Vai e dá-lhes música! (In memoriam Mac Miller, 1992-2018)
Nessa estranha noite de Setembro, minutos antes de me perguntarem se já sabia das “novas” (quanta perversidade nisto), acabara de enviar uma mensagem: “Gostas de mac?”. Ia acrescentar o parêntesis “Mcdonald’s, do Mac Miller já sei que sim”, mas acabei por não o fazer. Terão sido as batatas fritas menos saborosas que alguma vez provei na vida, já sentado, transido, sem saber o que fazer com um bilhete nas mãos para o Spike Lee dali a dez minutos. Novamente sentado, agora na sala, já o primeiro plano no ecrã: um mar de mortos, estes já não nadam, dois dedos que levo à frente dos olhos como o De Niro na sala de cinema no Taxi Driver. Lutei até à última para que, nestas páginas, o título do artigo sobre SWIMMING , o disco de Mac Miller editado em Agosto, fosse “Aprende a nadar, companheiro!”, mas, ossos do ofício, perdi. Não me interessava tanto a canção do Sérgio Godinho; o que queria era interpelá-lo a ele, Mac, uma palmada nas costas, dar-lhe a mão, contar-lhe que também eu ando para aqui a nadar, que somos muitos os que faltaram às aulas de natação (ninguém nasce ensinado, ou não?). Algo que até podia ter acontecido, fosse eu diligente o suficiente; o editor, que se me confessa igualmente apaixonado pelo disco, diz-me que, tivesse eu feito a entrevista, e faríamos capa com o disco. E eu, palerma, que já entrevistei tanta boa gente a quem não tenho nenhum interesse particular em dar uma palmada nas costas, nem me lembrei dessa possibilidade. E agora, olha, agora Inês é morta, como morta ficou também a possibilidade de eu testemunhar a doçura, a graça, a simplicidade que lhe apontam na hora em que, depois de nos ter dado essa maravilhosa canção chamada Come back to earth, se decide a voltar lá para cima. Mac Miller não possui uma obra fabulosa; nos últimos dois anos, contudo, deixou dois formidáveis discos (The Divine Feminine e SWIMMING), obras-primas da música popular americana do século XXI – num rico espectro que abrange o hip-hop, a pop, o funk, a soul, o R&B – que, pelo fundo mapeamento emocional que as insuflava, pelo universo e temperamentos perfeitamente clássicos, helénicos, shakespeareanos, do seu criador, consolidaram, junto de um público mais adulto e exigente, aquilo que já fizera de Miller uma referência para uma geração mais nova, como Dylan, Cohen ou Bowie são para outras. Encontrei-me com Mac já tarde, mas, com toda a certeza, no melhor momento da sua música (da vida, já não sei); o timing tardio não impede, porém, que me comova enquanto leio um sem-fim de miúdos contando como cresceram, desde os 12, 13 anos, com os seus discos, nele vendo um amigo do liceu desde o tempo em que, cachopo, se abanava castiçamente naquele footage caseiro do videoclip de Best Day Ever. Esse mesmo adolescente que dirá alguns anos depois: “Overdosing is just not cool. There’s no legendary romance. You don’t go down in history because you overdose. You just die”. Não estou certo de, hoje, já o conhecer verdadeiramente, pois que existem muitos Macs, desdobramento que, reflectindo a riqueza da sua obra, foi, outrossim, mental, sinal de um espírito severamente perturbado: os múltiplos pseudónimos com que assinou discos praticamente desconhecidos estão aí para serem devidamente redescobertos, do inesperadíssimo horrorcore de Delusional Thomas (disco homónimo de 2013, alegadamente feito num período particularmente intenso de consumo de drogas, e cuja última faixa inclui um featuring com... Mac Miller) ao Larry Lovestein cuja voz ainda não estava pronta, em 2012, para acompanhar a sublimidade jazzística do LP You, passando pelos ambientes exclusivamente instrumentais de Larry Fisherman (Run On Sentences), momentaneamente interrompidos pela tristíssima, belíssima letra de Smile, um