América contra América: do nacionalismo ao identitarismo destrutivo
No passado, foram os europeus que, com a perversão da ideia de nação, levaram a conflitos terríveis. Hoje são os norte-americanos que estão a perverter a ideia de identidade e a transformá-la numa ideologia perversa.
1. No passado a ideia de nação foi libertadora. Trouxe uma identidade social e política emancipadora. Com a Revolução Francesa de 1789 as ideias de nação e de cidadania romperam, radicalmente, com a lógica opressora do Antigo Regime. Pertencer à nação, ser um cidadão nacional, significava ter direitos fundamentais, poder escolher os seus governantes, não ser propriedade de um monarca absoluto, nem estar sujeito à total arbitrariedade de quem governava (auto)legitimando o seu poder em nome de Deus. Foi assim que os franceses de finais do século XVIII se libertaram do Antigo Regime. Foi assim que muitos europeus se libertaram dos impérios que os oprimiam, como o Império Austríaco, mais tarde Austro-Húngaro (checos, eslovacos, eslovenos, croatas, etc.), e do Império Otomano (gregos, sérvios, búlgaros, macedónios, etc.). Foi assim que outros povos europeus, como portugueses e espanhóis, depuseram as monarquias absolutas do passado e iniciaram um longo processo de modernidade política até à democracia.
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1. No passado a ideia de nação foi libertadora. Trouxe uma identidade social e política emancipadora. Com a Revolução Francesa de 1789 as ideias de nação e de cidadania romperam, radicalmente, com a lógica opressora do Antigo Regime. Pertencer à nação, ser um cidadão nacional, significava ter direitos fundamentais, poder escolher os seus governantes, não ser propriedade de um monarca absoluto, nem estar sujeito à total arbitrariedade de quem governava (auto)legitimando o seu poder em nome de Deus. Foi assim que os franceses de finais do século XVIII se libertaram do Antigo Regime. Foi assim que muitos europeus se libertaram dos impérios que os oprimiam, como o Império Austríaco, mais tarde Austro-Húngaro (checos, eslovacos, eslovenos, croatas, etc.), e do Império Otomano (gregos, sérvios, búlgaros, macedónios, etc.). Foi assim que outros povos europeus, como portugueses e espanhóis, depuseram as monarquias absolutas do passado e iniciaram um longo processo de modernidade política até à democracia.
2. Mas o que começou por ser uma extraordinária ideia cívica e emancipadora em finais século XVIII, e durante grande parte do século XIX, tornou-se, gradualmente, numa ideologia destrutiva — o nacionalismo (radical). As duas grandes guerras europeias da primeira metade do século XX, as quais adquiriram dimensão mundial pela influência europeia, mostram bem isso. Hoje, com distanciamento histórico, sabemos que as sementes dessa engrenagem destrutiva estavam lá, desde o início da ideia nacional. Todavia, os que viverem esse período histórico não parecem ter tido consciência disso. Assim, no seu pior, a ideia de nação transformou, também, as (limitadas) guerras da aristocracia e de mercenários, em destrutivas guerras totais. Todo o cidadão maior de idade, do sexo masculino — a “nação em armas” —, tornou-se num combatente. A revolução industrial e o seu impacto no desenvolvimento e produção de armamento militar fizeram o resto.
3. Não sei se a história se repete. A ocorrer, a repetição acaba por ser sempre filtrada e adaptada às circunstâncias da nova época. Quando olhamos para o passado, para o caminho feito pela ideia de nação (originalmente cívica e libertadora), até ao nacionalismo ideológico (radical e destrutivo) uma questão perturbadora vem à mente: será que neste início de século XXI não estamos a viver uma nova engrenagem destrutiva similar? Podemos estar. Todavia, agora não é a nação, nem o nacionalismo radical, ao contrário do que muitos julgam, aquilo que mais devemos temer. Para isso há, pelo menos na Europa (ocidental), toda uma memória histórica recente que gera, apesar de tudo, um poderoso contrapeso. Cria uma barreira intelectual e política. O quadro intelectual do nacionalismo e da sua retórica são demasiado familiares para não originarem hoje resistência e mobilização, de sentido contrário, da maioria da população. Isto não significa que não persistam movimentos nacionalistas radicais importantes, que merecem preocupação. Todavia, há múltiplas instituições e mecanismos criados contra o seu ressurgimento, desde logo a União Europeia.
