Actos dos appóstolos
No mundo moderno, só a flexibilidade consentida pelo aluguer de graus académicos permite fazer face às oscilações de um mercado dinâmico e imprevisível. Eis um autêntico jogo de soma positiva: os madraços poupam tempo em estudos, os marrões rentabilizam-nos. É de approveitar.
No princípio, Silicon Valley criou os céus e a terra. E a terra era informe e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o espírito de Silicon Valley movia-se sobre a face das águas. E disse Silicon Valley: "Haja apps". E houve apps. Houve apps para desportistas e apps para glutões; houve apps para literatos e apps para melómanos; houve apps para assinalar onde estamos, para que nos encontrem, e apps para descobrir a rota certa, quando não a encontramos. Houve apps em barda, para todos os gostos.
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No princípio, Silicon Valley criou os céus e a terra. E a terra era informe e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o espírito de Silicon Valley movia-se sobre a face das águas. E disse Silicon Valley: "Haja apps". E houve apps. Houve apps para desportistas e apps para glutões; houve apps para literatos e apps para melómanos; houve apps para assinalar onde estamos, para que nos encontrem, e apps para descobrir a rota certa, quando não a encontramos. Houve apps em barda, para todos os gostos.
Era um frenesim de geringonças gratuitas que prometiam facilitar-nos a vida. E os criadores deste admirável mundo novo nem ao sétimo dia descansavam, inovando sem cessar. Com o tempo, o fervor tecnológico deveio quase um culto religioso, com beatos e acólitos, altares e ritos; e as cimeiras de tecnologia atraíram uma chusma heterogénea de jornalistas, empresários, geeks e meros curiosos, todos reunidos para ouvir os mensageiros da Boa Nova. Os mensageiros (os, digamos, appóstolos) subiam ao palanque e pregavam sobre as virtudes das apps. Um êxtase beatífico percorria a audiência. Depois, a missa acabava. Num gesto mimético, os fiéis tornavam-se proselitistas; as ovelhas tresmalhadas eram persuadidas a juntar-se ao rebanho; exortava-se os incréus, perdidos nos ínvios caminhos do pecado, a retomarem piedosamente o trilho da salvação. O tom dos apelos era lancinante: "Tu tens de descarregar esta app. De que estás à espera? Eu já não passo sem isto!"
Mas, por detrás dos néons e dos holofotes, parece que o foguetório das cimeiras de tecnologia não teve resultados à altura das expectativas. Por esta altura, seria de esperar que já houvesse teletransporte, carros voadores atroando os ares, transplantes hepáticos por intermédio de um download. Pelo contrário, esta revolução tecnológica ainda nem debelou um dos maiores flagelos nacionais: a "Síndrome do Dê-Erre".
Como sucessivas investigações jornalísticas e judiciais têm realçado, há uma falha de mercado na atribuição de graus académicos que importa corrigir. Quantas pessoas se martirizam por não poderem antepor a abreviatura “Dr.” ao próprio nome? Mais do que o saber, é o título que ambicionam. Uma análise retrospectiva aos noticiários das últimas semanas, meses, anos, décadas, ilustra um padrão já bem conhecido. X, figura destacada, alardeia a posse de um dado grau académico; os jornais ou a justiça suspeitam de indícios de fraude na obtenção do grau de X; X nega a ilicitude, gagueja juras de honestidade, enreda-se em contradições e acaba enxovalhado. Uma lástima. Mas qual o sentido de exigir que as habilitações declaradas sejam verdadeiras? Qual a utilidade de forçar insignes estadistas ou gestores a frequentar cursos, para eles, sem préstimo? Numa sociedade democrática, que preze a igualdade, o título de “Dr.” deve estar reservado a quem concluir uma licenciatura, ou acessível a quem dele momentaneamente necessite?
A resposta de qualquer democrata terá de ser inequívoca: é dever de uma sociedade decente prover às necessidades e zelar pelos que menos têm. Ora, esta lacuna poderia ser suprida através das oportunidades geradas pela denominada economia de partilha. As necessidades são complementares: há pessoas com emprego mas sem habilitações e há pessoas com habilitações mas sem emprego. Se os proveitos resultantes não compensam o desperdício de anos em estudos infrutíferos, basta que se regulamente o mercado de aluguer de graus académicos; que se institua, numa plataforma online, uma variante de Airbnb (o serviço de arrendamento de casas a prazos curtos) vocacionada para licenciaturas; e que se permita aos necessitados alugarem as licenciaturas que momentaneamente lhes convêm sem terem, de facto, de sujeitar-se à maçada de concluir um curso universitário. Em vez de um Airbnb, seria um AirBSc — como na abreviatura anglo-saxónica de Bachelor of Science.
E, de resto, no mundo hodierno, em que a estabilidade laboral é uma relíquia obsoleta, só a flexibilidade consentida pelo aluguer de graus académicos permite fazer face às oscilações de um mercado dinâmico e imprevisível. Eis um autêntico jogo de soma positiva: os madraços poupam tempo em estudos, os marrões rentabilizam-nos. É de approveitar.