Os terroristas “têm mais medo das crianças que estudam do que dos exércitos”
Ahmad Nawaz sobreviveu ao atentado dos taliban que "abalou o Paquistão" e lhe matou o irmão e 132 colegas. Tornou-se activista pelo direito à educação porque deixou de acreditar que as armas vão derrotar os extremistas. "Eles sabem que o futuro de uma sociedade está nas escolas.”
Já tinham ouvido o seu nome mas só quando ele se levantou e subiu ao palco é os que alunos do 11.º e 12.º ano que enchiam grande parte do auditório do Centro Cultural de Cascais o viram. “Olá a todos. Chamo-me Ahmad Nawaz e tenho 17 anos”, diz. “Só?”, é a pergunta em tom de exclamação que se ouve vinda das filas lá trás.
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Já tinham ouvido o seu nome mas só quando ele se levantou e subiu ao palco é os que alunos do 11.º e 12.º ano que enchiam grande parte do auditório do Centro Cultural de Cascais o viram. “Olá a todos. Chamo-me Ahmad Nawaz e tenho 17 anos”, diz. “Só?”, é a pergunta em tom de exclamação que se ouve vinda das filas lá trás.
Sim, Ahmad só tem 17 anos e não parece. Veste fato e gravata. É alto. Mas o que o faz parecer mais velho é o mesmo que o fez crescer nos últimos anos. “Bem, agora devem estar a pensar o que é que alguém de 17 anos pode ter para vos dizer. Este miúdo de 17 anos é vítima de terrorismo. É isso mesmo. Sobrevivi a um ataque mas perdi o meu irmão mais novo e 132 amigos e colegas”, continua Ahmad.
Foi a 16 de Dezembro de 2014 que Ahmad se tornou vítima e sobrevivente. Nesse dia, seis homens com armas e bombas entraram na Escola Pública Militar de Peshawar, no Nordeste do Paquistão. Ahmad escapou por pouco duas vezes, fingindo-se de morto. Primeiro, no grande auditório da escola, onde assistia a uma aula de primeiros-socorros; depois, num balneário atrás do palco onde se refugiou com outros estudantes feridos.
Da primeira vez, escondeu-se por baixo de uma cadeira. “Estes canalhas estão debaixo das cadeiras. Matem-nos a todos”, ouviu gritar. Um dos seus amigos, debaixo da cadeira atrás da sua, foi atingido na cabeça – enquanto o sangue e a pele do colega se lhe colavam à cara, vários disparos atingiam o seu braço.
Já no balneário, entre gemidos dos feridos, começou a acreditar que talvez tivesse escapado. Mas os atacantes voltaram, dispararam contra crianças vivas e mortas, pisaram-no e ainda pegaram fogo à pequena divisão. “Vi a minha professora ser queimada viva, estava ali em frente a mim e não consegui ajudá-la”, contou Ahmad, esta segunda-feira em Cascais.
O atentado do Movimento dos Taliban do Paquistão, um dos piores de sempre, “abalou a nação” e provocou “uma sensação de choque sem precedentes”, descreveram na altura os jornalistas no país. “Este acto de terror sem sentido deixou-me com o coração partido. Crianças inocentes nas suas escolas não devem estar sujeitas a este tipo de horrores”, reagia Malala Yousufzai, a paquistanesa que acabara de receber o Prémio Nobel da Paz, atacada dois anos antes pelos mesmos taliban por insistir em ir à escola.
Ahmad ficou gravemente ferido e precisou de uma série de cirurgias para recuperar, apenas parcialmente, a sensibilidade no antebraço esquerdo. A primeira operação durou 16 horas. Para as seguintes os hospitais paquistaneses não estavam preparados e ele e família voaram para Birmingham. Ahmad, tal como Malala, foi tratado no Hospital Queen Elizabeth da cidade. Entretanto, descobriu que o irmão, Haris, mais novo um ano, tinha morrido na escola.
O irmão “mais esperto”
“Fiquei muito zangado com os meus pais por me esconderem. Gostava de ter visto o meu irmão uma última vez”, diz, numa conversa antes da sessão de apresentação das próximas Conferências do Estoril, em Maio, quando Ahmad regressará como orador. Os pais, Mohammad e Samina Nawaz, começaram por lhe dizer que Haris estava noutro hospital e ele não percebia “a tristeza nos olhos deles”. Foi um amigo que lhe contou.
Haris não queria ir à escola nesse dia. Mohammad, que agora acompanha o seu mais velho cheio de orgulho do adolescente que se tornou activista, não se perdoa por não lhe ter dado ouvidos. Ahmad também não. “Ainda ouço a voz dele a insistir e eu a convencê-lo que tínhamos de ir”. Em casa, com a mãe, ficou o membro mais novo da família, Umar, hoje com onze anos.
“O meu pai estava a ganhar mais dinheiro [com uma empresa de distribuição de produtos alimentares] e como acreditava que tínhamos de ter uma boa educação, inscreveu-nos. Nós fizemos os exames e aceitaram-nos na Escola Militar”, explica. “Eu e o Haris éramos muito competitivos. Ele era mais esperto, a sério, era mesmo. Queríamos sempre ter as melhores notas. Se num ano eu fosse o primeiro da minha turna e ele o segundo, já sabia que eu ia passar o resto do ano comigo a gozar com ele. Ao contrário era diferente, ele poupava-me mais”, recorda a sorrir.
