O inferno do ruído está no meio de nós (e ninguém o consegue domar)
Ninguém parece conseguir parar o ruído, omnipresente e em crescendo nos centros saturados das grandes cidades e fora delas. O efeito na saúde dos cidadãos — que se sentem impotentes e desprotegidos perante este flagelo — é grave. Face à alarmante disseminação de uma cultura do ruído, a confiança nas autoridades e a eficácia da sua actuação é cada vez mais questionada. Os peritos que o P2 escutou clamam por novas abordagens ao problema, que ajudem a afinar o ambiente sonoro e a vida em sociedade
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Apesar de insuficientes, deram-se passos importantes nas últimas décadas em termos de consciência ambiental. Temos mais cuidado com o lixo. Existe apreensão pelo aquecimento global. Os comportamentos culturais vão-se transformando lentamente, como aconteceu no passado, com a limpeza nas praias, ou mais recentemente, com os plásticos. Mas quando se trata de ruído, barulho, música alta e contínua, em lugares públicos ou privados, parece existir condescendência, como se nada se pudesse fazer.
Em primeiro, porque o ruído é imaterial. Depois, parece passageiro. E, por último, porque o associamos à ideia de exaltação, o que tem mais força do que o silêncio. Mas o problema existe. E tende a agravar-se, principalmente, mas não só, nos centros urbanos saturados, onde os níveis de ruído e as suas fontes se multiplicam. No caso de Lisboa, os meses de Primavera-Verão são particularmente graves. Quando o ruído ocorre ocasionalmente na época de festas, com o seu calendário e lógica social, ainda se relativiza. Agora que se tenha tornado uma epidemia sistémica constante é mais preocupante, havendo cada vez mais especialistas em saúde pública a alertar para os efeitos graves e profundos do ruído.
Segundo dados da Agência Europeia do Ambiente, de 2015, o ruído ambiental é responsável por pelo menos 10 mil casos de morte prematura por ano na Europa e mais de 8 milhões de adultos sofrem de distúrbios de sono associados ao ruído. Todos os anos são admitidos nos hospitais europeus mais de 43 mil pessoas por doenças relacionadas com a poluição sonora e 900 mil casos de hipertensão por ano são originados pelo ruído ambiental. Há semanas, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou as últimas directrizes para a Europa em matéria de ruído, alertando para o excesso continuado nos ambientes urbanos, complexo de medir e de quantificar, mas com efeitos já isolados por diversos estudos: alterações no sono, problemas cardiovasculares, tensão, condutas agressivas, dificuldades de concentração, maior risco de obesidade abdominal ou diabetes, hipertensão, dificuldades de aprendizagem e de atenção entre os mais jovens, para além de afectar a saúde mental, o sistema metabólico e, claro, a qualidade de vida como um todo.
Apesar da legislação existente, paira uma sensação de impotência perante o tema. Não é apenas a fiscalização que parece ineficaz ou inexistente. São também os pressupostos base que evidenciam fragilidades. “As directivas europeias obrigam os municípios a mapear o ruído, usando indicadores médios baseados nas medições quantitativas, mas deixam de lado a experiência e a percepção dos utilizadores”, reflecte Raquel Castro, investigadora, directora e programadora do Festival Lisboa Soa, uma iniciativa anual que mistura trabalhos artísticos e ateliers didácticos e de consciência ambiental em torno do som.
“É importante entender que só uma abordagem multidisciplinar, que acrescente aos aspectos físicos do som os contributos das ciências sociais e humanas, pode ajudar a estabelecer uma relação entre ambiente sonoro e sociedade. Os planeadores urbanos têm de ter uma abordagem holística e incorporar a experiência humana no planeamento e desenvolvimento de áreas urbanas. A medição de ruído é uma abordagem redutora, já que as propriedades semânticas do som e a forma como é recebido e percebido pelas pessoas são ingredientes essenciais na afinação de um lugar.”
E mesmo aí, quando se fala de avaliação de ruído, o enquadramento parece redutor. “As mais diversas formas de ruído constituem um problema grave e, mais preocupante, é o quanto tem aumentado nas nossas cidades. Mas não só: esta é uma componente do ruído que não está legislada, daí a dificuldade dos profissionais de saúde pública e também dos cidadãos em explicar às autoridades os problemas de que padecem. As pessoas que têm as suas casas contaminadas por este ruído estão indefesas.”
