Não vimos nada em Utøya

Dois filmes muito diferentes, mas muito complementares, sobre o massacre cometido em 2011 na ilha norueguesa de Utøya. Com 22 de Julho, Paul Greengrass tem o peso da máquina de Hollywood, mas é Erik Poppe que assina o filme mais interessante, Utøya, 22 de Julho.

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Saímos quer de 22 de Julho quer de Utøya, 22 de Julho com a sensação de que nenhum deles respondeu à pergunta essencial da sua existência: o que é que eles nos mostram que não vimos?

“Não viste nada em Hiroshima”, dizia-se nesse farol da modernidade cinematográfica chamado Hiroshima Meu Amor. Que era também um filme sobre um momento-charneira da história contemporânea: a explosão de Hiroshima, o ponto zero da era nuclear, um novo medo que entrou nas nossas vidas.

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“Não viste nada em Hiroshima”, dizia-se nesse farol da modernidade cinematográfica chamado Hiroshima Meu Amor. Que era também um filme sobre um momento-charneira da história contemporânea: a explosão de Hiroshima, o ponto zero da era nuclear, um novo medo que entrou nas nossas vidas.

Será Utøya vista, no futuro, como um momento-charneira? A atenção que o massacre perpetrado pelo norueguês de extrema direita Anders Behring Breivik recebe do cinema em 2018, sete anos depois dos factos, não dá uma resposta cabal. Mas os dois filmes que abordam o tema — e que Portugal recebe com escassas semanas de intervalo — levantam a questão: o que é que Utøya significa, hoje? O que é que (não) vimos nessas poucas horas de terror em que um camião-bomba explodiu junto aos edifícios governamentais de Oslo e em que Breivik matou a sangue-frio setenta adolescentes num campo de férias da Juventude Trabalhista norueguesa, mostrando que o medo podia existir mesmo no interior de uma sociedade aparentemente ideal?

O cartão que encerra Utøya, 22 de Julho, de Erik Poppe (nas salas de cinema esta semana) di-lo abertamente: todos estes anos depois, as ideologias de extrema-direita estão em ascensão, a xenofobia e o nativismo estão a erodir o conceito de democracia liberal. Nada parece ter mudado depois de 77 pessoas morrerem nos atentados de Oslo de 2011. “Os filhos das elites”, diz Anders Breivik no filme de Paul Greengrass, 22 de Julho (em streaming no Netflix desde finais de Outubro), disposto a atacar “aquilo que as pessoas têm de mais querido” para fazer a sua mensagem ouvida: as futuras gerações que teriam as rédeas de uma sociedade cada vez mais dividida.

Cada um a seu modo, Utøya, 22 de Julho e 22 de Julho querem ser provas de que a luta continua, faróis que dêem um novo impulso ao combate contra o ódio, que recordem aqueles que se esqueceram do que está em jogo, do modo limitado que um filme consegue. Querem ser “activistas” mas não “ideológicos”, arte política centrada em experiências pessoais.

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É inevitável, tendo em conta a filiação dos seus realizadores. Antes de se formar como director de fotografia, Erik Poppe (n. 1960) começou como repórter fotográfico, presente em conflitos no Congo ou no Afeganistão (ficcionou aliás essa experiência em 2013 com Mil Vezes Boa Noite, com Juliette Binoche). Paul Greengrass (n. 1955) foi jornalista de investigação na televisão britânica, para a qual começou na década de 1990 a realizar docu-dramas inspirados em eventos reais na década de 1990, e venceu o Urso de Ouro de Berlim em 2002 com Domingo Sangrento, sobre os troubles da Irlanda do Norte. (Foi, no entanto, noutras áreas que se notabilizaram: Poppe dirigiu O Discurso do Rei, épico histórico nomeado para o Óscar de melhor filme estrangeiro; Greengrass introduziu um novo dinamismo no cinema de acção com os filmes que dirigiu da série Jason Bourne.)

