A visita de um Presidente de Angola é tão rara que “vale por si”

Presidente de Angola vem a Lisboa e ao Porto “normalizar” as “relações especiais” e tentar atrair investidores e diversificar economia.

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João Lourenço é Presidente da República de Angola desde Setembro de 2017 Reuters/Philippe Wojazer

Portugal e Angola têm uma “relação especial” e “única”, mas a última vez que um Presidente angolano visitou Portugal foi há quase dez anos. A visita de Estado de João Lourenço, que começa esta quinta-feira, é por isso encarada pelo Governo português de forma pragmática: é tão raro, que só o facto de vir a Portugal é relevante.

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Portugal e Angola têm uma “relação especial” e “única”, mas a última vez que um Presidente angolano visitou Portugal foi há quase dez anos. A visita de Estado de João Lourenço, que começa esta quinta-feira, é por isso encarada pelo Governo português de forma pragmática: é tão raro, que só o facto de vir a Portugal é relevante.

Durante os seus 40 anos no poder, o ex-Presidente José Eduardo dos Santos visitou Portugal quatro vezes: em 1987 (visita de Estado), 1991 (assinatura do Acordo de Paz), 1996 (cimeira inaugural da Comunidade de Países de Língua Portuguesa) e 2009 (visita de Estado). Desde a independência de Angola, Lourenço fará a terceira visita de Estado de um Presidente angolano a Portugal.

“A visita vale por si”, disseram ao PÚBLICO vários diplomatas com conhecimento profundo das relações bilaterais, usando todos a mesma expressão. Além de rara, a visita acontece muito cedo no mandato de João Lourenço, que tomou posse há pouco mais de um ano, e muito perto da visita que o primeiro-ministro António Costa fez a Angola, em Setembro. “O timing é um sinal de que Angola quer passar a página”, disse um embaixador que conhece o dossier, referindo-se ao longo mal-estar criado por causa da investigação a Manuel Vicente, ex-vice-presidente angolano. “Esta visita tem uma importância enorme”, disse outro diplomata. “‘Normalizar’ não é uma boa palavra, porque ‘normais’ as relações já são, mas é importante haver actos públicos que sinalizem que estamos no bom caminho.”

Mais do que no bom caminho, as relações bilaterais “estão no patamar mais elevado possível”, disse ao PÚBLICO o chefe da diplomacia portuguesa, Augusto Santos Silva. “A visita vale por si”, concorda, mas não será só simbólica: “Há uma dimensão executiva e concreta que prolonga o trabalho e os acordos feitos há dois meses em Luanda.”

Em 2017, havia 400 empresas portuguesas em Angola que tinham, em investimento directo, 4 mil milhões de euros aplicados no país. Além disso, há quase seis mil empresas que exportam de Portugal para Angola (exportaram 1789 milhões de euros no ano passado). Uma das questões bilaterais pendentes é a dívida às empresas portuguesas. “O Estado angolano deve algumas centenas de milhões de euros a empresas portuguesas”, diz uma fonte do Governo português, mas não há ainda acordo sobre exactamente quanto. O problema é complexo, porque envolve várias entidades do Estado angolano e várias empresas portuguesas. “Não é um bolo”, resume um diplomata. “É um processo em curso que tem dois tempos: a certificação das dívidas (Angola reconhecer que elas existem e quais os valores) e a regularização (o pagamento efectivo).”

Em Setembro, o ministro angolano das Finanças, Archer Mangueira, disse ao primeiro-ministro português que o processo de certificação ficaria pronto até ao fim de Novembro. Em entrevista ao agregador de notícias plataforma.com, Mangueira disse esta semana que foram certificados 200 milhões de euros de dívidas, dos quais foram pagos 40%. Os restantes 60% serão pagos até ao fim do ano. O Governo português, que não é parte das negociações mas acompanha o processo, tem no entanto expectativas de que, durante a visita de Lourenço, “sejam dados passos decisivos”.

Esperam-se também avanços na discussão sobre como vai ser usado o reforço recente que foi feito em três instrumentos financeiros: a linha de crédito para empresas portuguesas que investem em Angola aumentou de mil milhões para 1500 milhões de euros; as garantias do Estado feitas através da Sofid (o banco para o desenvolvimento articulado com o MNE) aumentaram de 10 (em 2017) para 20 milhões no Orçamento de Estado de 2019, e o governo acaba de assinar com o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD) o acordo Compacto para os Países Lusófonos em África (são quatro países e um deles é Angola), para o qual Portugal dá garantias até 400 milhões de euros.

No seminário económico de sexta-feira, no edifício da Alfândega, no Porto, estarão dezenas de empresas dos dois países. Teresa Ribeiro, secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação, disse há uns dias que o Compacto é um instrumento inovador que servirá para promover 65 projectos no sector privado e parcerias público-privadas. O desafio é que estes três instrumentos sejam usados para o velho objectivo angolano de diversificar a sua economia. Mas o interesse “é mútuo”, diz Augusto Santos Silva, porque “Portugal também quer diversificar em Angola”, onde domina o peso das empresas de construção e os contratos com o Estado. “Destes novos projectos deviam surgir sinais dessa diversificação, tanto regional como sectorial.”

A visita vai desdobrar-se por Lisboa e pelo Porto. Na quinta-feira, João Lourenço reúne-se no Palácio de Belém com Marcelo Rebelo de Sousa — que à noite oferece um banquete oficial no Palácio da Ajuda —, visita o Instituto Nacional de Investigação Agrícola e Veterinária e faz um discurso na Assembleia da República, uma “distinção rara”, reservada aos “amigos” mais próximos. Na sexta-feira, Lourenço passa o dia no Porto, onde participa no seminário económico e tem o encontro oficial com António Costa, no Palácio da Bolsa. Para o último dia está prevista uma visita à Base Naval e ao Arsenal do Alfeite.

As propostas portuguesas para o programa foram feitas a pensar na vontade angolana de diversificar a economia. Esta semana, na conferência Angola: que mudança?, organizada pelo Clube de Lisboa e a União das Cidades Capitais Luso-Afro-Américo-Asiáticas (UCCLA), Alex Vines, director de investigação do Royal Institute of International Affairs (Chattam House), resumiu assim o problema: “Angola está viciada em petróleo. Sempre que há uma crise, fala em diversificar a economia. É a natureza cíclica de uma economia dependente de um único produto. Já era assim no tempo colonial.” Para complicar, a produção de petróleo está a cair quase 10% ao ano “e Angola está a subestimar esse declínio”.

As contas são simples: Angola “já produziu 1,9 milhões de barris por dia, hoje produz 1,4 milhões e em 2023 deverá produzir 1,2”, disse ao PÚBLICO um especialista em questões energéticas. Nos últimos meses, o novo Presidente aprovou legislação para tentar travar esta queda: as empresas petrolíferas passaram a poder desenvolver os campos marginais (cujas reservas são insuficientes para serem comercialmente viáveis), o modelo de tributação do gás é mais favorável e, nos campos de petróleo comerciais, a extensão da área de produção passou a ser mais liberal. Mas isso não chega, concordam todos os observadores contactados. A competição é grande e a China, apesar de exigir um certo nível de transparência no uso dos seus empréstimos, continua a investir em Angola. Só a Pequim, Luanda deve 23 mil milhões de dólares.