Dois líderes do Khmer Vermelho condenados por genocídio

Nuon Chea e Khieu Samphan estão a cumprir pena de prisão perpétua por crimes contra a humanidade, mas a nova condenação é importante para o debate sobre a verdadeira intenção do regime.

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O tribunal especial criado para julgar antigos líderes do brutal regime do Khmer Vermelho, no Camboja, condenou pela primeira vez duas pessoas por genocídio. Nuon Chea e Khieu Samphan já estavam a cumprir penas de prisão perpétua por crimes contra a humanidade, mas a condenação por genocídio é um marco importante na discussão sobre o que de facto aconteceu no país entre 1975 e 1979.

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O tribunal especial criado para julgar antigos líderes do brutal regime do Khmer Vermelho, no Camboja, condenou pela primeira vez duas pessoas por genocídio. Nuon Chea e Khieu Samphan já estavam a cumprir penas de prisão perpétua por crimes contra a humanidade, mas a condenação por genocídio é um marco importante na discussão sobre o que de facto aconteceu no país entre 1975 e 1979.

Ao condenar os dois antigos líderes do regime neste julgamento em particular, o tribunal especial apoiado pelas Nações Unidas torna-se no primeiro órgão oficial, em quase 40 anos, a declarar que o que aconteceu no Camboja durante o regime do Khmer Vermelho foi um genocídio segundo a definição da lei internacional.

É comum encontrarem-se referências ao genocídio no Camboja, mas até hoje nunca tinha ficado claro que os crimes brutais cometidos por responsáveis como Pol Pot, Nuon Chea e Khieu Samphan constituíram, tecnicamente, um genocídio.

Nuon Chea, "número dois" de Pol Pot, foi condenado por genocídio contra os muçulmanos cham; e Khieu Samphan, Presidente entre 1976 e 1979, foi condenado por genocídio contra o povo vietnamita do Camboja.

Campos de morte

Para cumprir uma utopia maoísta de uma sociedade agrária pura, onde não houvesse moeda nem cidades, os Khmer Vermelho esvaziaram em poucos dias os centros urbanos do país após tomarem o poder, numa das maiores marchas forçadas da história moderna. Quem desobedecesse era executado, e o mesmo destino era dado a quem fosse considerado inimigo do povo – intelectuais, membros do regime anterior ou membros das minorias.

A economia colapsou e a fome, as doenças, as purgas de um regime paranóico e os trabalhos forçados nas cooperativas agrárias criadas às ordens de Pol Pot mataram dois milhões de pessoas. O pesadelo só terminaria em 1979, quando as tropas vietnamitas invadiram o Camboja, instalando um governo aliado e empurrando para a selva os guerrilheiros Khmer.

Foi preciso esperar até 2003 para que o regime de Phnom Penh acordasse com as Nações Unidas a criação de um tribunal para julgar os responsáveis pelas atrocidades, e mais oito anos para que Chea e Samphan se sentassem finalmente no banco dos réus. Em 2014, foram condenados a prisão perpétua por crimes contra a humanidade.

As vítimas do regime morreram à fome, torturadas, exaustas ou de doença em campos de tortura, ou foram espancadas até à morte em execuções em massa.

"Sociedade homogénea"

Há anos que se discute se os crimes cometidos pelo regime constituem um genocídio, já que a esmagadora maioria das suas vítimas eram, tal como eles, cambojanos.

Durante a leitura do veredicto, o juiz Nil Nonn disse que o Khmer Vermelho tinha como política eliminar os muçulmanos cham e o povo vietnamita "para criar uma sociedade ateia e homogénea sem divisões de classes".

Os cham "foram espalhados por aldeias khmer para que as suas comunidades fossem divididas e completamente assimiladas na população cambojana", disse o juiz.

"Todos os soldados vietnamitas e civis que entraram [na prisão] S-21 foram catalogados como espiões e considerados inimigos. O destino desses prisioneiros já estava determinado à partida, e todos eles acabaram por ser executados", disse ainda o juiz Nil Nonn.

Os condenados, Nuon Chea e Khieu Samphan, afirmam que estão inocentes.

O director do Centro de Documentação do Camboja, Youk Chhang, congratulou-se com as condenações anunciadas esta sexta-feira, salientando que são particularmente importantes para as minorias do país.

"Vêm afirmar a humanidade colectiva das vítimas e reconhecer o terrível sofrimento por que elas passaram", disse Youk Chhang à agência Reuters. Mas para a maioria dos cambojanos, o mais importante é que os líderes do Khmer Vermelho foram condenados – e não especificamente por causa da condenação de genocídio.

"O que lhes interessa mais é que o Khmer Vermelho, que matou milhões de pessoas, vai ficar na prisão para sempre."

Último julgamento

Este julgamento foi o último do tribunal especial criado em meados da década passada para julgar crimes cometidos pelo regime do Khmer Vermelho. A sua criação nunca foi pacífica – as vítimas e familiares pedem justiça, mas muitos actuais líderes políticos do Camboja, que foram guerrilheiros do Khmer Vermelho, querem pôr um ponto final na prestação de contas com o passado.

Um desses líderes é o actual primeiro-ministro, Hun Sen, que desertou para as tropas vietnamitas em 1977, no auge das purgas, e depois ajudou a derrubar o Khmer Vermelho.

Ao todo, o tribunal condenou três pessoas. Nuon Chea e Khieu Samphan foram condenados por genocídio e crimes contra a humanidade, entre outros, e estão a cumprir penas de prisão perpétua.

Em 2010, o tribunal condenou Kaing Guek Eav ("Duch") por crimes contra a humanidade. "Duch" foi o director da prisão de Tuol Sleng (S-21), um campo de tortura onde morreram 18 mil pessoas. Foi condenado a 35 anos de prisão – de que só iria cumprir 19 por estar preso há vários anos –, mas em 2012 um tribunal superior da ONU aumentou a pena para prisão perpétua.

Dois outros líderes do Khmer Vermelho, Ta Mok e Ieng Sary, chegaram a ser acusados mas morreram antes da conclusão dos seus processos.