Medo: o olhar assustador de Bob Woodward sobre a Casa Branca de Trump

O veterano e respeitado jornalista agarra-se à velha noção de objectividade, num tom que parece ser o antídoto perfeito para os rugidos na Fox ou no Twitter. Como perfil do Presidente, o seu livro é devastador.

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O livro baseia-se em entrevistas com alguns dos mais próximos conselheiros de Trump Al Drago/Reuters

É difícil imaginar um retrato mais perturbador de um presidente do que o feito por Bob Woodward sobre os dias finais de Richard Nixon: paranóico, envenenado pelo poder, a dar pontapés nos tapetes e a falar com os quadros nas paredes. Mas os primeiros tempos da presidência de Donald Trump, tal como são retratados por Woodward no livro Medo (que acaba de ser editado em Portugal, pela D. Quixote), são surpreendentemente parecidos e, de alguma forma, ainda mais desconcertantes.

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É difícil imaginar um retrato mais perturbador de um presidente do que o feito por Bob Woodward sobre os dias finais de Richard Nixon: paranóico, envenenado pelo poder, a dar pontapés nos tapetes e a falar com os quadros nas paredes. Mas os primeiros tempos da presidência de Donald Trump, tal como são retratados por Woodward no livro Medo (que acaba de ser editado em Portugal, pela D. Quixote), são surpreendentemente parecidos e, de alguma forma, ainda mais desconcertantes.

Então como agora, os Estados Unidos enfrentavam uma crise de liderança, com um presidente incapaz de lidar com a função.

Tanto em Medo como em The Final Days, escrito em conjunto com Carl Bernstein, Woodward mostra como uma investigação federal ensombra e acaba por se tornar uma obsessão, paralisando a Casa Branca. Num momento em que se fala tanto de uma possível destituição, Medo está cheio de ecos de Nixon, incluindo a incapacidade de Trump de se concentrar e a sua recusa em ler os relatórios que lhe fazem sobre os temas. Os assessores de Nixon receberam ordens para não lhe dar para ler nada mais complicado do que um artigo da revista Reader’s Digest.

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Medo é um livro importante, não só porque levanta questões sérias sobre a capacidade do Presidente para o cargo, mas também devido ao autor. A investigação obstinada de Woodward levou à demissão de Nixon. Escreveu ou foi co-autor de 18 livros, deu notícias em primeira mão enquanto jornalista e editor do Washington Post e ganhou dois prémios Pulitzer [os mais prestigiados prémios de jornalismo]. O seu trabalho tem sido factual e incontestado. (O seu julgamento não é, certamente, perfeito, e ele próprio tem feito autocrítica em relação a textos escritos antes da guerra no Iraque, onde não foram encontradas armas de destruição maciça.)

Durante o caso Watergate, Woodward e Bernstein estiveram muitas vezes sozinhos. Agora, a torrente de revelações e opiniões diárias é um desafio. Mas o que era importante nos meticulosos textos de Woodward nos anos de 1970 é ainda mais valioso hoje: a sua total devoção à procura “só dos factos”, através de uma pesquisa compulsiva e de entrevistas cujas gravações guardou para o seu livro, tornando-o um narrador fiável. Numa época de “factos alternativos” e de tweets corrosivos sobre notícias falsificadas, Woodward mantém os padrões da verdade.

Num momento em que redes sociais e a televisão por cabo estão cheios de jornalistas que disparam informações sobre a Casa Branca e em que Trump acusa a imprensa de ser “inimiga do povo”, Woodward agarra-se à velha noção de objectividade jornalística. “O meu trabalho não é defender a posição de ninguém”, disse em Março à Vox. “Penso que o nosso trabalho não é gostarmos ou odiarmos as pessoas que estamos a tentar explicar ou compreender. É dizer exactamente o que fizeram, o que pode significar, o que as motiva e quem elas são.”

Em livros sobre oito presidentes, Woodward evitou sempre fazer julgamentos ou acrescentar a sua própria análise. A sua insistência em apoiar-se em diálogos textuais, a partir de entrevistas, motivou críticas, incluindo da jornalista e escritora Joan Didion, que lhe chamou “estenógrafo”. Mas, hoje em dia, o tom sóbrio de Woodward parece ser o antídoto perfeito para os rugidos na Fox ou no Twitter. A autoridade da reportagem obstinada, completamente despida de opinião, é o que dá ao livro a sua credibilidade.