Quem o diz é a professora Mariana Alves Pereira, perita internacional dos efeitos na saúde causados por exposições a infra-sons e ruídos de baixa frequência. “Existe uma imagem que representa bem esse tipo de ruído de baixa frequência, que é quando passam aqueles carros com um sistema de som com reforço de graves. O carro passa e aquela batida parece amortecida. Isso é o ruído de baixa frequência”, explica. “Se estivermos atentos, quando um carro desses passa ao longe, não se ouve a parte mais audível da música, como as vozes ou as linhas melódicas, mas chegam-nos os baixos, os sons de baixa frequência. Há uma propagação diferente.”
Segundo ela, no recente documento da OMS, mais uma vez o assunto é omisso. “Todas as recomendações para a medição do ruído mantêm-se numa unidade, o dBA, o que automaticamente exclui o ruído de baixa frequência da quantificação. Ou seja, reconhece-se o ruído de diversão, de trânsito, do caminho-de-ferro, etc, como fontes de ruído, mas não como sendo de baixa frequência, que é o que são. Esse tipo de ruído é o que incomoda por causa dessas componentes, mais do que as audíveis.”
Essa disseminação é experimentada no interior de edifícios, mesmo que a fonte geradora de ruído esteja a uma distância considerável. As emissões de média e alta frequência são, na maioria dos casos, atenuadas pelo solo ou pelas fachadas, sendo também absorvidas pelo ar que medeia entre a fonte e o receptor. Mas o ruído de baixa frequência é escutado ou sentido no interior das habitações, gerando reclamações por incomodidade, tendo em conta que o ser humano é mais sensível a essas frequências.
“Às vezes, nem apetece regressar a casa”
Mariana Ruivo, designer, residente na freguesia da Misericórdia, em Lisboa, sabe-o bem, lamentando a inoperância das autoridades. “Tanto eu, como o meu marido, e o meu filho, levamos com o ruído diário de música ao ar livre proveniente de terraços-rooftops, que começam a funcionar durante o dia e depois ainda levamos com música de espaços nocturnos que funcionam a céu aberto, quase todos os dias da semana, até de manhã. Não se pode abrir as janelas. Não se dorme. O meu marido telefona à polícia e nada acontece. É extenuante. Estamos numa tensão constante. Às vezes, nem apetece regressar a casa porque sabemos ao que nos vamos sujeitar. Estamos imersos num inferno de ruído.”
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O que é descrito não surpreende Mariana Alves Pereira. O tipo de ruído mais audível, segundo ela, encontra-se legislado, embora nem sempre monitorizado, mas a componente de ruído de baixa frequência não só não o está, como não é reconhecido pelas autoridades ou profissionais de saúde. “Alguns países já têm legislação contra o ruído de baixa frequência e existem cada vez mais pressões, a nível internacional, para que algo seja feito, porque o problema é real e está mais do que identificado. Mas até agora o cidadão que tem a sua casa contaminada por este tipo de ruído não tem nenhum tipo de protecção”, argumenta, dando como exemplo um caso que está a acompanhar em que os residentes num edifício de cinco habitações o tiveram de abandonar “porque está tudo em conformidade com a lei, mas as pessoas não aguentam o ruído”. E de que tipo de perigos estamos a falar quando submetidos a esse ruído?
“Inicialmente, os sintomas não são agudos. Por norma, na fase inicial, as pessoas queixam-se de que acordam cansadas. É o primeiro sintoma: privação do sono. Depois, se a situação se prolongar ao longo de meses, advêm consequências ao nível da memória ou problemas cognitivos. E se as pessoas continuarem a habitar na casa contaminada começam a surgir problemas gastrointestinais, problemas de pele ou do sistema respiratório. E, dependendo das fontes, também começam a manifestar-se sintomas cardiovasculares, nomeadamente taquicardias ou sensação de pressão no peito. Isto, claro está, para além de queixas mais comuns, como dores de cabeça. Mas a privação de sono acarreta logo muitas consequências.”
O facto de o assunto ser sonegado do debate público, o que ocorre muitas vezes, refere Mariana Alves Pereira, é as pessoas nem perceberem que os sintomas têm origem na exposição ao ruído. “Por norma, estão a dormir mal, sentem-se ansiosas, esquecem-se de coisas e vão ao médico. O normal é este não estar familiarizado com o agente de doença e, portanto, a partir destes sintomas um pouco etéreos, receita um comprimido para dormir e para ansiedade e já está. E a pessoa continua exposta ao agente de doença. Isto é gravíssimo, mas retrata mesmo o que está a acontecer.”
