Por detrás da “máscara” da indústria pecuária, esconde-se A Vaca que Não Ri
Rui Pedro Fonseca, sociólogo, escreveu um livro onde explica as poucas razões que as vacas exploradas e mortas pela indústria pecuária teriam para se rir — mesmo que conseguissem fazê-lo. Nele, arranca a “máscara” usada por um “sistema cruel”: “As práticas de exploração têm de ser expostas.”
Há uma “vaca que ri” porque vive livre num prado verdejante, onde pode comunicar com o resto da manada, comer relva e produzir leite destinado à cria que prospera, na sua companhia. Mas fora da “utopia” dos anúncios publicitários da indústria pecuária — e dentro da realidade da linha de produção —, há milhões de vacas que não se riem porque vivem e morrem sempre “encarceradas”, longe da “luz solar e do ar fresco, sem espaço para se mexerem, sem conseguirem comunicar com o resto da manada; “doentes” e “com feridas expostas”;” vítimas de “violações reiteradas” e “ordenhas mecânicas” várias vezes ao dia; alvo de “pancadas e descargas eléctricas”, “mutilações” e “inseminações forçadas” que geram uma cria de quem é, muitas vezes, imediatamente separada.
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Há uma “vaca que ri” porque vive livre num prado verdejante, onde pode comunicar com o resto da manada, comer relva e produzir leite destinado à cria que prospera, na sua companhia. Mas fora da “utopia” dos anúncios publicitários da indústria pecuária — e dentro da realidade da linha de produção —, há milhões de vacas que não se riem porque vivem e morrem sempre “encarceradas”, longe da “luz solar e do ar fresco, sem espaço para se mexerem, sem conseguirem comunicar com o resto da manada; “doentes” e “com feridas expostas”;” vítimas de “violações reiteradas” e “ordenhas mecânicas” várias vezes ao dia; alvo de “pancadas e descargas eléctricas”, “mutilações” e “inseminações forçadas” que geram uma cria de quem é, muitas vezes, imediatamente separada.
Quando um bife nos chega ao prato, escreve Rui Pedro Fonseca, “todas estas práticas violentas foram omitidas”. “Como poderemos, afinal, sentir empatia se não testemunhamos uma única parte do processo até que a vaca foi sujeita à morte e, posteriormente, fragmentada?” É esta “máscara” — usada como “defesa imprescindível” de um sistema que se esconde atrás de “representações idílicas” — que o sociólogo quer arrancar no livro A Vaca Que Não Ri – Animais, “Carne” e Leite Bovino na Cultura Dominante.
Não são “teorias da conspiração”, descarta o autor, logo nas primeiras páginas. O investigador de 39 anos garante que se fosse possível “aceder às práticas de maneio” dos animais criados para consumo, o consumo de produtos de origem animal “decairia de forma substancial”. A explicação é óbvia: “Se para a maior parte de nós o consumo destes animais é aceite como conveniente e prazeroso, cogitar sobre os respectivos processos de exploração pode constituir um processo penoso.” Dito de outra forma: pensar “na violência e na morte” inerentes à produção intensiva de milhões de milhões de seres sencientes levam a “sérios dilemas éticos”. E a um bife que, de repente, se torna bem menos apetitoso.
Será por isso que resistimos a uma “profunda reflexão ética” no momento em que escolhemos o que comer? O autor defende que o “mecanismo de fragmentar” o corpo do animal, a linguagem eufémica (“bife”, “bitoque”, “fêvera”), a falta de mediatização e escrutínio público das condições e dos processos de exploração animal e a própria localização das instalações intensivas, longe dos aglomerados urbanos, são aspectos chave para “que permaneçamos alheios e desligados emocionalmente face às cruéis práticas de exploração animal”.
O livro, lançado no início de Novembro, resulta de cinco anos de trabalho e do pós-doutoramento realizado no Centro de Investigação de Estudos em Sociologia, do Instituto Universitário de Lisboa. Nele, o sociólogo portuense — vegan há 16 anos e confesso activista pelos direitos dos animais — estudou O carnismo na Cultura mediática portuguesa, analisando os conteúdos dos três principais canais de televisão portugueses e de casos de estudo de anúncios publicitários bem conhecidos, protagonizados por “vacas felizes, bem tratadas e alimentadas”.
Ao “penetrar nas sombrias fendas da máscara”, o sociólogo põe a nu as questões éticas de reduzir um “ser vivo dotado de sensibilidade” a uma “coisa móvel” (termos usados na legislação portuguesa para descrever primeiro animais de companhia e depois animais de criação) e expõe os graves impactes ambientais de uma das indústrias mais poluentes do mundo, a gestão danosa dos recursos naturais (solo, água, energia, mau uso dos alimentos) e a “publicidade enganosa” cujo “objectivo é, tão-somente, suscitar a nossa adesão”.
Há 16 anos, vídeos gravados em matadouros e disponibilizados no YouTube por activistas “mudaram substancialmente a percepção” do investigador. Tal como acontece no maior parte dos casos, diz, decidir reflectir profundamente sobre um “sistema cruel” desencadeou “dilemas éticos” que abriram “o leque para novas opções e práticas alimentares diferenciadas das praticadas pela cultura dominante”.
Segundo dados da Happy Cow, há seis vezes mais restaurantes vegetarianos em Portugal do que havia há dez anos, sendo que um terço deles abriu portas entre 2016 e 2017. Na mesma década, o número de vegetarianos em Portugal terá quadruplicado, chegando às 120 mil pessoas. A maior parte delas terá entre 25 e 34 anos e será do sexo feminino, conclusões que não deixam Rui Pedro Fonseca espantado. “Os compromissos culturais em torno destes produtos são ainda muito fortes”, assegura, dizendo que existe um “consenso fabricado”. “A carne, principalmente, é um alimento muito simbólico. Está bastante enraizada com a ideia da masculinidade, de ter força física”, pelo que é “natural” que existam mais mulheres a abdicar dela.
Ainda, o consumo de leite e derivados, carne, ovos e peixe é visto pela grande maioria da população portuguesa “enquanto prática natural, normal e necessária”. E também por isso é que “a maior parte das pessoas que têm contacto com vegans ou vegetarianos usualmente tem um argumentário bastante padronizado. E também preconceitos.” Admite, ao P3: “Eu tinha os meus. Nomeadamente: a carne é o roteiro essencial para um homem, a carne tem a proteína por excelência, nós éramos caçadores, temos caninos descomunais.” Para isto, acrescenta, contribui também o uso da expressão “regime [vegetariano]”, que gera associações a outras palavras como “obrigatoriedade” ou “restrição”. “Há esta noção de que a comida vegetariana é muito restrita, quando na verdade é muito diversificada.”
Mas a discussão vai muito além do que cada um escolhe ao pegar no menu, acredita. “O pano de fundo da discussão deve ter como mote as repercussões de um consumo (totalmente desnecessário) de indivíduos cuja vontade de viver deverá ser mais valorizada relativamente à nossa vontade orientada pelo principio do prazer.”
Em último caso, comenta, é um paradoxo. Numa altura em que nos preocupamos cada vez mais com o bem-estar animal, “continuamos a comer animais, reproduzindo práticas (alimentares) que entram em conflito com os nossos valores”. Às “questões éticas”, acrescem “questões ambientais urgentes”. “Se nós queremos um futuro sustentável temos de fazer uma escolha. A agro-pecuária está a destruir o planeta e eu receio que o lobby seja realmente forte. Da nossa parte acho que, no mínimo, a redução é uma obrigatoriedade.”