Encoberto pelo verde do Picoto, um bairro vive afundado na miséria

As 50 famílias residentes no bairro do Picoto, todas de origem cigana, deparam-se com infiltrações de água, paredes enegrecidas pela humidade e temem o aluimento de algumas das casas. Além de degradado, o complexo habitacional é ilegal. Moradores querem ser realojados, mas câmara defende requalificação, apesar de não poder candidatar a obra a fundos comunitários.

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Com um cume de onde se avista praticamente toda a malha urbana de Braga, o monte do Picoto tinge de verde a zona sul da cidade. Mas esse manto arbóreo encobre, numa das suas encostas, um bairro em que a miséria aflora no espaço público e também no interior das casas, ao infiltrar-se nas suas paredes para as degradar.

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Com um cume de onde se avista praticamente toda a malha urbana de Braga, o monte do Picoto tinge de verde a zona sul da cidade. Mas esse manto arbóreo encobre, numa das suas encostas, um bairro em que a miséria aflora no espaço público e também no interior das casas, ao infiltrar-se nas suas paredes para as degradar.

Um acesso íngreme separa o complexo habitacional do Picoto do Estádio 1.º de Maio. No final da subida, duas linhas de habitação surgem perante os olhos. Com rés-do-chão e dois andares superiores, todas as casas estão pintadas de branco, mas manchadas de negro, devido à humidade. Em algumas habitações, as infiltrações e as fissuras são mais notórias perto das janelas. Noutras, porém, estendem-se por dois andares. Na casa mais próxima da estrada, uma cozinha onde os electrodomésticos são invadidos pela ferrugem antecede os degraus de acesso aos quartos e à casa de banho, exíguos para albergar uma cama ou um bidé.

Construído em 1998, graças a um investimento municipal de 1,9 milhões de euros, o complexo habitacional do Picoto alberga 50 fogos e 47 deles estão ocupados, todas por pessoas de origem cigana. Mas o bairro foi edificado num terreno pertencente à Arquidiocese de Braga e está, por isso, ilegal. 

Residente no bairro desde a sua construção, Hugo Salazar, hoje, com 39 anos, lembra-se do processo que levou ao realojamento das famílias ciganas que viviam em São João da Ponte, não muito longe do Picoto. A primeira ideia da autarquia então presidida por Mesquita Machado, recorda ao PÚBLICO, era realojar as pessoas de origem cigana na zona leste da cidade, então em expansão. “O Mesquita Machado e o vereador Nuno Alpoim vieram-nos mostrar o projecto das casas a ser construídas com o dinheiro enviado pela União Europeia. Toda a gente gostou”, diz.

As casas do Picoto, acrescenta, destinavam-se aos estudantes universitários, mas, ao invés, alojaram os moradores de São João da Ponte. “Construíram este bairro e enfiaram-nos aqui dentro”, afirma. “Depois, houve quem fosse pedir o projecto que nos tinham mostrado, mas tinha desaparecido”.

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Duas décadas volvidas, o morador descreve casos de crianças que não podem fazer os trabalhos da escola e de pessoas cujas doenças respiratórias são agravadas pela falta de condições, sobretudo em dias de chuva e de frio. “Os barracos em que vivíamos, junto à ponte, tinham mau aspecto, mas, por dentro, eram muito melhores. Não chovia. Aqui, chove”, compara.

Há também uma pessoa em cadeira de rodas que não consegue subir os degraus para ir à casa de banho, diz. Face à ausência de obras, Hugo Salazar afirma que o bairro está votado ao abandono pela câmara e pela empresa municipal para a habitação social, a BragaHabit. “Antes das eleições, vereadores e engenheiros vieram aqui ao bairro. Eles sabem a situação das casas e dos moradores. Quantos anos são precisos para uma intervenção no monte do Picoto?”, questiona.

Risco de desabamento 

O lixo salpica as ervas em redor das habitações e o alcatrão da rua entre as duas linhas de habitação. Com um contentor do lixo para as 50 famílias, Hugo Salazar queixa-se que a empresa municipal responsável, a Agere, só passa no local de 15 em 15 dias. Mas há um outro problema que o preocupa, para além da degradação: a segurança das próprias estruturas. “A rua está sustentada em algo oco, e há casas que podem ruir”, diz o morador.

Na rua e nos passeios, vêem-se pedaços de alcatrão que substituíram outros que já aluíram. Já as casas da linha de habitação mais próxima da EN 101 estão a descer, com a pressão exercida sobre a encosta. 