Perante esta denúncia, a pergunta que se impõe é: mas como é possível que não exista legislação que defenda os cidadãos? Por um lado, porque, precisamente, a consciência ambiental nestes domínios ainda é rudimentar, existindo pouca pressão pública concertada. Por outro, porque vivemos num mundo onde as “implicações económicas e financeiras” se sobrepõem. E Mariana Alves Pereira avança com uma comparação. “Até determinada altura, o amianto não foi reconhecido como substância cancerígena. Não porque não se soubesse, mas porque não havia uma alternativa economicamente viável. Assim que ela surgiu, toda a gente que sofreu problemas, nomeadamente cancros do pulmão por causa da exposição a amianto, foi pedir indemnizações e os custos hoje associados ao amianto são enormes. Imagine-se agora reconhecer que o ruído de baixa frequência é um agente de doença. Não seriam apenas as pessoas do ruído residencial, como também as do ruído ocupacional (indústria naval, aeronáutica, transportes, etc.) a constituírem-se como casos legítimos para requerer indemnizações.”
Ouvir a cidade
No caso das fontes de ruído urbano, segundo Mariana Alves Pereira, uma das principais queixas prende-se com discotecas e bares. “Ainda esta semana recebi uma reclamação do México, proveniente daquilo que deve ser o Bairro Alto ou Cais do Sodré lá do sítio, portanto, é algo transversal.” Mas certo é que o barulho se tornou-se omnipresente nas cidades, com música alta nas ruas, centros comerciais, lojas, esplanadas, terraços, restaurantes ou cafés, no meio dos motores, trânsito, alarmes, aparelhos de ar condicionado, aviões, buzinas, berbequins ou animações em qualquer esquina dos meios urbanos mais densificados, como acontece nos centros de Lisboa ou Porto. E o problema não é exclusivo das cidades.
“Neste momento, a nível europeu — aqui existem alguns casos, mas ainda é um assunto tabu — existe uma grande discussão à volta da colocação de parques eólicos próximo das habitações rurais. Não tenho palavras para exprimir a gravidade da situação em termos de saúde pública que daí advém”, diz.
Claro que o ruído não é uma preocupação recente da humanidade. Como recorda Raquel Castro, “na Roma antiga, Júlio César proibiu a circulação de carruagens durante a noite devido ao ruído emitido pelas rodas de ferro, que impediam o descanso”. Mas os problemas hoje são diferentes. “Até os sons naturais correm o risco de extinção — o que terá numerosos efeitos na forma como escutamos o mundo. Por isso, é importante perceber os riscos a que estamos sujeitos, porque a poluição sonora está a invadir cada vez mais não só as nossas cidades, como os ambientes ditos naturais, com efeitos no bem-estar, na distribuição da fauna e flora tanto no mar como em terra, na capacidade de escuta das gerações mais novas e no valor económico associado às zonas mais silenciosas — o silêncio é hoje um luxo a que nem todas as classes sociais conseguem aceder.”
Por vezes os interesses económicos sobrepõem-se às preocupações sociais e ambientais, sendo por isso “importante que os decisores políticos e os planeadores urbanísticos ouçam a cidade”, alerta Raquel Castro. “Não podem ficar surdos perante os habitantes, até porque isso, no fim de contas, reflecte-se nos processos de gentrificação que vão transformando os centros em espaços vazios, direccionados apenas para o turismo.”
O engenheiro electrotécnico Carlos Almeida vive na Mouraria, em Lisboa, na Rua de São Cristóvão, e tem estado atento a esses processos. Como quase toda a gente que vive em bairros históricos, está ciente de que viver ali acarreta sempre algum barulho e desordem. Não tem uma visão idealizada da realidade. Mas sente que o equilíbrio que, apesar de tudo, é possível, está posto em causa. “Por um lado, estou a levar com o ruído da Rua de São Cristóvão, uma rua popular, para o qual tenho alguma tolerância porque é barulho de vizinhança. Faz parte. Mas de repente começaram a abrir estabelecimentos meio indiferenciados por todo o lado, onde a música funciona como chamariz e, na imaginação de quem gere aqueles espaços, quanto mais alta melhor, para puxar pelo turista. E isso, como é evidente, torna-se uma chinfrineira geral, com música ao vivo, amplificada, que traz transtornos graves, para além do abuso.”
