Lav Diaz filma contra a ignorância

Season of the Devil, uma experiência radical e exigente de musical a capella a preto e branco de quatro horas, é um filme urgente, rodado em protesto contra o regime de Rodrigo Duterte. Sessão única, esta quinta-feira, no LEFFEST.

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Season of the Devil é exibido no Medeia Monumental Sala 2 Quinta 22, às 19h

Lav Diaz (n. 1958) é um daqueles cineastas de que se fala muito mas cujos filmes quase ninguém viu. E, contudo, The Woman who Left (2016) valeu-lhe o Leão de Ouro em Veneza. Antes, recebera o Prémio Alfred Bauer em Berlim por A Lullaby to the Sorrowful Mystery (2016) e o Leopardo de Ouro em Locarno por From What Is Before (2014) – falta só Cannes, que o lançou para a primeira linha do circuito de festivais em 2013 com Norte, the End of History premiá-lo para a “dobradinha” dos grandes certames ser completa.

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Lav Diaz (n. 1958) é um daqueles cineastas de que se fala muito mas cujos filmes quase ninguém viu. E, contudo, The Woman who Left (2016) valeu-lhe o Leão de Ouro em Veneza. Antes, recebera o Prémio Alfred Bauer em Berlim por A Lullaby to the Sorrowful Mystery (2016) e o Leopardo de Ouro em Locarno por From What Is Before (2014) – falta só Cannes, que o lançou para a primeira linha do circuito de festivais em 2013 com Norte, the End of History premiá-lo para a “dobradinha” dos grandes certames ser completa.

Mas aquilo que torna Diaz num cineasta tão singular na actual paisagem cinematográfica mundial é também o que o impede de sair do circuito de festivais: é mais ou menos unânime que os seus filmes são praticamente impossíveis de distribuir no circuito comercial. The Woman who Left tinha três horas e meia, Lullaby to a Sorrowful Mystery oito, From What Is Before cinco. E Season of the Devil, o filme que apresentou este ano no concurso de Berlim e que passa agora em sessão única no LEFFEST, quatro. Um musical a capella filipino a preto e branco de quatro horas não é coisa que atraia os distribuidores.

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Ainda assim é mais fácil para Lav Diaz mostrar o seu cinema no resto do mundo do que no seu próprio país natal. “É muito difícil exibir os meus filmes nas Filipinas,” explica num encontro com a imprensa em Berlim. “Exige muito trabalho. Na maior parte das vezes só os conseguimos exibir nas universidades ou nos cine-clubes, porque o circuito comercial está dominado por Hollywood, Hong Kong e pelo cinema industrial filipino. Um filme como este apenas consegue duas ou três sessões em alguns cinemas.”

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Season of the Devil é uma história dos tempos da lei marcial sob Ferdinando Marcos, inspirada por personagens e casos reais, alguns dos quais inspirados pelas próprias memórias de Diaz que cresceu no sul de Mindanao, numa zona rural das Filipinas. O contexto contemporâneo, com a ascensão ao poder de Rodrigo Duterte, torna o filme num oratório negro, um requiem por um país incapaz de aprender (com) a sua história. “É um ciclo vicioso que se repete constantemente, e é mais fácil mantermo-nos na ignorância,” afirma Diaz. “O que acontece hoje é o mesmo que aconteceu durante os mais de 200 anos de colonização espanhola, os cem anos de intervenção americana, os quatro anos sob controlo japonês, os 17 anos de lei marcial que foram o nosso período mais negro, agora temos Duterte… Não examinamos o passado, não confrontamos o passado. É o nosso maior problema. O esquecimento. Pior: não nos queremos recordar, propositadamente.”

É isso que torna importante o cinema de Diaz – deliberadamente pobre, feito com poucos meios em cenários naturais, muitas vezes em planos longos rodados ao primeiro take, algo que o realizador define entre risos como “um modo preguiçoso de fazer cinema”. “Para mim, o cinema pode ser um repositório de memórias,” defende, “o passado pode tornar-se em presente quando posto no écrã. Tem o poder de recriar, reinventar, investigar o passado. Os meus filmes são uma pequena contribuição contra a ignorância. É uma responsabilidade que sinto como cineasta, é importante usar o meu meio para confrontar e examinar o passado para compreender o que se passa hoje.” Talvez por isso, Season of the Devil atraiu a presença de Bituin Escalante, uma cantora muito popular nas Filipinas cujo papel no filme é um verdadeiro coro grego, ou de Piolo Pascual, super-estrela da televisão — “e foi muito corajoso da parte deles aceitarem fazê-lo.”

E é também um filme extremamente ancorado na cinefilia: rodado inteiramente com luz natural em décors rurais, numa estética que Diaz define como “extremamente expressionista, muito inspirada por Murnau e pelos mitos gregos”. Não é um musical tradicional — “não conseguimos fugir a Hollywood, por mais que queiramos, está sempre ali a pairar, e eu vi os musicais clássicos todos. Mas neste filme desfiz-me de todas as ornamentações, dos instrumentos e dos exercícios de dança da Broadway.” As canções são todas do próprio Diaz, escritas durante uma residência em Harvard durante a qual estava a trabalhar num outro guião. “Estava a escrever um filme de gangsters e tinha comprado uma guitarra barata, mas ao mesmo tempo estava a acompanhar todas as notícias que vinham das Filipinas, e dei por mim a compôr canções muito elegíacas, como se estivesse de luto pelo meu país. E disse ao meu produtor: isto é mais urgente do que o filme de gangsters. Quero fazer um musical.”

O resultado é Season of the Devil que, literalmente, é um filme que não se parece com nada (a não ser com os outros filme de Lav Diaz). E que dura quatro horas porque foi essa a duração que o filme pediu: “Nunca faço ideia do tempo que um filme vai ter durante as filmagens. É algo que acontece na montagem, quando vejo o que tenho à minha frente. Sei que os meus filmes são experiências muito físicas, mas fazer cinema é muito difícil, muito duro, e por isso peço ao meu público que se invista nos meus filmes da mesma maneira. Quero que a experiência do cineasta e a experiência do espectador, de uma maneira mais profunda, se harmonizem.”

Toda a programação em: www.leffest.com