No Paquistão, eram todos fãs de críquete. O próprio Ahmad “jogava críquete e gostava de ver jogos” mas era “mais de estudos do que de brincadeiras”, “muito tímido e pouco confiante”. Agora, Ahmad e Umar gostam de futebol. Mais Umar do que Ahmad. “O meu irmão adora, joga futebol e é um grande fã de Ronaldo; eu prefiro o Messi, é a nossa grande divergência.”
Quando era mais pequeno, Ahmad quis ser médico. “Depois, na Escola Militar ainda pensei no Exército. Achei que as pessoas me iam respeitar, ia matar terroristas, ser um herói nacional. Com o ataque percebi que nunca vamos conseguir derrotar o terrorismo com armas. Temos de tentar derrotar aquela ideologia.”
Basta um
Foi no Hospital Queen Elizabeth que viu uma notícia sobre os 800 adolescentes e jovens britânicos tinham saído do Reino Unido para se juntar ao Daesh. “Não queria acreditar. Num país com tantas escolhas.” E foi assim que Ahmad informou o pai que queria falar com outros miúdos, contar a sua experiência e partilhar com eles o que o acabara de descobrir: “Eles têm mais medo das crianças que estudam do que dos governos e exércitos. Sabem que o futuro de uma sociedade está nas escolas, por isso é que nos atacaram.”
O primeiro discurso aconteceu na Câmara dos Lordes, em 2015, Ahmad “estava mesmo muito nervoso”. Desde então, falou em centenas de escolas no Reino Unido, foi chamado a colaborar com o Ministério do Interior em diferentes projectos, tornou-se embaixador da Organização Anne Frank e da Fundação Oxford, recebeu inúmeros prémios. Também já falou várias vezes ao lado de Malala. “Somos vizinhos em Birmingham. Ficámos amigos.”
“Nunca nenhum miúdo me disse que estava a pensar viajar para se juntar a terroristas. Se o dissessem poderiam ter problemas. Mas vários vêm falar comigo, admitem que tinham outras ideias e que eu os deixei a pensar. Basta um”, afirma, sorriso rasgado.
Agora quer começar a ir a outros países, como o Paquistão, levar a mensagem que deixou em Cascais. “O mundo enfrenta tantos problemas, o extremismo, a desigualdade de género, tantas pessoas privadas dos seus direitos humanos mais básicos. Perante todas as tragédias há duas opções. Uma é ficarmos calados. A segunda, a única na verdade, é tomar uma posição, falar”, diz.
“Defender alguém que está a ser alvo de racismo, lutar contra crimes de ódio ou injustiças”, enumera Ahmad. “Primeiro procurem à vossa volta, comecem por vocês mesmos e pelos problemas na vossa comunidade, depois podem olhar de forma mais abrangente para a sociedade”, explica, interpelando os miúdos de 16 e 17 anos que o ouvem. A seguir, pede-lhes “uma promessa”: “Agir é a nossa responsabilidade. Já não é uma opção Se não o fizermos ninguém o fará. Vocês têm muita sorte. Vão à escola sem medo de violência. E as vossas vozes são ouvidas. Isso é um poder. Usem esse poder”.
O “incidente”
Ahmad refere-se ao “incidente”, ao trauma a que ele conseguiu dar algum sentido com o activismo, defendendo “o direito de todas as crianças à educação”, a “melhor ferramenta de combate ao terrorismo e ao extremismo”.
“Nunca vou esquecer aquele dia. Mesmo que não passasse a vida a falar sobre o incidente, nunca esqueceria”, diz. “Quando me sinto triste, angustiado e com raiva penso que tenho de usar esses sentimentos de forma positiva, fazer de tudo para que ninguém tenha de passar por aquilo que eu e a minha família passámos”, explica, com os enormes olhos castanhos ainda mais abertos.
Recordando a vida em Peshawar, onde muitos apoiam partidos e grupos extremistas, incluindo os "estudantes de teologia", Ahmad insiste que o maior problema “é a grande taxa de analfabetismo”, que relaciona com a “quantidade de ataques”. Porque até para ser crente é preciso ter educação, “uma pessoa ignorante é mais fácil de influenciar por um qualquer autodenominado erudito”.
“Sou um muçulmano conservador, cumpridor dos preceitos do islão. Mas vejo as religiões como forma de nos completarmos, não como algo que nos divida”, diz o adolescente de cabelo bem aparado, com um ar tão mais crescido do que em 2014, antes do “incidente”, ou mesmo em 2016, nas fotografias que o mostram a falar em liceus e universidades.
Ahmad faz questão de continuar a ser um excelente aluno. “Primeiro estive numa escola pública, era boa, mas a competição não era muita”, diz. Agora anda na prestigiada Escola King Edward. “Fiz exames, fui admitido e deram-me uma bolsa total.” Nos exames para obter o GCSE (Certificado Geral de Educação Secundária) teve seis A+ e dois A. “Queria provar que podia conciliar os estudos e o activismo. E meti na cabeça que vou entrar em Oxford [onde estuda Malala]. Queria estudar Política e Relações Internacionais mas eles não têm. Talvez Filosofia, Política e Economia, apesar de não ser muito bom a matemática, a parte da economia assusta-me.”
Depois de conversar com Ahmad acredita-se que ele será capaz de tudo. E percebe-se o silêncio na plateia quando acabou de falar. Passado uns minutos, Inês, da Escola Secundária da Cidadela, perguntou-lhe onde é que ele ia buscar forças. A seguir, Diana, da Escola Secundária de Cascais, quis dar-lhes os parabéns e agradecer-lhe por essa “força”. “Sabemos que estas coisas acontecem mas depois é como se não quiséssemos saber. Não é isso, queremos saber mas não vemos… Obrigada por abrires alguns olhos.”