É muito fácil opôr os dois filmes: um com o peso da estrutura de produção de Hollywood (mesmo que 22 de Julho tenha sido financiado pela plataforma Netflix e rodado com uma equipa escandinava), outro, vindo da “prata da casa” norueguesa. Seria errado polarizar as coisas dessa maneira — é mesmo contra isso que ambos querem lutar, defendendo a unidade contra o inimigo comum. Poppe coloca, no final de Utøya, 22 de Julho, um cartão que define o seu filme como uma ficção inspirada pelas experiências de sobreviventes; “uma verdade possível entre muitas”, respondendo até a controvérsias que queriam colocar os filmes em choque. Greengrass faz do seu filme um docudrama mais tradicional, baseando-se nos eventos reais tal como registados no livro da jornalista norueguesa Åsne Seierstad.

O inglês apega-se à “grande história”, isto é, à visão de conjunto dos atentados, cruzando os percursos de Breivik (Anders Danielson Lie é arrepiante no papel), do seu advogado de defesa Geir Lippestad, do primeiro-ministro Jens Stoltenberg e de Viljar Hanssen, um dos sobreviventes do massacre de Utøya, que segue da véspera dos atentados ao final do julgamento de Breivik. Poppe, por seu lado, propõe um mergulho imersivo na “pequena história”: o seu filme concentra-se nos 72 minutos do massacre, contados em plano-sequência único em tempo real, com a câmara a acompanhar a fuga de Kaja (Andrea Berntzen, extraordinária), personagem ficcionada a partir de relatos de sobreviventes.

Em termos puramente cinematográficos, a vantagem vai para o norueguês, cujo filme é muito pouco aconselhável a almas sensíveis. A opção de Poppe por se concentrar no massacre de Utøya e de acompanhar o seu desenrolar em tempo real está paredes meias com o filme de terror, com Kaja a tornar-se numa espécie de final girl que vai ultrapassando os vários obstáculos que lhe são colocados. O que abre a porta para aquilo que o filme tem de pior: a sua preocupante proximidade com o video-jogo “na primeira pessoa”, com a sobrevivência como “missão”, ao mesmo tempo que evoca uma outra experiência radical de memória, A Arca Russa de Aleksandr Sokurov, também ele uma viagem ao passado filmada em plano único. Tudo em Utøya, 22 de Julho é subjugado ao dispositivo do plano-sequência, ao ponto de às tantas já não estarmos a ver “o filme” mas sim “a câmara”. Poppe mostra-nos Utøya, mas o que vemos é uma encenação imersiva onde a relação entre o espectador e a câmara pesa mais do que a relação entre o espectador e as personagens.

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Pelo menos, Poppe tem um ponto de vista. Greengrass deixa-se perder pelo meio de duas horas e meia cansativas de projecção, um desfoque inesperado vindo de um cineasta conhecido pela sua concisão — e nem é preciso ir aos filmes de Jason Bourne e à clareza que ele soube injectar em cenas de acção caleidoscópicas. Bastaria ir à limpidez do seu Voo 93, a história do vôo desviado no 11 de Setembro no qual os passageiros se ergueram contra os terroristas, filme “gémeo” de 22 de Julho no modo como trabalha a ferida para que ela não infecte mais.

Mas a sua técnica investigativa fica romba quando deixa de haver algo para investigar — a partir da segunda hora o filme perde embalo, descambando para uma banalidade quase de “caso da vida”, dispersando-se pelos quatro percursos sem conseguir emprestar-lhes a mesma urgência que conseguiu na primeira metade. Não é Utøya que o britânico nos mostra, é o desafio de Breivik à democracia liberal, iniciado com a bomba nos escritórios governamentais e completado pelas suas declarações no julgamento. Utøya é um símbolo ao qual Greengrass não é capaz de dar vida.

Que o cinema pode servir como testemunha do seu tempo não há dúvidas — é aliás essa condição que estes dois filmes reivindicam. Mas saímos quer de 22 de Julho quer de Utøya, 22 de Julho com a sensação de que nenhum deles respondeu à pergunta essencial da sua existência: o que é que eles nos mostram que não vimos? O que é que eles nos dizem que não soubéssemos? Poderão ultrapassar as barreiras dos algoritmos e dos nossos dias sombrios para funcionarem como faróis de referência? Coloquemos a coisa assim: Utøya foi um de muitos momentos-charneira da última década, um alerta para o mal que se esconde em pleno dia. Mas Erik Poppe e Paul Greengrass procuram tanto a forma que perdem de vista o conteúdo.

Não vimos nada em Utøya.