Eimuntas Nekrosius (1952-2018): o teatro perdeu “uma espécie de génio”
O celebrado encenador lituano, cujas repetidas visitas ao Porto foram vividas como acontecimentos, morreu na terça-feira, um dia antes de completar 66 anos.
Só uma inteligência invulgar, uma inteligência paradoxal, simultaneamente clínica e poética, poderia alguma vez imaginar que a potência dos desejos invariavelmente adiados de Olga, Macha e Irina, as três irmãs da peça homónima de Tchékhov, cabia toda na metáfora de um tampo de mesa a rodar, fatal como o destino, em cima de um palco, minutos a fio. Eimuntas Nekrosius, o encenador lituano que morreu esta terça-feira de ataque cardíaco, um dia antes de completar 66 anos, tinha essa inteligência. Quando pela primeira vez o público português se confrontou com ela, em 1997, no festival PoNTI, onde apresentou essa prodigiosa encenação de As Três Irmãs, foi um acontecimento. E acontecimentos seriam também (e cada vez mais sísmicos, arrastando uma invulgar corrente de público vinda de todo o país) as suas subsequentes visitas ao Porto, sempre a convite do Teatro Nacional São João (TNSJ), onde apresentou ainda duas fulminantes tragédias de Shakespeare (Macbeth, em 1999, e Otelo, em 2001), o poema épico lituano Estações (2003), de Kristijonas Donelaitis, e, finalmente, o também monumental Idiotas, a partir de Dostoiévski (2009).
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Só uma inteligência invulgar, uma inteligência paradoxal, simultaneamente clínica e poética, poderia alguma vez imaginar que a potência dos desejos invariavelmente adiados de Olga, Macha e Irina, as três irmãs da peça homónima de Tchékhov, cabia toda na metáfora de um tampo de mesa a rodar, fatal como o destino, em cima de um palco, minutos a fio. Eimuntas Nekrosius, o encenador lituano que morreu esta terça-feira de ataque cardíaco, um dia antes de completar 66 anos, tinha essa inteligência. Quando pela primeira vez o público português se confrontou com ela, em 1997, no festival PoNTI, onde apresentou essa prodigiosa encenação de As Três Irmãs, foi um acontecimento. E acontecimentos seriam também (e cada vez mais sísmicos, arrastando uma invulgar corrente de público vinda de todo o país) as suas subsequentes visitas ao Porto, sempre a convite do Teatro Nacional São João (TNSJ), onde apresentou ainda duas fulminantes tragédias de Shakespeare (Macbeth, em 1999, e Otelo, em 2001), o poema épico lituano Estações (2003), de Kristijonas Donelaitis, e, finalmente, o também monumental Idiotas, a partir de Dostoiévski (2009).
Frenesim groupie à parte, as visões fulgurantes de Eimuntas Nekrosius foram, objectivamente, um fenómeno especial na paisagem teatral europeia das últimas décadas, um fenómeno que conquistou a aclamação nacional e internacional a que tinha direito (em grande parte por acção do crítico italiano Franco Quadri, um militante nekrosiano, como justamente apontava a revista Teatro e Critica no seu obituário). Em Vilnius, onde começou por dirigir o Teatro da Juventude – vindo da mais antiga academia teatral russa, o Instituto Luchanarski, em Moscovo, que foi a sua escola – e acabou depois por sediar a sua própria companhia, a Meno Fortas (à letra, “a fortaleza da arte”), terá agora um funeral de Estado. Mas Nekrosius foi muito mais do que um herói local, como atestam a legião de seguidores fiéis que angariou fora da Lituânia assim que se internacionalizou em 1984 com Pirosmani, Pirosmani, o Prémio Europa de Teatro – Novas Realidades Teatrais que lhe foi atribuído cinco anos depois, e sobretudo a mítica frase do dramaturgo norte-americano Arthur Miller, que em 1989, depois de ter assistido a uma das suas encenações, terá dito algo como “este Nekrosius deve ser uma espécie de génio”. Mesmo os mais relutantes, como o crítico de teatro inglês Michael Billington, acabariam por “sucumbir lentamente à visão de Nekrosius”, e à “memorável excentricidade” das suas imagens, que construía de forma austera a partir dos mais pobres dos materiais, a água, a terra e a madeira, e da entrega incondicional dos seus actores: “Comecei a ver que havia método na sua loucura, e que ele usava motivos visuais e auditivos recorrentes para compor uma genuína reinterpretação da peça”, escreveu o crítico do The Guardian em 1999 a propósito do seu aclamado Hamlet de quatro horas, integralmente em lituano (a duração das suas encenações era sempre assim, épica: "O teatro é um antídoto contra a pressa insensata dos nossos tempos”, defendia, argumentando que “quanto mais intermitente é a atenção, mais os espectáculos devem ser longos”).