Teste da memória

Tem havido outros relatos sobre a disfunção da Casa Branca de Trump e das insuficiências do Presidente, mas nenhum tão revelador e convincente como Medo, baseado nas recordações de testemunhas oculares, muitas vezes reforçadas com datas e transcrições de conversas.

O livro Fogo e Fúria, de Michael Wolff, foi um best-seller, mas parece basear-se demasiado na sua principal fonte, Steve Bannon. Outro sucesso de vendas recente, Unhinged, foi escrito pela antiga conselheira da Casa Branca e estrela do programa Aprendiz Omarosa Manigault Newman, que tinha sido despedida e possivelmente tinha contas a ajustar.

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Omarosa, quando a vida na Casa Branca ainda lhe era favorável Carlo Allegri/Reuters

Mas Medo dá uma imagem mais completa, baseada em entrevistas com alguns dos mais próximos conselheiros do Presidente. Woodward resiste à reportagem em ritmo acelerado que a Internet exige, visitando personagens fora dos seus gabinetes e testando a sua memória.

Woodward abre o livro com uma história assassina sobre dois conselheiros próximos do Presidente a sabotarem as suas instruções. Trump tinha ordenado que fosse escrita uma carta a anunciar a denúncia dos EUA de um acordo comercial com a Coreia do Sul. O seu então principal conselheiro económico, Gary Cohn, e o secretário de gabinete, Rob Porter, ambos fontes importantes no livro, viram que a carta seria um desastre. Por isso, Cohn tirou-a de cima da secretária do Presidente. Com a sua fraca capacidade de concentração, o que Trump não vê não existe. A iniciativa permitiu ganhar tempo e matou uma decisão impulsiva do Presidente que não tinha passado por nenhum dos canais necessários.

“A realidade é que os EUA, em 2017, estavam ligados às palavras e acções de um líder imprevisível e emocionalmente exausto”, escreve Woodward. “Membros do seu gabinete uniram-se para bloquearem os seus impulsos mais perigosos.”

Medo apoia esta avaliação numa trajectória cronológica, da chegada de Bannon à liderança da campanha, em 2016, à demissão, em Março, de John Dowd, o advogado que representava o Presidente na investigação do conselheiro especial Robert Mueller (sobre a alegada interferência russa nas presidenciais). Vezes sem conta, há histórias que ilustram tomadas de decisão irresponsáveis de Trump e uma correria louca a seguir, por parte dos seus conselheiros, para desfazerem os danos.

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Algumas das histórias mais explosivas, incluindo o chefe de gabinete do Presidente a chamar-lhe “idiota” e o secretário da Defesa, Jim Mattis, a ignorar a ordem para assassinar o líder sírio, Bashar al-Assad, foram reveladas antes da publicação. Rob Porter, o chefe de gabinete, surge sempre a tentar adiar os esforços de Trump para abandonar tratados. Imagens que transmitem a frustração e o pânico dos conselheiros, que se vêem como protectores do povo contra um presidente fora de controlo.

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Trump, Jared Kushner, o vice-presidente Mike Pence e o chefe de gabinete Rob Porter no primeiro dia do Presidente na Sala Oval Jonathan Ernst/Reuters

Um exemplo bastante vivo envolve a decisão do Presidente de banir as pessoas transgénero do serviço militar. Como é habitual, os seus conselheiros tinham preparado um memorando com quatro opções. Mesmo antes de ter lido o memorando, Trump anunciou no Twitter a sua decisão de banir as pessoas transgénero, apanhando de surpresa o seu secretário da Defesa, James Mattis, e toda a liderança militar.

Joseph Dunfor, o chefe das Forças Armadas, enviou logo uma carta a declarar que a antiga política ficaria em vigor até que Mattis desse mais instruções. Entretanto, os tribunais federais apresentaram os argumentos preliminares contra a decisão de Trump. No dia 1 de Janeiro de 2018, o Pentágono, em cumprimento de uma ordem judicial, começou a aceitar recrutas transgénero. Woodward usa esta história para ilustrar o caos que se segue, invariavelmente, aos caprichos transmitidos no Twitter.