Mas não é apenas o ruído de proximidade que está em causa. No caso da Lisboa das sete colinas, quem habita em zonas altas absorve ruído a distâncias consideráveis. “O som propaga-se”, reflecte Carlos Almeida. “Quando estou no lado direito da casa, oiço o ruído das ruas, e do esquerdo levo com o som dos espaços ao ar livre de grandes unidades hoteleiras, como o terraço do hotel Mundial, o Topo no Martim Moniz, ou as esplanadas do Carmo. Há dias em que as condições atmosféricas fazem com que aquilo pareça uma caixa de reverberação. Tranca-se as janelas e mesmo assim do outro lado da casa ainda se ouve aquele tipo de som grave e aplacado. É Verão, está um calor insuportável, e nem sequer se pode abrir as janelas. A coisa só acalma com a chuva. É surreal, mas é um alívio a chuva.”
Experiência semelhante relata o produtor de documentários Duarte Neves, a residir na freguesia da Misericórdia, em Lisboa, referindo-se ao conjunto de discotecas que vai do Lust in Rio ao Urban. São espaços que funcionam ao ar livre até de manhã, situados junto ao rio, entre o Cais do Sodré e Santos, num exemplo discutível de monocultura herdado dos planeamentos urbanos dos anos 1990, tendente a concentrar actividades económicas, em vez da coexistência. “Quando telefono para a polícia às 5 ou 6 da manhã, é comum dizerem-me que nessa noite receberam inúmeras queixas de Cacilhas, do outro lado do rio, o que dá para perceber o nível de propagação de ruído de que estamos a falar.” O caso não espanta Mariana Alves Pereira. “O que se difunde a essa distância é o som de baixa frequência, que em superfícies como a água ganha características de disseminação ampliadas e a maior distância.” E dá um exemplo. “Os faróis emitem aquele som meio abafado mas grave precisamente porque se propaga pela água. Não é um som agudo ou estridente. Esse perde rapidamente a força.” E dá outro exemplo. “Em 2004, ficou conhecido um caso de uma casa no Restelo que vibrava quando os silos da Trafaria funcionavam.”
O que pode fazer o cidadão incauto nestas situações? As experiências são múltiplas, mas todas elas apontam para um sentimento de impotência. “Já fui consultar a legislação e está lá tudo com grande minúcia, mas depois percebe-se que, na prática, não funciona por falta de vontade politica”, argumenta Carlos Almeida. “As autoridades têm uma atitude liberal em relação ao ruído, olhando para os mecanismos de controlo como uma restrição do afluxo de receitas à cidade, sem perceberem que é pela regulação que é possível manter alguma sanidade. Isto é um ecossistema frágil, onde tudo está interligado, sejamos residentes ou visitantes, e é preciso cuidar dele.”
Chamem a polícia
Por norma, como reacção, num primeiro momento, telefona-se para a polícia do bairro. “Dizem que vão lá mandar alguém, mas ao mesmo tempo dizem que não é competência deles.” Depois, segue-se a Polícia Municipal. “Mandam-nos para uma aplicação onde se pode reclamar, argumentando que na Câmara têm acesso aos limitadores de som dos diferentes espaços, mas na verdade o que se percebe é que isso só tem algum efeito quando existe uma grande quantidade de queixas. Só a partir daí é que existe alguma intervenção. Até lá, o laxismo. E isso tem também que ver connosco, cidadãos, porque não estamos atentos ao ruído de uma forma geral, como estamos com o lixo nas ruas, por exemplo. Há um efeito de deixar andar. Essa falta de resposta política tem também que ver com a ausência de percepção e de acção pública sobre o problema.”
E isso é constatável quando se fala destes assuntos em contextos de sociais. “A primeira coisa que me dizem, de forma paternalista, é: ‘Pois, tens de sair dali, não é?”, diz-nos Clara Soveral, técnica de contabilidade, a habitar na zona do Martim Moniz. “Ou então, ‘mas já compraste tampões para os ouvidos?’ Ou seja, relativizam por completo o que nós dizemos ou fazem-nos sentir que o melhor é desistir e ir, sei lá, viver para Marte! Para já não falar dos telefonemas à polícia, que nos fazem sentir que têm mais do que fazer do que se preocuparem com o ruído. Estão sempre a fazer qualquer coisa que é muito mais importante para a comunidade. E é isto.”
