"Brexit" ou "BRINO", eis a questão
De tanto dizerem que querem uma saída sem acordo, os defensores mais ultras do "Brexit" podem mesmo vir a tê-la.
Uma semana antes do referendo britânico de 2016 escrevi neste jornal que previa que a saída da UE saísse vitoriosa do voto. A grande questão era a escolha que se faria “depois”, e que tinha duas opções: ou Noruega ou nada.
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Uma semana antes do referendo britânico de 2016 escrevi neste jornal que previa que a saída da UE saísse vitoriosa do voto. A grande questão era a escolha que se faria “depois”, e que tinha duas opções: ou Noruega ou nada.
Quase dois anos e muitas negociações depois, os negociadores da Comissão Europeia e os do governo britânico chegam a um acordo técnico que vai agora ser avaliado por Londres. A escolha será: ou Noruega ou nada. Não se lhe chama assim porque isso feriria as sensibilidades de classe política britânica, mas por eufemismo poderíamos chamar a este acordo “sair da UE ficando em alinhamento regulatório com a União Aduaneira europeia e tendo algum acesso ao mercado único, de forma análoga àquele país a norte onde há fiordes e se pesca bacalhau” — ou sair a 29 de março de 2019 sem acordo. Uma espécie de Noruega invertida (o país escandinavo faz parte do mercado único mas não da união aduaneira, ao passo que o Reino Unido faria praticamente parte da união aduaneira para ter acesso ao mercado único) mas, ainda assim, uma Noruega, ou seja, um país na órbita da União Europeia. Ou então a tão ansiada (por alguns) saída sem acordo, com toda a bravata da soberania e nenhuma das vantagens dela.
É essa a escolha que será agora apresentada ao governo britânico, primeiro, e ao parlamento depois. Saberemos se o acordo passa ou não conforme formos escutando mais a expressão “BRINO” do que a expressão “Brexit”. Se "Brexit" quer dizer “saída britânica da UE”, "BRINO" quer dizer “Brexit In Name Only”, ou seja, um Brexit só de nome. Ou, traduzindo para bom português: “se isto é uma saída da União Europeia vou ali e já venho”.
Os primeiros disparos da guerra que vem aí foram já dados pelos dois eurofóbicos mais importantes do Reino Unido. Jacob Rees-Mogg, que controla sessenta votos anti-UE entre os deputados do partido conservador britânico, diz que o acordo com Bruxelas é pior do que esperava: “antes o governo ia fazer do Reino Unido um estado vassalo, agora irá fazer de nós um estado escravo”. Aquilo que Boris Johnson disse guardaremos para o fim da crónica.
O que importa perceber, no fundo, é se os líderes do "Brexit" querem mesmo sair da UE ou se preferem apenas a vitória dos dogmáticos e demagogos: ficar do lado de fora a queixarem-se que se o "Brexit" tivesse sido feito à maneira deles teria sido fantástico. Se assim for, estarão talvez a contar que os seus colegas mais moderados aprovem o acordo para que as culpas pelo que vier depois não lhes caiam em cima, um pouco como quando fugiram todos às suas responsabilidades nos dias a seguir ao referendo. Só há um problema: a carta para a saída da União Europeia foi enviada a 29 de março de 2017. Por ação automática do direito europeu, o relógio está a contar e o Reino Unido sairá quando essa carta fizer dois anos, a 29 de março de 2019, com acordo ou sem ele. De tanto dizerem que querem uma saída sem acordo, os defensores mais ultras do "Brexit" podem mesmo vir a tê-la.
Ora, uma saída sem acordo é um risco para eles porque expõe como fraude intelectual a base do principal argumento alegadamente “soberanista”: a ideia de que o Reino Unido não era soberano dentro da UE e que passará a ser soberano (ou mais soberano) fora da UE. Esse argumento sempre repousou numa visão completamente ultrapassada da soberania, para não dizer uma visão inteiramente falsa, ao confundir soberania retórica com soberania efetiva. Nos tempos que correm, um país que decide sair de uma União na qual se sentava à mesa de todas as decisões importantes para depois pedinchar as condições que antes tinha a partir de fora é um país que decidiu diminuir o exercício da sua soberania efetiva pelo prazer de se ouvir discursar sobre a sua soberania retórica.
E aí chegamos ao que disse Boris Johnson sobre este acordo, referindo-se à parte sobre a Irlanda do Norte: “pela primeira vez na história, Dublin vai ter mais a dizer sobre a governação da Irlanda do Norte do que Londres”. Porque será, Boris? Por que razão a pequena República da Irlanda, durante séculos uma pobre colónia e independente há menos de cem anos, tem agora mais poder — ou seja, mais soberania efectiva — do que o Reino Unido? Terá alguma coisa a ver com o facto de a Irlanda estar numa União com 26 outros países? Eis uma pergunta para a qual nunca ouviremos uma resposta franca por parte dos pseudo-soberanistas.
Talvez por isso também a farsa do "Brexit" seja tão pouco discutida hoje por aqueles que a festejaram em 2016: porque teriam de reconhecer que, no século XXI, a partilha de soberania pode ser a forma mais eficaz de multiplicar soberania. Quanto mais energia gastarmos a pensar como melhorar a União, em vez de a gastarmos a vender banha da cobra sobre como sair dela, mais soberanos poderemos ser.