A síndrome de Entre-os-Rios
Este país onde não há Uber, onde é preciso soletrar “gentrificação” e onde não se pode alugar uma moto-elétrica nem ir ao cinema, ocupa a maior parte do território, mas muito pouco da nossa atenção.
Era uma manhã não muito diferente da de ontem quando Portugal acordou para a dura realidade de não ser o país que pensa que é, mas o país que de facto é. Durante a noite tinha caído uma ponte em Entre-os-Rios e com ela 59 vidas foram arrastadas pelas águas tumultuosas do Douro. A imagem do país rutilante da Expo'98, do Porto - Capital Europeia da Cultura, desabava na incúria e no abandono em que vivia grande parte do seu território.
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Era uma manhã não muito diferente da de ontem quando Portugal acordou para a dura realidade de não ser o país que pensa que é, mas o país que de facto é. Durante a noite tinha caído uma ponte em Entre-os-Rios e com ela 59 vidas foram arrastadas pelas águas tumultuosas do Douro. A imagem do país rutilante da Expo'98, do Porto - Capital Europeia da Cultura, desabava na incúria e no abandono em que vivia grande parte do seu território.
Esta semana não foi diferente. No domingo, cinco pessoas morrerem intoxicadas numa casa miserável aquecida a gerador. Na segunda, uma estrada desaparecia entre duas pedreiras e perante a sucessão trágica, muita gente terá feito a interrogação-lamento: “É isto que nós somos”?
É. É isto que também somos, nem que nem sempre o vejamos e quase sempre o esqueçamos. Um país onde há gente que continua a esgadanhar para viver e um país onde a incúria e a ganância matam. Este país onde não há Uber, nem Glovo, onde é preciso soletrar “gentrificação” e onde não se pode alugar uma moto-elétrica nem ir ao cinema, ocupa a maior parte do território, mas muito pouco da nossa atenção.
Para o litoral recuou o Estado, recuou a Comunicação Social, recuaram as empresas, vieram as pessoas, ficou o esquecimento. Há por isso uma ordem natural das coisas para que a síndrome de Entre-os-Rios nos assalte, como um rebate de consciência, sempre que uma desgraça fixa um novo ponto no mapa. Essa ordem é imparável, mas não nos pode ilibar da responsabilidade colectiva de zelar pelos mais frágeis de nós.
Avalie-se a responsabilidade dos autarcas que deixaram e das pedreiras que fizeram, mas num momento em que o país da capital procura transferir competências para o país das autarquias, não esqueçamos que a responsabilidade de zelar pela qualidade e segurança das infra-estruturas, num país que extinguiu as suas Direcções Regionais, deve permanecer junto de quem concentra recursos e funcionários, neste caso o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT). Também eles têm de nos responder porque continuarmos a ser aquilo que as tragédias nos lembram que somos
Neste Portugal de esquecimento fácil, não nos podemos perder perante a clássica interrogação: “Quando uma árvore cai numa floresta solitária, sem nenhum animal por perto para ouvir, será que faz um som?” Faz, faz, mas para ser ouvido propriamente, convinha que não continuasse a cair sozinha.