Experiência semelhante relata Duarte Neves. “Liga-se à polícia, recorre-se à câmara e a sensação é a de que estamos numa terra de ninguém. Há uma noção de total desprotecção”, diz, contando que é gravemente atingido pelo ruído proveniente do espaço Lust In Rio, situado junto ao rio, funcionando ao ar livre, com música de DJ ou ao vivo, até às seis/sete da manhã, com autorização da câmara e do Porto de Lisboa.
“Telefona-se para a PSP às 5 da manhã e dizem-nos que estão a prender bandidos. De seguida para a municipal e é uma confusão sistemática, sem que percebamos o que fazem exactamente, como se aquilo de que nos queixamos fosse uma futilidade. Depois, falam-nos dos limitadores de som e nós percebemos que aquilo está pensado para espaços fechados, mas não para música propagada ao ar livre e, pior ainda, que a medição que é efectuada é sobre a soma de ruído ao longo de toda a noite. Ora não é preciso ser um entendido para perceber que é a partir das 4 da manhã que aqueles espaços vão aumentando o volume do som. Por norma, o pico de ruído é já de madrugada. É inacreditável.”
“A app, por exemplo, é uma boa ideia do ponto de vista teórico”, reflecte Clara Soveral. “É um indicador de que realmente o município tenta estar junto dos cidadãos e eu acredito nisso sinceramente porque sei que aquilo de que estamos a falar é muito complexo. Mas posta esta ressalva devo dizer que as minhas experiências têm sido surreais. Já me queixei da música e do barulho da praça do Martim Moniz ou de espaços como o terraço O Topo através dessa aplicação e invariavelmente a resposta, por email, é que o problema foi solucionado, depois de uma brigada lá ter ido. Ora como é que alguém pode levar isto a sério?! Claro que nada foi solucionado, até porque são questões sistémicas e não ocasionais.”
“Um processo nada claro”
Por norma, quando as reclamações são frequentes, o município, através da divisão de ambiente e energia, marca uma visita à habitação do queixoso para serem efectuados ensaios acústicos para eventualmente regular o limitador sonoro instalado no estabelecimento. E aí começam as confusões, segundo a experiência de Duarte Neves. “O município forneceu os nossos dados a uma empresa privada contratada pela entidade da qual nos queixávamos, neste caso o Lust In Rio, o que é no mínimo estranho, porque imaginámos que fosse a câmara a tratar do assunto e até solicitámos sigilo. Ou seja, a câmara passou o nosso contacto a uma empresa que depois viria a ter uma atitude ambígua, dando a entender que o dispositivo já estava montado, perguntando ‘se sempre queríamos que fossem a nossa casa’. Sentimo-nos ludibriados. A câmara lava as mãos de responsabilidades, vindo no final dizer que tinha sido feita medição na habitação de um outro queixoso e o assunto estava resolvido. Um processo nada claro. Se a câmara quer transformar um bairro residencial numa outra coisa, que seja clara com os cidadãos sobre o que quer fazer, para eles decidirem sobre a sua vida. Agora, ambiguidades é que não!”
Mariana Ruivo viveu três anos em Aarhus, segunda maior cidade da Dinamarca, e quando compara as experiências também menciona a falta de transparência das políticas urbanas. “Em primeiro lugar, na Dinamarca, existe sensibilidade em relação ao ruído na opinião pública, verificável até na forma como as pessoas estão no espaço público, que aqui não existe de todo. E em segundo existe uma relação de confiança com as autoridades. As coisas são claras. O cidadão sabe com o que conta. Aqui não.”
Começa pelas licenças de funcionamento dos estabelecimentos, argumenta. “Aqui é uma confusão”, e dá exemplos. “Esse espaço, o Lust In Rio, era esplanada, depois foi bar e agora é discoteca ao ar livre. É o vale-tudo. E o terraço-rooftop The Garden é o mesmo. Fizeram uma operação urbanística com mais dois pisos em cima do prédio que alberga a empresa Farfetch, depois começaram a funcionar sem licença e sem qualquer atenção ao ruído e ainda por cima argumentando publicamente que têm preocupações ambientais porque têm lá uns vasos no espaço. É risível!”
E continua. “Percebemos que a cidade se está a transformar — e em muitos aspectos para melhor, sem dúvida — mas isto ainda não é uma terra sem lei. E aí as autoridades têm de ser claras: querem promover a barulheira em bairros residenciais, licenciando todos os abusos das indústrias e negócios, ou promover o equilíbrio? A sensação é de que tudo é aleatório.”
