Criado um atlas da ligação entre a placenta e o útero no início da gravidez
Ângela Gonçalves faz parte de uma equipa de cientistas que fez um novo atlas “extremamente” detalhado da comunicação entre as células da mãe e da placenta no primeiro trimestre de gravidez.
Durante os primeiros três meses de gravidez, ocorre uma invasão fundamental: as células fetais da placenta invadem o tecido materno e entram em contacto com as células do útero. Caso esta acção não seja bem-sucedida, pode haver problemas de pré-eclampsia ou até a morte do feto. Apesar de ser crucial, ainda se sabe pouco sobre esta “ofensiva” tão complexa. Como tal, uma equipa de cientistas da Europa – incluindo a portuguesa Ângela Gonçalves – entrou no “palco da batalha” e estudou a actividade de milhares de genes em mais de 70 mil células do primeiro trimestre da gravidez. Resultado: criou-se um atlas “extremamente” detalhado da comunicação entre as células da mãe e da placenta nos primeiros três meses de gravidez.
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Durante os primeiros três meses de gravidez, ocorre uma invasão fundamental: as células fetais da placenta invadem o tecido materno e entram em contacto com as células do útero. Caso esta acção não seja bem-sucedida, pode haver problemas de pré-eclampsia ou até a morte do feto. Apesar de ser crucial, ainda se sabe pouco sobre esta “ofensiva” tão complexa. Como tal, uma equipa de cientistas da Europa – incluindo a portuguesa Ângela Gonçalves – entrou no “palco da batalha” e estudou a actividade de milhares de genes em mais de 70 mil células do primeiro trimestre da gravidez. Resultado: criou-se um atlas “extremamente” detalhado da comunicação entre as células da mãe e da placenta nos primeiros três meses de gravidez.
Ângela Gonçalves começou este trabalho ainda quando estava no Instituto Wellcome Sanger (Reino Unido), onde hoje continua como cientista convidada. Depois, a bioinformática foi para um grupo de investigação no Centro Nacional Alemão de Investigação para o Cancro e levou este trabalho com ela. Agora, conta-nos como é uma investigação importante.
“Os primeiros três meses são os mais críticos da gravidez”, aponta a cientista. Porquê? “É nesta altura que a placenta – órgão que permite a troca de oxigénio e nutrientes entre a mãe e o feto – se começa a desenvolver” e se implanta no revestimento interno do útero, que é composto por uma camada de células chamada “decídua”, para criar um bom fornecimento de sangue no feto.
E salienta: “Problemas com o desenvolvimento da placenta podem ter consequências graves.” Entre esses problemas, está a formação anormal dos vasos sanguíneos na placenta, o que pode levar ao desenvolvimento de pré-eclampsia – distúrbio da gravidez que se caracteriza pela pressão arterial alta da mãe, pode levar a convulsões e ser mesmo fatal tanto para o feto como para a própria mãe.
Para se perceber o que está em causa na formação na placenta teremos de olhar ao pormenor para a tal invasão das células fetais no tecido materno e para a remodelação dos vasos sanguíneos maternos. “Ao entrarem em contacto directo com as células maternas torna-se necessário que o sistema imunitário materno não rejeite as células do feto”, explica Ângela Gonçalves sobre uma das frentes da invasão. “Por outro lado, as células maternas precisam de evitar que as células do feto invadam o tecido materno de forma excessiva, o que também pode provocar problemas.” Portanto, convém que se encontre um compromisso na definição da fronteira entre o tecido materno e o tecido do feto.
Através da nova tecnologia de sequenciação de ARN de uma única célula, a equipa estudou a actividade de milhares de genes em mais de 70 mil células da placenta e da decídua do primeiro trimestre de gravidez. “Este estudo olha em detalhe para os genes que estão activos nas células maternas e células da placenta para criar um mapa extremamente detalhado da identidade [das células] e da comunicação celular nesta fase crítica da gravidez”, assinala Ângela Gonçalves.
Além disso, a investigadora refere que também usaram métodos experimentais que localizam as células em diferentes áreas dos tecidos e criaram uma base de dados das moléculas através das quais as células comunicam. Desta forma, foi possível identificar que tipos de células interagem umas com as outras e de que forma.
