Genuine fake
“Genuine fake watches”, lê-se num cartaz que encima uma das muitas bancas de venda de relógios e de tudo o mais que possa interessar potencialmente ao turista. Os logótipos de marcas europeias e norte-americanas bem conhecidas estão por todo o lado. Os apelos dos vendedores sucedem-se, numa rotativa de línguas diferentes, em busca do convencimento perfeito. E os autocarros de turistas chineses, continentais e de Taiwan, chegam a uma cadência impressionante, cada um deles com o seu grupo de visitantes, que enchem às centenas as ruínas do século II a. C., palmilhadas com ardor e fotografadas com precisão clínica.
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“Genuine fake watches”, lê-se num cartaz que encima uma das muitas bancas de venda de relógios e de tudo o mais que possa interessar potencialmente ao turista. Os logótipos de marcas europeias e norte-americanas bem conhecidas estão por todo o lado. Os apelos dos vendedores sucedem-se, numa rotativa de línguas diferentes, em busca do convencimento perfeito. E os autocarros de turistas chineses, continentais e de Taiwan, chegam a uma cadência impressionante, cada um deles com o seu grupo de visitantes, que enchem às centenas as ruínas do século II a. C., palmilhadas com ardor e fotografadas com precisão clínica.
Este é o cenário de há poucos dias, num pequeno destino do Mediterrâneo oriental, em terras turcas. E é um cenário afinal bem conhecido dos viajantes por toda a América Latina, Ásia e África.
O número de pessoas que viaja em turismo (e em “contra-turismo”, de forma independente e em busca de uma qualquer autenticidade perdida) tem aumentado sempre – e de forma muito relevante nas duas últimas décadas. Democratizou-se, diz-se, portanto, seja lá isso o que for.
O negócio seguramente mudou muito. A Internet é o meio. As agências e os operadores tornaram-se obsoletos para muitos dos seus potenciais clientes e concentraram-se em franjas de viagens e de público, os mais pobres, os mais ricos, os infoexcluídos, os grupos de variada índole, as viagens de trabalho, os programas específicos.
As companhias aéreas conseguem oferecer viagens baratas e servir muitos destinos. Os alojamentos diversificaram-se e, a par do preço e das comodidades clássicas, a oferta tem de ser concorrencial em quase tudo o mais. Há quem pretenda só ficar alojado onde possa fazer mergulho todos os dias. Há quem só queira dormir em comboios. Há quem insista em experimentar umas noites em quartos-cela de prisões desactivadas. E há quem pague para experimentar quase tudo, que a vida é curta (será mesmo?) e, pelo sim pelo não, talvez valha a pena apostar as fichas todas nesta primeira versão, por pouco aprimorada que ela seja.
Tudo isto será verdade, mas, se quisermos parar um pouco e dispensar o discurso sobre a aparência desta realidade, provavelmente chegamos à conclusão que a mudança verdadeiramente relevante têm que ver com o número. O número de viajantes e o número de destinos possíveis.
Ao contrário do que se passava nos tempos do herói à força d’A Relíquia do nosso Eça, que ainda conseguia, mesmo que in limine, trazer da Terra Santa um pedaço da roupa derradeira de Cristo à sua Titi, quase encerrado o século XIX – fosse ela verdadeira ou não, que isso é uma questão menor de roupas e de genuine fake... –, hoje somos tantos a circular que esse número não muda só o que é viajar, muda também, e de forma dramática, os nossos espaços de visita.
É verdade que os muda injectando dinheiro e estabilidade em diversas geografias. Mas muda-os certamente incitando à sobre-exploração, à predação ambiental e económica, à univocidade das formações e das vontades em torno dos serviços ligados ao turismo, como nunca antes.
A ponderação possível sobre o tema não pode ser uma alternativa simplista entre a exploração turística em massa e a manutenção da riqueza natural e alegadamente também da “pobreza natural” das pessoas e dos lugares. Um tópico que seguramente esteve na cabeça de muita gente no Algarve entre os anos 60 e os anos 90 do século passado. E é escusado dizer nesse caso quem ganhou...
A “indústria da paz”, como o turismo gosta de se apelidar – e com alguma razão -, não pode ser sinónimo de uma indústria da erosão ambiental, cultural e social. Não é uma questão de reutilizar até ao esfrangalhanço total as toalhas no quarto de hotel. É mais do que isso. E tem de ser mais do que isso.
Para haver uma mudança positiva e capacidade de acomodar esta nossa vontade legítima de conhecer o Mundo, provavelmente será necessária mais auto-regulação e especialmente boa e velha regulação pública, tendencialmente transnacional. E provavelmente os preços terão de subir.
Quem se preocupa com a gentrificação de Lisboa tem o dever de se preocupar também com a devastação costeira no Sri Lanka ou com a remoção das comunidades locais abrindo espaço para os resorts no Sarawak. O esforço terá de ser global, sob pena de simplesmente se reforçar o hiato entre destinos caros e “verdes” como uma maçã polida e brilhante de três dólares em Nova Iorque e destinos baratos e do salve-se quem puder, esgoto a céu aberto, tudo incluído e mojitos fake na praia. E, no final, a responsabilidade de cada um de nós terá também de ser reforçada, mesmo quando o tempo de férias, o tempo de ócio que se sucede ao tempo do negócio, parece só pedir o contrário. E não, infelizmente não basta usar duas vezes a mesma toalha e dar 1 euro para a reflorestação do mangal do Xiringuiti. Exista ele ou não.