4. O que é politicamente novo pode conter um problema maior do que o reaparecimento do antigo. Não há memória histórica que sirva de barreira intelectual e política. Permite idealizar, criar utopias. Estas desarmam intelectualmente a população e a consciência crítica. Beneficia de ser novo, termo que, na cultura ocidental, induz automaticamente uma imagem positiva, dado ser uma cultura orientada para o progresso. A questão é saber se, à semelhança do que aconteceu no passado com a ideia de nação, originalmente libertadora e emancipadora, a qual se transformou em nacionalismo agressivo, a ideia de identidade não se estará a transformar num identitarismo ideológico, radical e destrutivo. Importa ter bem em mente que a ideia de nação começou por ser progressista e de esquerda, antes de se transformar numa ideologia da qual se apropriou a direita. Será que estamos a assistir aos primeiros estágios de um similar caminho, da transformação das políticas de identidade social e de grupo, numa ideologia radical e destrutiva, especialmente visível nos EUA? (Ver Jorge Almeida Fernandes, "Trump e as duas Américas", in Público, 7/11/2018). Se for assim o problema é grave, mas ainda será possível invertê-lo. Em qualquer caso, é preciso estar intelectualmente preparado para o perceber e enfrentar. É também preciso ter coragem de ir contra a tendência ditada pela moda intelectual da época, a indiferença e o seguidismo político.
5. O nacionalismo, como ideologia e exacerbação da ideia de nação, foi sobretudo uma criação europeia que se espalhou pelo mundo. O identitarismo, como ideologia e exacerbação de uma determinada identidade social e de grupo, é fundamentalmente uma criação norte-americana, a qual também se está a espalhar hoje pelo mundo. Os sinais políticos desta última ideologia em ascensão estão inscritos no mapa eleitoral dos EUA. As eleições presidenciais de 2016, onde Donald Trump chegou ao poder, bem como as recentes eleições para o Congresso em 6/11/2018, mostram-na (ver “National Results” in CNN). Há uma América contra outra América. A imagem gráfica — a vermelho os republicanos, a azul os democratas — dá-nos uma visão da fragmentação. Não é uma vulgar fractura ideológica, de esquerda e direita em democracias pluralistas. O que estamos a assistir é à transformação de partidos políticos em partidos identitários ("tribais"). O Partido Republicano é agora um partido largamente de nativistas brancos de origem europeia, muito concentrado nos Estados do interior dos EUA — sendo estes também, em número e dimensão territorial, a maioria na federação. Por outro lado, o Partido Democrata é, cada vez mais, um partido de feministas, de minorias sexuais, de afro-americanos, de brancos liberais e (parcialmente) de hispânicos e asiáticos, amplamente concentrados nas grandes cidades da costa Leste e Oeste. Estes são, no seu conjunto, já a maioria da população da federação. (Ver também Lee Drutamn, “How race and identity became the central dividing line in American politics” in Vox 30/08/2016).
6. Os EUA do início do século XXI, tal como a Europa do século anterior, são agora o principal laboratório de uma transformação social e política de potenciais enormes repercussões (negativas). Está a emergir um novo padrão político onde a esquerda (os liberais, em termos sociais e políticos) e a direita (os conservadores tradicionais) se confrontam, cada vez menos, segundo linhas ideológicas clássicas, normais numa democracia pluralista. Ambos estão “cada vez menos dispostos a viver perto uns dos outros, a serem amigos ou a casarem-se com membros do outro grupo”. (Ver “How Identity, Not Issues, Explains the Partisan Divide. New research has disturbing implications” in Scientific American, 19/06/2018). As implicações sociais e políticas são vastas e potencialmente destrutivas da coesão social. Há, assim, demasiados sinais que apontam para que a ênfase na identidade, ideia originalmente emancipadora e libertadora da discriminação social e racial está, gradualmente, a transformar-se numa ideologia destrutiva: o identitarismo. O problema é amplificado pelo sistema político norte-americano, tal como foi criado nos séculos XVIII e XIX, pois não está preparado para esta transformação: partidos identitários com maioria sociológica permanente dos democratas, mas minoria nos Estados da federação, onde os republicanos tendem a ter domínio. O resultado é um impasse político contínuo e fracturas sociais profundas.
7. A (extrema)esquerda multicultural que capturou muitas das políticas do Partido Democrata e a (extrema)direita do Tea Party e da Alt-Right, a qual domina o Partido Republicano são, em teoria, os piores inimigos políticos. Todavia, alimentam-se de um similar identitarismo ideológico para mobilizar os seus adeptos e não querem saber dos efeitos no todo social. Nesta altura, Donald Trump é, muito provavelmente, o maior ganhador desta radicalização. Tudo isto põe em causa o próprio conceito de democracia moderna, que emergiu a partir dos finais do século XVIII, o qual pressupõe uma identidade nacional partilhada e não tribalismos identitários (ver “Dos EUA ao Brasil: a ameaça do tribalismo identitário à democracia” 14/10/2018). No passado, foram os europeus que com a perversão da ideia de nação e a sua transformação em ideologia nacionalista, levaram a conflitos terríveis e a guerras inter-nacionais. Hoje são os norte-americanos que estão a perverter a ideia de identidade (grupal e social) e a transformá-la numa ideologia perversa. Alimenta conflitos transformando-os em "guerras" intra-nacionais, para já metafóricas, mas que, no pior cenário, poderão também ser reais.