Exterminadoras naturais
O que se descobriu? “Descobriu-se que as células fetais e maternas estão a usar sinais para falarem umas com as outras e que esta conversa permite ao sistema imunitário materno suportar o crescimento do feto”, lê-se no comunicado do Instituto Wellcome Sanger. “Pela primeira vez, fomos capazes de ver quais os genes que estão activos em cada célula na decídua e na placenta e descobrir quais deles poderão modificar o sistema imunitário materno”, refere no comunicado Roser Vento-Tormo, do Instituto Wellcome Sanger e primeira autora do artigo científico publicado esta quinta-feira na revista Nature. “As células fetais da placenta comunicam com as células do sistema imunitário da mãe para assegurar que a placenta se implanta correctamente. Isto permite que o feto cresça e se desenvolva correctamente.”
Ângela Gonçalves acrescenta: “Este estudo revela a existência de vários novos tipos de células e identifica a sua localização no tecido materno.” A cientista exemplifica que se identificou a presença de três tipos distintos de células maternas NK (do inglês natural killer, ou células exterminadoras naturais), uma população de células do sistema imunitário comum no útero nesta fase da gravidez.
Assim, através do estudo das interacções destes três tipos de células e das restantes, concluiu-se que as funções mais prováveis das células NK são o controlo da invasão do tecido materno pelas células da placenta, assim como a coordenação de outras células imunitárias como as linfócitos T. “Em geral, o estudo revela ao nível molecular e celular os mecanismos pelos quais é criado um ambiente pacífico e apropriado para o desenvolvimento do feto”, resume a cientista.
“O atlas celular gerado por este estudo serve como referência única para a compreensão da gravidez normal e a investigação dos distúrbios que ocorrem em situações de doença”, diz Ângela Gonçalves sobre a importância e aplicação deste trabalho. É um dos primeiros atlas que estão a ser agora gerados para vários órgãos do corpo humano na iniciativa internacional Atlas das Células Humanas (Human Cell Atlas), que tem a missão de mapear a actividade genética de todas as células do nosso corpo.
Num comentário ao trabalho, também na Nature, Sumati Rajagopalan e Eric Long (do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, nos Estados Unidos) sublinham como a grande limitação para se compreender o desenvolvimento humano tem sido a falta de modelos animais representativos. Para estes cientistas, a equipa de Roser Vento-Tormo “fornece uma referência molecular humana”. A partir de agora, poderá comparar-se a gravidez em modelos animais com essa referência molecular, para encontrar características partilhadas com os humanos. “Além disso, dados obtidos em mulheres com complicações na gravidez podem ser avaliados usando este recurso. Isto poderá levar à identificação de biomarcadores em complicações comuns na gravidez.”
E não só. “Ao mapear o território celular e molecular do primeiro trimestre da gravidez, este estudo esclarece-nos como a interface materno-fetal tem um ambiente pacífico e tolerante em que a reacção imunitária é atenuada”, escrevem. Mesmo assim, os cientistas avisam que esta tolerância imunitária pode ter um custo. E dão o exemplo da vulnerabilidade a certas infecções como o vírus Zika e a malária. Os dados da equipa de Roser Vento-Tormo “dão-nos um poderoso enquadramento para avaliar a paisagem do início da gravidez durante estas infecções devastadoras”, comentam ainda Sumati Rajagopalan e Eric Long.
Detectar o cancro
E qual o contributo da cientista portuguesa neste trabalho? Desenvolveu um método computacional e estatístico que permitiu quantificar um conjunto de genes que controla a activação e inibição das células NK do sistema imunitário materno. Essa quantificação permitiu o desenvolvimento de novos modelos de interacção entre as células imunitárias NK e as células da placenta.
Actualmente, Ângela Gonçalves está agora a usar métodos de sequenciação genómica e análise computacional para estudar os primeiros passos do desenvolvimento do cancro e, através desse conhecimento, ajudar a desenvolver métodos para uma detecção precoce.
“Para detectar o cancro de forma antecipada é necessário identificar alterações celulares muito subtis nos tecidos”, explica a bioinformática. “Para tal, é necessário ter um bom conhecimento do estado saudável dos órgãos. Este projecto foi uma oportunidade única de obter uma referência – ou mapa – do estado de expressão genética em células saudáveis do útero durante a gravidez.” Ângela Gonçalves explica que o seu laboratório está interessado sobretudo em tumores do sistema reprodutivo feminino, do endométrio e do ovário. E a sua equipa irá usar este mapa (e outros do sistema reprodutivo feminino fora da gravidez) como referência para desenvolver novos métodos de detecção do cancro.