectura são exploradas pela artista francesa A.I.L.O., com Perception, duas instalações site-specific.
Uma projecta luzes sobre o chão e as paredes, numa trepidação suave, a outra compõe uma sinfonia de formas e linhas geométricas no tecto da capela, transformando-o numa fonte desconcertante de ilusões ópticas que cobre e parece dissolver, com a luz, os volumes e os materiais do edifício.
A luz não é o tema dos vídeos que estão no Fórum do Urbanismo e da Arquitectura (situado no Pólo cultural 109). Coreografias, da dupla arquitectos chilenos Pedro Alonso e Hugo Palmarola (apresentada na Trienal da Arquitectura, em Lisboa, em 2016), e o filme que João Onofre levou à Bienal da Arquitectura de Veneza no âmbito da representação portuguesa de 2010 foram seleccionados por Yves Nacher.
Este comissário e crítico, director do fórum, é um conhecedor profundo da arquitectura portuguesa e não perdeu a oportunidade de mostrar os dois trabalhos, que considera notáveis. “Lidam com arquitectura e a construção com perspectivas diferentes. O de João Onofre é belíssimo. Tem uma subtileza muito rara pelo modo como trata o espaço, a relação entre a cidade, a paisagem e, nos últimos instantes, percebemos que coloca questões que são as da arquitectura [o filme descreve o transporte de um barco, com recurso a uma grua, para o interior de uma piscina]. Coreografias tem um tom mais crítico à arquitectura, entendida como actividade ao serviço da indústria. É muito divertido e muito sério.”
Humor e seriedade também caracterizam o conjunto de trabalhos acolhidos pela Vigna, uma livraria especializada em literatura queer. Deles, destacam-se os do colectivo lisboeta Rabbit Hole, com três vídeos curtos em que a cultura pop e a arte de protesto se mesclam para desafiar com humor e exuberância convenções, tradições e ameaças.
Podem ser vistos num vídeo ou em vários televisores, à volta dos quais estão prateleiras repletas de livros e pessoas que lêem e folheiam, debruçadas sobre palavras, nomes, rostos e figuras. Esta imagem não é de um ovni, mas a de uma cena em que sopra uma brisa semelhante à da Promenade des Anglais. A da liberdade e da arte.
O PÚBLICO viajou a convite da Atout France