dos seus mais bem escondidos tesouros. A sua música transbordava de vida e de morte, e ele, enfim, parece ter querido advinhar a segunda: “Swear the height be too tall / So like September I fall”. Esses últimos dois discos são daqueles que nos deixam uma desmedida vontade em lhe ouvir o próximo, testemunhar os caminhos que tomaria o seu som (que, não sendo “inovador”, era singular no âmbito da música popular contemporânea), tomar o pulso às curvas da sua alma. Quando tentei descrever o último minuto do disco, sugeri que fechássemos os olhos para aquele maravilhoso final de sintetizadores oníricos a ecoarem no êxtase total. Omiti, no entanto, o que, na altura, também me passou pela cabeça: que era um final muito... final, tom angelical de despedida – e omiti porque não o quis puxar para baixo (ainda a interpelação), a tal palmada nas costas, vamos lá ser optimistas com isto, pronto. Outra forma de omissão foi a que ele nos deixou em 2009 (“It ain’t 2009 no more / Yeah, I know what’s behind that door”): para o quê (o céu? o mar?) ou para quem dá a porta a que ele se refere, perguntava eu tomando de referência a janelinha (escotilha?) da capa do disco. Disse que SWIMMING não é o típico disco de “superação”, com isso pretendendo fazer notar a maturidade do discurso, mas olha, a maturidade para as malvas, antes o tivesse sido. Escrevi, ainda, que era um disco perfeito – e é, embora eu nunca tenha querido que o fosse pelos mesmos motivos que Yourcenar o insinuou nas memórias do imperador. “Foi então que uma melancolia momentânea me apertou o coração, pensei que as palavras acabamento, perfeição, contêm em si a palavra fim: talvez eu tivesse somente oferecido mais uma presa ao tempo devorador”. Por isso, e já que ele fez questão de insistir que Life Can Wait, digo-lhe agora mais ou menos o mesmo o que o Luís Miguel Cintra disse ao César Monteiro: vai e dá-lhes música!
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Nessa estranha noite de Setembro, minutos antes de me perguntarem se já sabia das “novas” (quanta perversidade nisto), acabara de enviar uma mensagem: “Gostas de mac?”. Ia acrescentar o parêntesis “Mcdonald’s, do Mac Miller já sei que sim”, mas acabei por não o fazer. Terão sido as batatas fritas menos saborosas que alguma vez provei na vida, já sentado, transido, sem saber o que fazer com um bilhete nas mãos para o Spike Lee dali a dez minutos. Novamente sentado, agora na sala, já o primeiro plano no ecrã: um mar de mortos, estes já não nadam, dois dedos que levo à frente dos olhos como o De Niro na sala de cinema no Taxi Driver. Lutei até à última para que, nestas páginas, o título do artigo sobre SWIMMING , o disco de Mac Miller editado em Agosto, fosse “Aprende a nadar, companheiro!”, mas, ossos do ofício, perdi. Não me interessava tanto a canção do Sérgio Godinho; o que queria era interpelá-lo a ele, Mac, uma palmada nas costas, dar-lhe a mão, contar-lhe que também eu ando para aqui a nadar, que somos muitos os que faltaram às aulas de natação (ninguém nasce ensinado, ou não?). Algo que até podia ter acontecido, fosse eu diligente o suficiente; o editor, que se me confessa igualmente apaixonado pelo disco, diz-me que, tivesse eu feito a entrevista, e faríamos capa com o disco. E eu, palerma, que já entrevistei tanta boa gente a quem não tenho nenhum interesse particular em dar uma palmada nas costas, nem me lembrei dessa possibilidade. E agora, olha, agora Inês é morta, como morta ficou também a possibilidade de eu testemunhar a doçura, a graça, a simplicidade que lhe apontam na hora em que, depois de nos ter dado essa maravilhosa canção chamada Come back to earth, se decide a voltar lá para cima. Mac Miller não possui uma obra fabulosa; nos últimos dois anos, contudo, deixou dois formidáveis discos (The