Alguém como nós

Porque os próximos Censos devem recolher dados étnicos e raciais

A meio da adolescência, em meados da década de 50, e tendo-se destacado nos seus estudos secundários, o meu pai foi levado um dia à presença de uma personalidade pública que desempenhava um cargo importante na hierarquia do Ministério da Educação Nacional. O motivo da entrevista era o de determinar se haveria condições financeiras para que o meu pai pudesse frequentar o ensino superior; órfão desde tenra idade, e tendo crescido numa instituição de acolhimento em Lisboa, entrar na universidade estava longe de ser uma certeza mesmo para quem se revelara até então um bom aluno.

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A meio da adolescência, em meados da década de 50, e tendo-se destacado nos seus estudos secundários, o meu pai foi levado um dia à presença de uma personalidade pública que desempenhava um cargo importante na hierarquia do Ministério da Educação Nacional. O motivo da entrevista era o de determinar se haveria condições financeiras para que o meu pai pudesse frequentar o ensino superior; órfão desde tenra idade, e tendo crescido numa instituição de acolhimento em Lisboa, entrar na universidade estava longe de ser uma certeza mesmo para quem se revelara até então um bom aluno.

Como o meu pai veio a descobrir nesse dia para ele inesquecível, as razões que lhe impediam o acesso ao ensino superior eram mais do que financeiras: foi-lhe dito nesse dia que o ensino superior não era para “alguém como ele”, quem é que ele julgava que era, e que a educação técnica que até então recebera servia-lhe muito bem. Muitos portugueses ainda hoje se identificarão com esta história, sendo herdeiros vivos de uma tradição de injustiça que só a democracia foi capaz de debelar; como o meu pai, também eles terão um dia sentido que eram portadores de uma peste, que só a experiência da liberdade veio mostrar ser um mal histórico, e não individual.

Eu não herdei essa peste: só soube do 25 de Abril de 1974 um ano depois quando o celebrei nas ruas e na escola livre; mas não tive de pedir autorização a ninguém quando, 13 anos depois, decidi frequentar um curso superior na universidade que eu escolhi frequentar, tendo, por mérito próprio e das circunstâncias criadas pela democracia, obtidos os resultados necessários ao acesso.

Todavia, não foi apenas um privilégio histórico e geracional aquele que me assistiu: foi também o privilégio de não ser considerado um intruso e um parasita numa república que, muito embora a lei não o diga, se destina na aparência apenas àqueles que se parecem com a maioria. Foi o privilégio de nunca ter sido barrado numa fronteira, revistado e maltratado pelas forças de segurança numa estação de comboios de uma linha suburbana; o privilégio de nunca me ter sido negado o direito a arrendar uma casa por causa da forma como me exprimo na língua portuguesa, ou de nunca me ter sido dito numa sessão de orientação vocacional que “alguém como eu” deveria ser marceneiro, que a universidade é para outros (estas formas de discriminação são denunciadas em depoimentos recolhidos pela jornalista Joana Gorjão Henriques em trabalhos publicados neste jornal). O privilégio de nunca me ter sido perguntado de onde eu era no meu próprio país, porque “alguém como eu” só poderia ter nascido num outro lugar. É que, não obstante ter ascendência africana por via materna, a mesma nunca foi visível a olho nu. Este privilégio é uma enfermidade.

Várias décadas após a instauração de um regime democrático são ainda muitos os portugueses a quem esse privilégio não assiste. Se é verdade que o 25 de Abril de 1974 criou as condições para que a peste da injustiça social baseada no preconceito fosse atacada, ela está ainda longe de ter sido ser erradicada no Portugal de 2018. A longa herança colonial garantiu que, muito depois de a ideia de raça enquanto facto biológico ter sido cientificamente desacreditada, as relações sociais continuem a ser fortemente marcadas pela desigualdade racial, no acesso à habitação e à educação, à justiça e ao trabalho, e, como foi recentemente confirmado pelo testemunho voluntário de uma escritora de literatura cor-de-rosa que não é “dada às etnias”, mesmo no acesso ao amor e às relações íntimas.

E é essa mesma herança colonial que se interpõe ainda como obstáculo à cidadania plena, sendo por regra considerados como estrangeiros e imigrantes os afrodescendentes nascidos e crescidos em Portugal. Não esqueçamos que é o próprio estado que em Portugal coloca o combate ao racismo sob a tutela do Alto Comissariado para as Migrações.

A importância dos Census
O atual Governo deu um passo importante para a alteração deste status quo quando, em setembro de 2017, anunciou que estaria a trabalhar com o Instituto Nacional de Estatística no sentido de incluir nos Censos de 2021 uma questão sobre a origem étnico-racial da população, tendo para o efeito criado um grupo de trabalho. No interesse do aprofundamento da democracia em Portugal, é imperioso que o trabalho desenvolvido por esse grupo prossiga em condições de normalidade, e que o processo culmine com a criação de um instrumento que permita a recolha de informação étnica e racial, a qual será facultada a título voluntário, de acordo com a identificação que os cidadãos e cidadãs estabeleçam com as categorias disponibilizadas.

É importante sublinhar que esta informação e as categorias de acordo com as quais ela será recolhida não incorrerá na reificação de preconceitos raciais; pelo contrário, as políticas que será possível conceber a partir dessa informação permitirão a correção de desigualdades históricas que são inaceitáveis num estado de direito democrático.

Vivo há mais de 20 anos nos EUA, um país em que essas categorias permitiram a criação de instrumentos legais que têm contribuído para a mitigação de injustiças históricas numa sociedade de matriz segregacionista; há quase vinte anos visito anualmente o Brasil, o último país a abolir a escravatura no hemisfério ocidental, mas em que a criação de políticas de ação afirmativa permitiram o acesso à cidadania de uma franja demográfica historicamente arredada dela (a título de exemplo, a Universidade de Brasília contava com 50, 6% de matriculados autodeclarados como negros, quinze anos após a implementação do sistema de quotas de acesso, de acordo com dados disponibilizados numa reportagem da plataforma Globo.com). É por demais elucidativo que, num país como no outro, os adversários destas políticas sejam também os inimigos declarados da democracia.

A prazo, serão essas políticas que permitirão a realização do ideal de uma cidadania universal em Portugal. E que garantirão que a expressão “alguém como nós” passe a significar apenas: cidadãos portugueses, homens e mulheres livres.