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Numa das casas dessa linha, reside a mãe de Sérgio Maia, presidente da comissão de moradores do Picoto. “Às vezes, queremos fechar as janelas e não conseguimos, porque a habitação está a descer. Já a porta de casa, ao fechar, bate sempre no chão”, explica. Para levarem a autarquia a intervir, os moradores, conta Sérgio Maia, já reuniram com o presidente da câmara. Além disso, têm-se recusado a pagar as rendas mensais – 21 euros -, por conhecerem pessoas de origem cigana residentes, por exemplo, em Guimarães e no Porto que pagam menos por melhores condições e por saberem que o bairro é ilegal. “Qualquer bairro construído tem de ter uma placa com o número do alvará e o ano da construção. Aqui não há. Este bairro está ilegal”, reitera Hugo Salazar.

Ânsia de realojamento e de integração

Para quem vive no Picoto, a única via para mudar para melhor é o realojamento. Hugo Salazar não acredita que a requalificação consiga resolver definitivamente as infiltrações de água e o frio. “Não há hipótese. O erro é do começo. Este bairro devia ser demolido”, afirma. Mas a exigência de melhores condições de habitabilidade não é o único motivo para pedir o realojamento. Depois de anos a viverem num bairro isolado, as famílias também querem uma oportunidade para se integrarem na sociedade e mitigarem os preconceitos de que costumam ser alvo. “Era bom acabar com este tipo de bairros, mas não para sairmos daqui e sermos isolados noutro. Não há problema em espalharmo-nos por várias zonas”, considera. 

O realojamento foi precisamente a solução defendida pelo vereador da CDU, na reunião de câmara da passada segunda-feira. Carlos Almeida admitiu que “não é fácil realojar todas as famílias de uma assentada”, mas vincou que o único futuro viável para o bairro, enquanto “projecto de habitação sem dignidade” e exemplo de “segregação social”, é a demolição, tal como na Ponte dos Falcões – um dos edifícios do complexo social edificado em 1979 já foi demolido e a BragaHabit está à espera de realojar uma família para demolir os dois que ainda faltam, avançou ao PÚBLICO o presidente da empresa, Vítor Esperança. 

O vereador comunista pediu, por isso, à autarquia para gizar um plano de alojamento, que dê prioridade às famílias com crianças e idosos, com problemas de saúde mais graves, e com piores condições de habitabilidade. Sugeriu ainda que as famílias sejam realojadas de forma dispersa, nas habitações desocupadas a cargo da BragaHabit – a empresa gere actualmente 767 fogos e apoia 1.090 famílias.

Impasse entre a câmara e a arquidiocese

O presidente da Câmara de Braga, Ricardo Rio, chegou a anunciar, em Julho de 2015, as demolições dos bairros da Ponte dos Falcões e do Picoto, mas hoje defende a requalificação do bairro situado perto do Estádio 1.º de Maio. 

O Orçamento Municipal para 2019 inclui as requalificações de bairros geridos pela BragaHabit, como o de Santa Tecla, com 181 habitações, e o das Enguardas, com 78, graças aos fundos do Norte 2020, no âmbito do Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano (PEDU). Mas não o no complexo do Picoto. 

O bairro, afirma ao PÚBLICO Ricardo Rio, “nem sequer estava elegível para os fundos do PEDU”, já que, formalmente, não é propriedade da câmara. A ilegalidade do bairro remonta à sua própria construção, num terreno pertencente à Arquidiocese de Braga. Desde então, as duas partes têm procurado um acordo para a posse do terreno ficar nas mãos da câmara. 

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Uma das hipóteses avançadas foi a de uma permuta. “Em troca pelo terreno do bairro, o município cedia à Arquidiocese um terreno mais abaixo”, explicou o autarca. A troca foi, contudo, inviabilizada, quando a autarquia, em 2012, ocupou parte do terreno a doar com um novo acesso rodoviário.

Na sequência da obra, a instituição católica exigiu, em primeiro lugar, que a câmara pagasse, no âmbito da permuta, a “parte do terreno que tinha deixado de poder utilizar”, mas, posteriormente, desistiu do acordo por “considerar que a parte remanescente do terreno já não tinha grande utilidade”. As únicas hipóteses agora em cima da mesa, admitiu Rio, são a compra do terreno, embora não tenha sido “ainda possível chegar a acordo quanto a valores”, ou a resolução do litígio em tribunal. “Temos evitado até ao limite ir para tribunal, mas pode não haver outra forma de resolver o assunto”, realçou.

Contactada pelo PÚBLICO, a Arquidiocese informou, através de um dos responsáveis, que vai exprimir uma posição sobre o impasse em torno do complexo habitacional do Picoto no decurso da próxima semana, através de um comunicado.

Com o futuro do Picoto num impasse, e o Inverno à porta, a rotina dos moradores vai, no curto prazo, prosseguir com fissuras nas paredes, infiltrações de água e frio.