O “Brexit” e a crise do Ocidente
O “Brexit” que Theresa May está a defender contra tudo e contra todos, com uma determinação e uma coragem extraordinárias, permite uma defesa europeia em que o Reino Unido tenha o seu lugar.
1. Os últimos dias têm sido férteis em sinais indesmentíveis de que o Ocidente, enquanto realidade geopolítica e enquanto expressão de um conjunto de valores universais, está mergulhado em profunda crise. E nada é mais perturbador e mais preocupante sobre o futuro da ordem internacional e das democracias, incluindo as europeias e o seu espaço de integração.
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1. Os últimos dias têm sido férteis em sinais indesmentíveis de que o Ocidente, enquanto realidade geopolítica e enquanto expressão de um conjunto de valores universais, está mergulhado em profunda crise. E nada é mais perturbador e mais preocupante sobre o futuro da ordem internacional e das democracias, incluindo as europeias e o seu espaço de integração.
A eleição de Donald Trump e o “Brexit” são as duas faces mais evidentes e mais preocupantes desta crise ocidental, mergulhando na crise e na indefinição os dois grandes países anglo-saxónicos que estiveram na base da nova ordem internacional criada depois da II Guerra, assente no multilateralismo, na economia de mercado, na defesa dos direitos do indivíduo e na democracia liberal. A integração europeia foi um dos pilares fundamentais dessa ordem, tal como a aliança transatlântica. A queda do Muro, a implosão da União Soviética e o fracasso histórico do comunismo não abalaram os seus pilares, antes começaram por dar-lhe mais força e mais legitimidade. Como hoje sabemos, foi apenas um interregno de dez anos para que emergissem novas potências e velhos credos a desafiá-la.
A crise financeira e a Grande Recessão deixaram marcas profundas nas democracias ocidentais e empalideceram o seu modelo de capitalismo. Aceleraram a vertiginosa ascensão económica da China. O gigante chinês emerge hoje no mundo como a superpotência capaz de desafiar o poderio americano e a hegemonia ocidental. A previsão dos mais optimistas, segundo a qual quanto mais a China enriquecesse mais os chineses exigiriam liberdade, falhou rotundamente. Apesar do terrorismo, a famigerada “guerra das civilizações” não chegou a declarar-se, como previa Samuel Huntington, mas as sementes do ódio aos outros foram lançadas nas sociedades liberais.
A Rússia abandonou o seu caminho (tumultuoso) em direcção ao Ocidente, regressando, nas palavras de William Taubman, aos três pilares em que assentou a ordem czarista: autocracia, ortodoxia e nacionalismo. Putin não é Estaline, é candidato a Czar. Trump abandona os grandes princípios da hegemonia ocidental: o comércio livre e a abertura ao mundo. Nega a própria ideia de Ocidente, a sua História, que ignora, a ordem internacional que o seu país construiu, as alianças em que assentou.
2. A Europa não resistiu às consequências da Grande Recessão, ao contágio americano e à emergência dos populismos e dos nacionalismos, nascidos da revolta contra as elites nacionais e europeias. O projecto de integração está gravemente ferido, ainda que não mortalmente. As celebrações do Armistício reflectiram isso mesmo, para além da beleza, da comoção, das palavras plenas de significado de alguns dos líderes mundiais que estiveram presentes em Paris.
O papel que Trump se reservou para si próprio foi, porventura, o sinal mais preocupante, reflectido no polegar para cima, de camaradagem e de cumplicidade, que Vladimir Putin lhe reservou, na sua ausência do Fórum da Paz ou no cancelamento da visita ao cemitério onde jazem dois mil marines americanos que morreram nos combates finais e decisivos da Grande Guerra, sem conseguir entender sequer por que nunca poderia faltar. Os tweets insultuosos que disparou contra o seu homólogo francês mal regressou aos “States” são, como escreve o Financial Times, ”uma viragem indecorosa”. Podia ter aproveitado a oportunidade para se afirmar como um líder junto dos aliados. Foi apenas “pequeno”.
Mas esteve também presente nas duas cerimónias paralelas que decorreram em Paris e em Londres, sem que, perante o Arco do Triunfo, Emmanuel Macron tivesse reservado uma palavra para a grande ausente da primeira fila da tribuna que assistiu à homenagem aos soldados que tombaram pela França. Theresa May estava em Londres, ao lado da Rainha, para homenagear os milhões de jovens britânicos que tombaram pela Europa e pela França, lado a lado com os soldados franceses, desde a primeira hora, nas mesmas trincheiras desoladas e mortíferas que ceifaram uma geração.