Divine Feminine e SWIMMING), obras-primas da música popular americana do século XXI – num rico espectro que abrange o hip-hop, a pop, o funk, a soul, o R&B – que, pelo fundo mapeamento emocional que as insuflava, pelo universo e temperamentos perfeitamente clássicos, helénicos, shakespeareanos, do seu criador, consolidaram, junto de um público mais adulto e exigente, aquilo que já fizera de Miller uma referência para uma geração mais nova, como Dylan, Cohen ou Bowie são para outras. Encontrei-me com Mac já tarde, mas, com toda a certeza, no melhor momento da sua música (da vida, já não sei); o timing tardio não impede, porém, que me comova enquanto leio um sem-fim de miúdos contando como cresceram, desde os 12, 13 anos, com os seus discos, nele vendo um amigo do liceu desde o tempo em que, cachopo, se abanava castiçamente naquele footage caseiro do videoclip de Best Day Ever. Esse mesmo adolescente que dirá alguns anos depois: “Overdosing is just not cool. There’s no legendary romance. You don’t go down in history because you overdose. You just die”. Não estou certo de, hoje, já o conhecer verdadeiramente, pois que existem muitos Macs, desdobramento que, reflectindo a riqueza da sua obra, foi, outrossim, mental, sinal de um espírito severamente perturbado: os múltiplos pseudónimos com que assinou discos praticamente desconhecidos estão aí para serem devidamente redescobertos, do inesperadíssimo horrorcore de Delusional Thomas (disco homónimo de 2013, alegadamente feito num período particularmente intenso de consumo de drogas, e cuja última faixa inclui um featuring com... Mac Miller) ao Larry Lovestein cuja voz ainda não estava pronta, em 2012, para acompanhar a sublimidade jazzística do LP You, passando pelos ambientes exclusivamente instrumentais de Larry Fisherman (Run On Sentences), momentaneamente interrompidos pela tristíssima, belíssima letra de Smile, um dos seus mais bem escondidos tesouros. A sua música transbordava de vida e de morte, e ele, enfim, parece ter querido advinhar a segunda: “Swear the height be too tall / So like September I fall”. Esses últimos dois discos são daqueles que nos deixam uma desmedida vontade em lhe ouvir o próximo, testemunhar os caminhos que tomaria o seu som (que, não sendo “inovador”, era singular no âmbito da música popular contemporânea), tomar o pulso às curvas da sua alma. Quando tentei descrever o último minuto do disco, sugeri que fechássemos os olhos para aquele maravilhoso final de sintetizadores oníricos a ecoarem no êxtase total. Omiti, no entanto, o que, na altura, também me passou pela cabeça: que era um final muito... final, tom angelical de despedida – e omiti porque não o quis puxar para baixo (ainda a interpelação), a tal palmada nas costas, vamos lá ser optimistas com isto, pronto. Outra forma de omissão foi a que ele nos deixou em 2009 (“It ain’t 2009 no more / Yeah, I know what’s behind that door”): para o quê (o céu? o mar?) ou para quem dá a porta a que ele se refere, perguntava eu tomando de referência a janelinha (escotilha?) da capa do disco. Disse que SWIMMING não é o típico disco de “superação”, com isso pretendendo fazer notar a maturidade do discurso, mas olha, a maturidade para as malvas, antes o tivesse sido. Escrevi, ainda, que era um disco perfeito – e é, embora eu nunca tenha querido que o fosse pelos mesmos motivos que Yourcenar o insinuou nas memórias do imperador. “Foi então que uma melancolia momentânea me apertou o coração, pensei que as palavras acabamento, perfeição, contêm em si a palavra fim: talvez eu tivesse somente oferecido mais uma presa ao tempo devorador”. Por isso, e já que ele fez questão de insistir que Life Can Wait, digo-lhe agora mais ou menos o mesmo o que o Luís Miguel Cintra disse ao César Monteiro: vai e dá-lhes música!