A solução, argumenta, é a cidadania atenta, apontando o caso do bairro de Santa Catarina — que tem sido notícia desde o Verão por causa do caso do Miradouro do Adamastor — que avançou agora para um abaixo-assinado, que vai na centena de assinaturas, tendente ao encerramento do terraço-rooftop The Garden, que abriu precisamente na altura em que o caso do Adamastor foi divulgado. “Por um lado, o presidente da câmara diz que o encerramento do Miradouro foi, entre outras coisas, por causa do ruído dali proveniente pondo em causa o descanso de alguns moradores. Por outro, a mesma câmara permite desde o Verão que uma discoteca ao ar livre, o The Garden, com reforço de graves e DJ todos os dias — repito, todo os dias — funcione a seu bel-prazer, prejudicando seriamente os moradores da mesma zona, até em maior número, pondo não só em causa o direito ao descanso, como o bem-estar psicológico das pessoas, como a consistência e a vida quotidiana do próprio bairro.”
Uma cultura de escuta
Como é que se sai deste limbo, para lá das leis e dos regulamentos? “É fundamental a criação de equipas pluridisciplinares, que através de um trabalho de investigação especializada e permanente no terreno, e adoptando uma visão holística sobre o ambiente sonoro das cidades, possa actuar social e politicamente no sentido de melhorar o mundo acústico e, consequentemente, a nossa qualidade de vida”, reforça Raquel Castro. A estratégia deve passar por incorporar não só uma dimensão quantitativa, mas também qualitativa da paisagem sonora. “Depois, é necessário perceber que o som tem de ser trazido para todas as disciplinas que possam ter impacto no ambiente sonoro. É fundamental que os arquitectos tenham mais e melhores conhecimentos sobre acústica ou que trabalhem com especialistas desta área desde o primeiro minuto da concepção de projectos. Por último, é necessário fomentar uma cultura de escuta que não se concentre apenas em produzir menos ruído, mas que origine ouvintes que, à medida que adquirem consciência de si mesmos, se tornam mais responsáveis pelo barulho que geram.”
Com formação em acústica e vibrações, e responsável pela empresa de consultoria e engenharia do som Inacoustics, Octávio Inácio é da opinião que a situação é na actualidade, apesar de tudo, melhor. “Hoje existe maior preocupação com a acústica dos edifícios, em particular por causa das exigências de quem veio para cá investir. Temos vários projectos de hotéis em Lisboa e Porto, em que se nota que as exigências do cliente final são elevadas do ponto de vista da acústica. Onde existe menos preocupação é na habitação. Quando um construtor faz uma obra, mesmo que tenha um projecto realizado por um arquitecto e pelos especialistas, incluindo a acústica, muitas vezes o trabalho não corre como deveria e o cliente compra uma casa sem saber que tipo de isolamento é que tem ou se cumpre com os requisitos acústicos.” Às vezes, revela, é tudo uma questão de custos, principalmente no caso de estabelecimentos comerciais. “Existem métodos de cálculo que permitem verificar os níveis de ruído que são emitidos à volta dos edifícios vizinhos, para que estejam dentro de patamares adaptados a uma coabitação saudável. Isso é uma coisa. Outra são os custos, que podem ser elevados, e a monitorização.”
Numa coisa todos estão de acordo: a política do ruído evoluiu na última década na Europa. E até Mariana Alves Pereira, apesar das graves lacunas que aponta no contexto actual, se revê nesta conclusão. Mas hoje também se reconhece na maior parte dos fóruns internacionais que o ruído tem sido abordado de forma menos prioritária do que outros problemas de cariz ambiental (da poluição do ar à da água) e que é urgente inverter essa equação. A questão é que, ao mesmo tempo que o problema vai sendo identificado, a espiral de ruído compacto não abranda. Pelo contrário, vai-se fortalecendo nos centros urbanos saturados das cidades, afectando a nossa saúde física e mental, multiplicando-se com uma facilidade tal que parece paralisar a capacidade de reacção dos cidadãos e das autoridades.
E o maior paradoxo de todos é que, afinal, a música, o som e o ruído planeado e sustentado, não têm de ser motivo de conflito. Pelo contrário, podem e devem ser motivo de prazer. Será que ainda vamos a tempo?
Os áudios e vídeos que acompanham este artigo foram recolhidos por jornalistas do PÚBLICO e leitores