As duas cerimónias são inseparáveis uma da outra. O mundo, disse o Presidente francês, veio defender e morrer pela França. Porque a França era a França? Porque a queda da França diante do imperialismo alemão significaria a queda da Europa e a emergência de uma potência hegemónica continental que desafiaria abertamente o Reino Unido e os Estados Unidos? Porque era a pátria da Declaração dos Direitos do Homem, mas que o mundo anglo-saxónico igualmente consagrara na sua ordem constitucional? Macron quis sublinhar, em primeiro lugar, a parceria indestrutível entre os dois inimigos de então – o que está certo –, deixando na sombra as condições indispensáveis que tornaram essa parceria possível a bem de toda a Europa.
A Europa para a eterna glória da França é hoje um sonho impossível. A Europa perante o mundo e perante si própria sem a sua componente atlantista, assente no pilar britânico, não é a mesma Europa. A Europa sem a América, que abandonou o seu papel de “potência europeia”, precisa de redefinir o seu lugar mundo, o que será impossível sem a liderança francesa (e alemã) desde que a França percebe que tem de liderar em nome da Europa.
A outra grande lição da Grande Guerra é que os vencedores não podem humilhar os vencidos e tentar impedi-los de tornarem a pôr-se de pé. Se a guerra contra o imperialismo alemão era justa e travada em nome de valores, então a paz devia ter preservado esses valores. Mas os “14 pontos” do Presidente Wilson rapidamente desapareceram perante a lógica nacionalista que dominou o Tratado de Versalhes, deitando à terra europeia as sementes da guerra seguinte.
3. Há, talvez, um exemplo recente dos mal-entendidos que tantas vezes assume a retórica europeia, quando se tenta dissociar da realidade. Macron defendeu um “exército europeu” a partir da nova iniciativa conjunta de 11 países da União no sentido de uma força de intervenção europeia. Foi uma figura de estilo que agrada aos franceses e Macron precisa de agradar aos franceses.
Vários países (como Portugal) lembraram que não era esse o objectivo. A imprensa encheu-se de títulos sobre as palavras de Angela Merkel no Parlamento Europeu, subscrevendo o “exército europeu”. A chanceler deu um passo em frente porque tem de reconhecer, como ela própria disse, que a Europa já não pode contar com a garantia de segurança dada pelos Estados Unidos por via da NATO, numa altura em que a Rússia se volta a afirma como uma ameaça. Falou do “exército europeu” como objectivo de longo prazo (“um dia”), apresentou-o como um sinal de que uma “guerra civil” europeia seria impossível. Estamos ainda muito longe disso.
Apenas um pequeno exemplo. A Bélgica acaba de anunciar a sua intenção de adquirir 34 caças F35, produzidos pela americana Lockeed-Martin, para reequipar a sua Força Aérea nos próximos sete anos. Em detrimento do Eurofighter-Thiphon do consórcio entre britânicos, alemães, italianos e espanhóis, e dos Rafales franceses. As razões são várias e justificáveis, embora alguma imprensa francesa tenha classificado a decisão de “traição”.
4. Quando discutimos furiosamente o “Brexit”, normalmente deixamos de parte algumas parcelas fundamentais desta conta. O “Brexit” que Theresa May está a defender contra tudo e contra todos, com uma determinação e uma coragem extraordinárias, permite uma defesa europeia em que o Reino Unido tenha o seu lugar. O “Brexit” dos ideólogos nacionalistas que argumentam com a rendição definitiva, não à Europa, mas à Alemanha, como se não fosse o Reino Unido que tivesse vencido a II Guerra, nunca permitiria que tal viesse a acontecer.
May tenta manter as condições para que não haja uma ruptura trágica para o seu país. De manhã enfrenta a sanha dos deputados em Westminster que continuam a sonhar com Hitler e com o Império. À tarde, aguenta os abandonos sucessivos de alguns dos seus ministros. À noite, enfrenta uma centena de jornalistas, horas a fio, sem nunca soçobrar, sem nunca dar sinais de fraqueza, com a mesma simplicidade elegante e com um sorriso nos lábios.
Como escreve o Financial Times, para além da solução ideal (ficar na União), o plano de May é o único que pode controlar os danos. Menos conformista, Timothy Garton-Ash escreve no The Guardian que “a porta da Europa ainda está aberta – mas o Reino Unido tem de avançar rapidamente”. Esteve em Bruxelas para testar as possibilidades que restam ao seu país de não cometer suicídio. Defende uma solução radical: no pressuposto de que o acordo é chumbado em Westminster, haverá a oportunidade de um novo referendo. Tenhamos fé.