"Perigo" em Borba era "muito sério" há anos, mas ninguém fechou a estrada
Estudo de 2006 dava conta de zona com jazida "muito fracturada". Autarquias tinham conhecimento da falta de segurança. Estrada não foi encerrada.
Uma retroescavadora e dois automóveis foram arrastados para o interior de uma pedreira, na zona de Borba, no distrito de Évora, devido a um aluimento de terras, pelas 15h45 desta segunda-feira, provocando pelo menos dois mortos e quatro desaparecidos. Habitantes da zona disseram ao PÚBLICO que já tinham conhecimento da instabilidade da antiga Estrada Nacional 255.
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Uma retroescavadora e dois automóveis foram arrastados para o interior de uma pedreira, na zona de Borba, no distrito de Évora, devido a um aluimento de terras, pelas 15h45 desta segunda-feira, provocando pelo menos dois mortos e quatro desaparecidos. Habitantes da zona disseram ao PÚBLICO que já tinham conhecimento da instabilidade da antiga Estrada Nacional 255.
Há pelo menos quatro anos que a falta de segurança no troço já tinha sido notícia. Numa notícia de 2014, a Rádio Campanário refere que estava a ser equacionado o encerramento da estrada.
Na base desta medida estavam “estudos feitos tanto pelo Instituto Superior Técnico quer pela Universidade de Évora” e que “levaram a Direcção Regional a avaliar esta situação atendendo ao risco”.
Um estudo de 2006, intitulado Alguns indicadores geológicos e ambientais indispensáveis ao reordenamento da actividade extractiva: o caso do Anticlinal de Estremoz, revela que a antiga EN 255 atravessa várias zonas em que se verifica uma fracturação da jazida – em Borba, há uma zona “muito fracturada”. A análise é da autoria de Carla Midões, Patrícia Falé, Paulo Henriques e Carlos Vintém, do INETI - Instituto Nacional de Engenharia Tecnologia e Inovação.
A estrada não fechou ao trânsito.
Assunto "muito sério"
À data, o presidente da Câmara de Borba, António Anselmo, disse à Rádio Campanário que “este é um processo que começou a decorrer há quatro ou cinco meses, mas só agora foi colocado em cima da mesa e a Direcção Regional de Economia, através da secção de Geologia, diz que há uma série de estudos que metem em perigo a estrada”.
“Foram feitos estudos, ouvidos os empresários, houve uma explicação e já falamos com todos os proprietários de terrenos envolventes, mas estando em causa o perigo da estrada o assunto é muito sério”, afirmou António Anselmo.
À Rádio Campanário, o autarca afirmava ainda que "a câmara não tem que fazer obras na estrada, se existir algum relatório que prove que a estrada é insegura, a única coisa que se pode fazer é limitar o trânsito". E rematava: "É um processo que estamos a avaliar com muita atenção e muita calma."
O PÚBLICO tentou obter esclarecimentos junto do autarca, mas António Anselmo encontrava-se "incontactável".
Autarca de Borba está "de consciência tranquila"
Já ao final do dia, durante a conferência de imprensa dada com a Protecção Civil, António Anselmo afirmou estar de "consciência tranquila" e, apesar dos testemunhos que davam conta da fragilidade da estrada, António Anselmo garantiu que a situação estava "perfeitamente segura".
O autarca diz que falou com a Direcção Regional de Economia, mas afirmou que "as coisas estavam encaminhadas no sentido de ser seguro" e que não sabia "de nada em concreto" que indicasse o contrário. Não obstante, vincou que se houvesse alguma responsabilidade atribuída à autarquia, ela será assumida.
"Era uma questão de tempo"
Para o historiador Carlos Filipe, que está envolvido num projecto de estudo das pedreiras da zona de Borba e de Vila Viçosa desde 2011, o incidente foi "provocado pela mão humana". E aponta dois culpados: a exploração da pedreira e a gestão da via.
Há cerca de um mês, foram captadas algumas imagens por drone na zona das pedreiras de Borba, a propósito do estudo em que Carlos Filipe está a trabalhar. Nas imagens que retiraram conseguiram concluir que "havia ali uma zona com menos importância do ponto de vista do mármore, o que nos dava a entender que seriam mais argilas", diz. "O talude não tinha robustez de pedra. Se fosse um bloco de mármore, não caía. Não fracturava."
Habituado a passar no local, o historiador conta que "cada vez que havia chuva, aquilo servia como se fosse uma banheira e não havia um escoamento de águas". Não tem dúvidas. "Era uma questão de tempo." Mas apesar de notar esses problemas, não fez queixa. "Não me competia entrar nessa dinâmica. Com certeza que a empresa que explora a pedreira tem um engenheiro responsável."
O geólogo da Universidade de Évora, Luís Lopes, conta que a situação de perigo naquela zona "já era reconhecida". Os industriais das pedreiras locais — cerca de 30 só na zona do incidente — até já se tinham reunido entre eles e com as câmaras municipais para que a estrada saísse dali. "Mas não chegaram a um acordo."
Para o professor do departamento de Geociências, o incidente aconteceu por causa das fracturas no mármore, causadas pela exploração da pedreira. Quando estas fracturas existem, o mármore movimenta-se e dá origem ao aluimento dos terrenos. O geólogo nota, porém, que as responsabilidades não devem ser imputadas às indústrias. "No caso desta pedreira, houve estudos geotécnicos e fizeram o que lhes foi pedido."
Um episódio semelhante aconteceu "há alguns anos", no troço que liga Vila Viçosa e Bencatel. Porém, não houve vítimas porque aconteceu por volta da meia-noite.
"Passava lá tudo"
Em declarações ao PÚBLICO, Vera Calado, habitante de Borba, que testemunhou a queda da estrada, também dá conta desta sinalização de risco. "Não consigo precisar há quanto tempo, mas já tinham saído notícias nos jornais locais de que aquela estrada iria ter a circulação restrita apenas aos trabalhadores das pedreiras devido a problemas de segurança", conta.
Ilídio Gila, primo de um trabalhador da pedreira, confirmou ao PÚBLICO que “há anos se fala da insegurança da estrada” onde ocorreu a derrocada e que continuavam a circular por ela “muitas viaturas pesadas”, apesar dos alertas de que era uma estrada muito insegura. “Passava lá tudo”, acrescenta. A profundidade da pedreira ultrapassará os 50 metros. Se a derrocada tivesse ocorrido depois das 17h, “haveria muito mais mortes” por ser um local onde circulava muita gente.