Como perfil de Trump, o livro é devastador. Até os leitores mais fatigados serão abalados pelos vários exemplos da sua infantilidade e crueldade. Ele denuncia os seus generais com uma linguagem tão violenta que deixa atónito o seu secretário de Estado. Goza com um fato que H.R. McMaster (ex-conselheiro) usou numa entrevista dizendo que é o que um vendedor de cervejas vestiria. Saúda o conselheiro de Segurança Nacional (John Bolton) dizendo: “Você outra vez?” Imita o sotaque sulista do procurador-geral (entretanto despedido), Jeff Sessions, e chama-lhe “atrasado mental”. Diz ao seu secretário do Comércio, Wilbur Ross, de 79 anos, que “perdeu as capacidades” e que não deve continuar a fazer negócios.

“O comércio é mau”

Cohn, que é uma das principais personagens, alarma-se com o facto de Trump não compreender as bases da economia. O Presidente acha que é um rasgo de génio chamar à sua proposta de corte de impostos, a única lei substancial aprovada no Congresso durante o seu primeiro ano de mandato, a “Lei Corta. Corta. Corta”. Num rabisco infantil feito na transcrição de um discurso, reproduzido no livro, o Presidente escreve: “O comércio é mau.”

Como explica Woodward, “o Presidente agarra-se a uma visão ultrapassada da América — locomotivas, fábricas como enormes chaminés, trabalhadores atarefados em linhas de montagem”. Quando Cohn pressiona Trump sobre essa ideia, o Presidente responde: “É assim. Tenho estas opiniões há 30 anos.”

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Trump "explode" quando lhe tentam explicar a situação no Afeganistão Mark Wilson/Reuters

Em livros anteriores, Woodward debateu de forma profunda o processo de tomada de decisões e a política externa. Aqui isso foi mais difícil. O Presidente parece completamente desligado e mal informado, não consegue acompanhar reuniões e quando McMaster tenta explicar as políticas para o Afeganistão, Trump explode contra ele, Mattis e os seus generais: “Quero sair de lá. E vocês dizem-me que a resposta é reforçarmos a nossa presença.”

Há detalhes pequenos e fascinantes espalhados aqui e ali: Trump nunca toca num teclado de computador, e ficaram por preencher 16 páginas na resposta a um depoimento à pergunta sobre a sua ocupação. As histórias de fazer cair o queixo são contadas com a assinatura de Woodward, numa narrativa subtil.

A investigação

Outro hábito de Woodward é fazer declarações duras sobre as pessoas que não colaboram com ele. (Trump, por exemplo, não foi entrevistado e numa conversa telefónica com Woodward, em Agosto, disse que ninguém lhe falou sobre qualquer pedido de entrevista e que teria falado com o autor.) Por outro lado, as fontes que colaboram são muito elogiadas. É sem surpresa que se vê Porter descrito como alguém que “tentou ser um mediador honesto que facilitava a discussão”.

Os leitores que queiram saber coisas sobre a investigação de Mueller vão ficar desapontados. O que Woodward revela são as preocupações de Dowd, que tem a certeza que o Presidente vai cometer perjúrio e pode acabar na cadeia, se aceitar testemunhar. Ainda assim, o advogado não acredita que Mueller tenha uma acusação sólida em mãos. O livro foi terminado antes da condenação de Paul Manafort e do acordo de colaboração de Michael Cohen, o antigo advogado de Trump em Nova Iorque.

Medo termina em suspense, com a demissão de Dowd. “No homem e no Presidente Dowd viu a falha trágica. No bate-boca político, nas evasões, nas negações, no Twitter, nos gritos contra as fake news, na indignação. Trump tinha um problema que Dowd reconhecia, mas nunca foi capaz de lhe dizer: ‘És um cabrão de um mentiroso.’”

No fim, as mentiras foram a perdição de Nixon.

Exclusivo PÚBLICO/Washington Post