Tal como nos anos 90, os miúdos querem cancelar a propina
A descida do preço das propinas é uma “boa notícia”, sim, mas “não chega”. A propósito do Dia Internacional dos Estudante, o P3 falou com quem tenta recuperar a principal luta estudantil dos anos 90.
“Actualmente, não sou estudante por causa das propinas. Não tenho dinheiro para as pagar.” A confissão é de Bárbara de Sá, que vive no Porto e trabalha na área da restauração. Foi durante a licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, que Bárbara, de 21 anos, se juntou ao movimento Cancela a Propina. Apesar de ter o pagamento das propinas assegurado pelos pais, teve de trabalhar para poder suportar a estadia e parte dos gastos em Lisboa. Quando terminou o curso, gostava de ter prosseguido para mestrado. Mas essa não era uma opção viável: “Ser-me-ia impossível continuar a estudar, porque ninguém consegue, mesmo trabalhando, pagar uma propina, pagar uma renda de um quarto todos os meses e sobreviver.”
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“Actualmente, não sou estudante por causa das propinas. Não tenho dinheiro para as pagar.” A confissão é de Bárbara de Sá, que vive no Porto e trabalha na área da restauração. Foi durante a licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, que Bárbara, de 21 anos, se juntou ao movimento Cancela a Propina. Apesar de ter o pagamento das propinas assegurado pelos pais, teve de trabalhar para poder suportar a estadia e parte dos gastos em Lisboa. Quando terminou o curso, gostava de ter prosseguido para mestrado. Mas essa não era uma opção viável: “Ser-me-ia impossível continuar a estudar, porque ninguém consegue, mesmo trabalhando, pagar uma propina, pagar uma renda de um quarto todos os meses e sobreviver.”
São vários os casos como o de Bárbara entre os membros do Cancela a Propina, um colectivo que hoje reúne mais de 200 pessoas em Lisboa, no Porto e em Coimbra. Nascido no ano lectivo de 2016/2017, pela mão da associação de estudantes (AE) da FCSH, hoje afirma-se como um movimento social independente de qualquer AE ou partido político — e ambiciona tornar-se nacional, abrindo as portas a qualquer pessoa, de qualquer idade e ocupação, que não se reveja no pagamento de propinas.
Há um ano, o movimento alastrou-se a Norte, começando a ganhar força na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Foi por essa altura que Fernando Pimenta, estudante de Arquitectura de 24 anos, se juntou ao grupo. Ao P3 conta, com orgulho, que “desde que começou este ano lectivo, o movimento no Porto tem ganho mais força” e já extravasou as Letras e Belas-Artes, faculdades que costumam estar na linha da frente destes movimentos “porque os alunos que lá estudam pagam propinas todos os meses e só vêem as condições a piorar”, completa Bárbara. “É mais fácil ligares-te à luta anti-propina quando te apercebes de que as propinas que pagas não resolvem os problemas que vês na tua faculdade.” Ainda assim, nas assembleias que se realizam quinzenalmente nas várias faculdades do Porto, encontramos alunos de Engenharia, Ciências, Direito e até estudantes mais novos, do ensino secundário.
A ideia base do movimento é que deveria ser o Estado a encarregar-se da totalidade das despesas do ensino superior e que fazê-lo é apenas “uma questão de vontade política”, explica Fernando. E Bárbara acrescenta: “O somatório do orçamento militar e dos últimos resgates da banca davam, sem dúvida alguma, para financiar o ensino superior totalmente desde o início da democracia até agora.”
Esta luta não é nova. Na década de 90, a implementação do regime de propinas no sistema de ensino superior público foi alvo de forte contestação do movimento estudantil. Os argumentos daqueles que depois foram apelidados de “geração rasca” são os mesmos que o Cancela a Propina esgrime. Diziam que a medida colocava em causa o carácter democrático do ensino superior, limitando o acesso universal e tornando-o elitista, e acusavam o Estado de se desresponsabilizar do cumprimento de um dos seus deveres fundamentais. Os valores pagos pelos estudantes, recorde-se, passaram dos 6,5 euros anuais, no ano lectivo de 1991/92, para os 250 euros, em 1992/93.
No entanto, os dois jovens que falaram com o P3 acreditam que agora existe outro tipo de desafios. “Hoje precisas de desconstruir conceitos que já estão interiorizados”, explica a jovem de 21 anos. “As pessoas já estão habituadas a que as propinas existam, aceitam o discurso que assegura que elas são necessárias para promover a justiça social e não imaginam o financiamento do ensino superior e a sua sobrevivência sem elas. Já estão habituadas a que o Estado se desligue dessa responsabilidade.”
Há um mês, o Bloco de Esquerda anunciou ter chegado a acordo com o Governo para que, no Orçamento do Estado de 2019, o tecto máximo das propinas se fique pelos 856 euros, menos 212 euros do que o valor aplicado actualmente. O movimento discutiu este avanço em assembleia e a conclusão foi unânime: “É uma boa notícia, mas não chega. Porque enquanto alguém for excluído por questões financeiras, a nossa luta não está terminada.” Um problema que a atribuição de bolsas de estudo não resolve, acrescenta Bárbara: “Quem sofre mais com a propina não são as pessoas que têm menos rendimentos em Portugal, porque, à partida, têm direito a bolsa. As que mais ficam excluídas no ensino superior são aquelas que não são pobres o suficiente para terem uma bolsa, mas também não têm capacidade para pagar as propinas.”
Na Constituição da República Portuguesa lê-se, no artigo 76.º, que “o regime de acesso à Universidade e às demais instituições do ensino superior garante a igualdade de oportunidades e a democratização do sistema de ensino”.
A luta não se faz “só” contra a propina
“Quão diferente seria o ensino se o seu acesso não fosse mediado pela propina?” É Fernando que atira a questão ao ar. A discussão alonga-se entre os dois, mas converge numa ideia só: seria possível ter a universidade como um espaço de acesso público, em que os alunos deixam de ser vistos como utilizadores pagadores para passarem a ser, em conjunto com os professores e funcionários, “membros de um mesmo tecido que constitui as faculdades”.
“Colocar para trás esta relação de poder de prestador de serviços-cliente é dar igual direito a todos os que participam no dispositivo de ensino de projectar nele aquilo que são as suas ideias, aspirações e projectos. Estamos a falar de uma democratização da própria prática disciplinar também”, argumenta Fernando. Neste universo, nunca lhes seria recusada a requisição de uma sala, tal como sucedeu na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, quando membros do Cancela a Propina tentavam encontrar um espaço para se reunirem. Isto “porque os alunos não podem requisitar espaços e, se o fizerem, têm de pagar”, relata o estudante de Arquitectura.
Nos próximos tempos, e porque o número de apoiantes do movimento tem vindo a aumentar, o colectivo vai publicar um novo manifesto, em substituição àquele que foi divulgado quando o movimento aderiu ao Facebook. Para já, estão focados em recolher assinaturas na petição “Pelo fim da propina no Ensino Superior”, criada em Fevereiro, para que a possam apresentar em Plenário da Assembleia da República.