Ver com John Berger, ler com Nick Cave
Uma reedição da obra fundamental do escritor e crítico de arte inglês, Modos de Ver, e o site epistolar do músico e compositor australiano. Duas sugestões para o fim-de-semana que aí vem.
Querendo ser específico, John Berger teria certamente dificuldade em usar o espaço consignado à profissão num qualquer formulário. Poeta, romancista, dramaturgo, ensaísta, crítico de arte, guionista e até pintor, este inglês que morreu no ano passado deixou uma obra vasta que está ainda mal representada em Portugal. A Antígona e a Relógio d’Água querem contrariar este cenário e lançaram nos últimos meses vários títulos da sua bibliografia. Modos de Ver é o último. É dos poucos que já teve uma edição em Portugal (Edições 70, 2006), há muito esgotada, e permanece até hoje, em grande parte devido à popularidade que lhe garantiu a sua associação à série homónima da BBC, um dos mais influentes livros de teoria da arte publicados no século XX.
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Querendo ser específico, John Berger teria certamente dificuldade em usar o espaço consignado à profissão num qualquer formulário. Poeta, romancista, dramaturgo, ensaísta, crítico de arte, guionista e até pintor, este inglês que morreu no ano passado deixou uma obra vasta que está ainda mal representada em Portugal. A Antígona e a Relógio d’Água querem contrariar este cenário e lançaram nos últimos meses vários títulos da sua bibliografia. Modos de Ver é o último. É dos poucos que já teve uma edição em Portugal (Edições 70, 2006), há muito esgotada, e permanece até hoje, em grande parte devido à popularidade que lhe garantiu a sua associação à série homónima da BBC, um dos mais influentes livros de teoria da arte publicados no século XX.
Berger mostra-nos neste conjunto de sete ensaios de 1972, com a acutilância e a inteligência que lhe são próprias, como o nosso olhar sobre o objecto artístico depende de quem somos, do que sentimos ou julgamos conhecer, de preconceitos que tenhamos em relação à beleza ou ao género, das relações de poder que estabelecemos. E fá-lo com a consciência de que a escrita é uma forma de participação política. “Se a imagem deixou de ser única e exclusiva, ao objecto de arte, à coisa, nada mais resta que transformar-se em objecto de mistério.” Já o tenho na cabeceira.
Do que se vê e lê, para o que se ouve e lê. Não sei se é porque sempre achei que a música de Nick Cave combina bem com dias de chuva (tão bem como um passeio por Sintra, daqueles que terminam com um jantar na Praia da Adraga), que dei por mim a ler, nos últimos dias, algumas das “cartas” que o músico australiano escreveu no site The Red Hand Files. É lá que Cave, que sempre fez questão de manter a vida privada longe da mediatização necessária à carreira profissional, responde a algumas das perguntas que lhe chegam de quem admira o seu trabalho. E fá-lo num tom muito pessoal quando fala, por exemplo, da presença das mulheres nas suas canções ou da morte de um dos seus filhos ainda adolescente, em 2015.
“As mulheres são, de facto, uma obsessão singular”, diz numa das cartas, admitindo em seguida que permanecem para ele um mistério e que as “mudanças culturais” que hoje protagonizam — uma referência ao mundo pós-#Me Too sem nunca o nomear — estão a destruir o seu “lado luminoso” e contraditório, obrigando-as a trocar o que nelas há de “selvagem” e de “espanto” por um “protesto de ‘tamanho único’ contra um conceito uniformizador de masculinidade” no qual o músico não se revê.
Falar de Arthur, que morreu aos 15 anos, parece deixá-lo, como seria de esperar, mais vulnerável e mais exposto: “Sinto a presença do meu filho em toda a parte, embora ele não esteja lá. Ouço-o falar comigo, cuidar de mim, guiar-me, embora ele não esteja lá.” É também nessa carta em que responde a uma americana que lhe fala das suas próprias perdas, que resume: “Se amamos, sofremos. Esse é o trato. Esse é o pacto. [...] A dor é o que nos lembra da profundidade do nosso amor e, como ele, não é negociável.” É Nick Cave na primeira pessoa, como se estivesse aqui ao lado.