Em Portugal, onde chegou a orientar uma masterclass para um reduzido grupo de encenadores – foi em 2003, quando Estações teve a sua antestreia mundial no TNSJ, e mereceu, já de madrugada, uma ovação de pé de mais de cinco minutos –, Lúcia Sigalho resumiu o efeito Eimuntas Nekrosius a “um par de estalos bem assentes na cara”. “Diz-se que os espectáculos da Meno Fortas são objectos de vanguarda, mas parece que se está a assistir ao fim de qualquer coisa. É como se aquela linguagem viesse do fundo dos tempos”, comentou na mesma ocasião com o PÚBLICO o actual director do TNSJ, Nuno Carinhas.
Do próprio Eimuntas Nekrosius, uma figura em si mesma icónica (“físico potente, olhos claros de gelo, a cabeça sempre rapada a pente zero, personalidade solitária e apartada, mais propensa ao tormento do que ao sorriso”, descrevia esta terça-feira o diário La Repubblica), era mais difícil obter declarações. Explicou o seu silêncio numa das raríssimas entrevistas que concedeu fora da Lituânia (quase sempre em Itália): “Não quero falar a ninguém de como nascem os meus espectáculos. É uma coisa demasiado íntima.” Mais recentemente, à edição italiana do Huffington Post, dizia que estava na altura de começar a passar os seus segredos à geração seguinte: “A um certo ponto da vida começas a perceber que já não podes realizar todas as tuas ideias, por falta de energia ou de tempo. Portanto transfere-las para pessoas muito mais jovens com a esperança de que possam servir-lhes de guia, e de que os rapazes desenvolvam as suas próprias ideias de maneira mais livre e mais corajosa. É um processo natural, inevitável, como a passagem do testemunho numa estafeta.”
Os seus actores, que falavam por ele e agora lhe sobrevivem, foram muitas vezes porta-vozes dos mistérios do seu teatro eminentemente visual (“Estamos habituados a uma ideia literária do teatro, em que o teatro é uma coisa que se ouve e não se mostra. Mas a natureza do teatro é ser visto") e metafórico, cheio de achados cénicos tão simples quanto estarrecedores. “Há uma coisa que o distingue de todos os outros encenadores: nunca trabalha sentado à secretária", contou ao PÚBLICO o seu Otelo, Vladas Bagdonas, em 2001, descodificando tanto quanto possível o método Nekrosius: "Normalmente, ele sabe de antemão como vai ser o final. E quando o encenador sabe exactamente como vai ser a cena final, não há nada que não consiga resolver. Encontra sem problemas o caminho que conduz até lá." Oito anos depois, quando o acontecimento Nekrosius esteve entre nós pela última vez, Tauras Cizas, seu assistente de encenação em Idiotas, não usou meias palavras: “Ele tem um talento excepcional para criar ideias. É por isso que há quem diga que ele é um génio. As ideias dele são puro génio, e o resto é trabalho. Ele exige o máximo de si e dos outros.”
Arthur Miller disse-o 20 anos antes, e terá então acrescentado: se tivesse nascido em Inglaterra ou em França, esse Nekrosius seria uma figura mundial.