O sedutor no salão
Mais outra ópera de Nuno Côrte-Real e mais uma confirmação de que na sua produção, que suscita as maiores perplexidades, há ainda assim algum interesse quando ele está bem acompanhado, aqui com um inesperado Pedro Mexia no libreto e encenação de Ricardo Neves-Neves. Esta “ópera do bandido” é um divertimento de salão, divertido mesmo.
Nuno Côrte-Real, nascido em Lisboa em 1971 mas sediado em Torres Vedras, é um compositor singular mas também por motivos estranhos, que dão frequentemente azo às maiores perplexidades.
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Nuno Côrte-Real, nascido em Lisboa em 1971 mas sediado em Torres Vedras, é um compositor singular mas também por motivos estranhos, que dão frequentemente azo às maiores perplexidades.
As suas obras iniciais, como Andarilhos – Música de Bailado (que no entanto creio nunca ter sido coreografada), Concerto Vedras e Os Frutos e as Mãos (que é óbvio no título, retomando, invertido, o do ciclo de Fernando Lopes-Graça sobre textos de Eugénio de Andrade, As Mãos e os Frutos) são francamente interessantes e faziam dele um dos mais promissores autores da jovem geração de compositores portugueses.
Mas, a seguir que sucedeu? Com a sua intensa actividade, a vários títulos, como autor, director do Ensemble Darcos e até organizador da Temporada Darcos com a participação de orquestras internacionais, ocorreu também uma descaracterização da sua individualidade composicional, que se tornou assaz irregular e, por vezes, sejamos claros, mesmo desastrosa. O pior viria a ser a horrenda Oratória Popular que, ousemos dizê-lo, é mesmo indigna.
A ópera A Montanha (2007), com libreto do próprio autor, baseada em Teixeira de Pascoaes, é também um caso de catástrofe. Essa peça conduz-nos aliás a outra característica de Côrte-Real: nenhum outro compositor contemporâneo português escreveu tantas óperas, O Rapaz de Bronze, sobre o conto de Sophia adaptado por José Maria Vieira Mendes, um totalmente disparatado O Velório de Cláudio, com José Luís Peixoto, Banksters, libreto de Vasco Graça Moura que, pouco interessado no texto sugerido pelo compositor, a peça Jacob e o Anjo de Régio, imprimiu ao libreto conotações completamente diversas, Os Dilemas Dietéticos de uma Matrioska do Meio (que não conheço), com libreto do cantor Mário João Alves, e agora Canção do Bandido, com um libretista inesperado, Pedro Mexia.
Sem prejuízo da perplexidade genérica que o estilo (ou a ausência dele) de Côrte-Real suscitam, é óbvio que as suas óperas são bem mais interessantes tanto quanto o é o libreto, casos de O Rapaz de Bronze e Banksters, E agora com Mexia e a A Canção do Bandido?
Não tínhamos qualquer indício público de um possível interesse seu por ópera. Ele de resto o diz: “Há, mesmo em óperas que reconheço como magistrais, uma redundância enunciativa e um pathos exagerado que em geral acho cómicos”. Daí uma ópera bufa.
Mexia afirma sobre o trabalho de escrita que o texto “ganhou um cunho diferente [em relação a um conto tradicional que tinha sido ponto de partida], donjuanesco ou casanovista. Ganhou também uma ligação, inevitável, embora ténue, ao Don Giovanni de Mozart, e à ideia de ‘dissoluto castigado’”.
Não creio que seja pertinente afirmá-lo. Don Giovanni ou Casanova são grandes arquétipos. Este Bandido é muito mais prosaico, um sedutor de salão, mesmo quiçá de salão de baile – e a encenação de Ricardo Neves-Neves acentua-lhe fortemente esse lado, com o seu característico carácter fantasista com algo de “abonecado”.
Este quadro de salão, com o sedutor e as coquetes, é propício a Côrte-Real, e há aqui entre libreto, música e cena uma indiscutível coerência, como tinha sucedido em Banksters (que tinha encenação de João Botelho), de resto completado pela notória homogeneidade do elenco.
Será menor mas não deixa de ser um objecto curioso este divertimento de salão transposto para a ópera – ou da ópera ao salão.
Assinale-se por fim um facto muito importante. Esta co-produção do Teatro da Trindade com o São Carlos é fruto de uma proposta feita por Inês de Medeiros na sua efémera passagem pelo Trindade, entre deixar o parlamento e ser surpreendentemente eleita Presidente da Câmara Municipal de Almada, a Patrick Dickie, director artístico do São Carlos, no sentido de co-produções que permitissem a encomenda de novas óperas e uma possível itinerância. Só podemos esperar que haja frutos desta proposta.