A solidão crescente da Estátua da Liberdade
O massacre de Pittsburgh, o mais grave até hoje perpetrado contra os judeus nos EUA, vem abalar a tranquilidade da comunidade judaica americana.
Na sua obra magistral The Destruction of the European Jews, inexplicavelmente nunca traduzida para o português, Raul Hilberg sintetiza assim a realidade do antissemitismo ao longo da história:
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Na sua obra magistral The Destruction of the European Jews, inexplicavelmente nunca traduzida para o português, Raul Hilberg sintetiza assim a realidade do antissemitismo ao longo da história:
“Os missionários da Cristandade disseram: Vocês não têm o direito de viver entre nós como judeus; Os chefes laicos proclamaram: Vocês não têm o direito de viver entre nós; Os nazis alemães no fim decretaram: Vocês não têm o direito de viver.”
Na verdade, para Hilberg, o antissemitismo é bem mais do que uma das múltiplas variantes do racismo. O carácter cíclico da perseguição e do ódio antijudaico, a sua longevidade, a constância das perseguições, a força e a extensão desse ódio com todos os mitos e fantasmas que ele não deixa de suscitar, fazem do antissemitismo um fenómeno único.
Pioneiro na historiografia do Holocausto, Raul Hilberg nasceu em Viena em 1926, tendo acompanhado os pais em 1939 na fuga de uma Áustria nazificada para os Estados Unidos. Tinha 13 anos e, ao mesmo tempo que estudava, trabalhava a meio tempo como operário em fábricas de Manhattan. Anos mais tarde, integra o exército americano e, ironia da história, será como soldado americano que voltará à Europa no quadro da Segunda Grande Guerra. Cantonado várias semanas no final da guerra em Munique, precisamente no antigo quartel-general do partido nazi, Hilberg depara-se com cerca de 60 caixas de madeira: “Consegui abrir algumas e descobri que elas continham a biblioteca pessoal de Hitler.”
De volta aos Estados Unidos, Raul Hilberg decide abandonar o curso de Química e dedicar a sua vida ao estudo da máquina de morte nazi. A sua tese, intitulada A Destruição dos Judeus Europeus, só será publicada em 1961 numa pequena editora. Acolhida com indiferença e desconfiança, a sua obra será reconhecida internacionalmente apenas 20 anos depois.
Na caracterização lapidar do antissemitismo acima citada, Hilberg não vai além do nazismo, objecto do seu estudo. Na verdade, esperava-se, ou mais precisamente seria de esperar, que o trauma da catástrofe da Shoah agisse como um antídoto contra o antissemitismo, uma espécie de vacina violenta e dolorosa que acabasse de vez com o ódio aos judeus. Mas isso não aconteceu: assim como a história não acabou com a queda da Cortina de Ferro, o antissemitismo não acabou depois do Holocausto.
Manteve-se na Rússia soviética e nos países do Leste europeu e cada vez mais abertamente também no ocidente europeu, onde, a partir da criação do Estado de Israel, ressurgiu sob a forma de um anti-sionismo radical, de face muçulmana. Todos os atentados a pessoas e alvos judaicos na Europa têm sido praticamente sem excepção cometidos em nome do islão.
Mas o vírus inicial não desaparecera e hoje, numa Europa em busca de si própria, manifesta-se cada vez com maior intensidade. Produto da erosão da democracia representativa, vemos hoje assumirem ou partilharem o poder forças que acreditávamos extintas, vencidas pela História. Denominadas com demasiado pudor de “populistas”, elas são na verdade fascizantes e ressurgem precisamente em países cujo passado nunca passou definitivamente: Hungria, Polónia, Alemanha, Itália... O desgaste contínuo dos sistemas democráticos e nomeadamente a descrença na União Europeia alargará certamente o leque desses países com as suas características principais – nacionalismo tribal, xenofobia, antissemitismo, violência... e em consequência a sangria judaica da Europa. Se é verdade que ser judeu hoje na Europa é ter do ponto de vista individual a mesma liberdade, as mesmas condições e direitos de qualquer cidadão, colectivamente, é viver numa comunidade em perda e insegura sobre o amanhã.
Assim, em resposta à pergunta milenar dos judeus em todo mundo – “O que é melhor para nós”, ou seja, o menos mau –, a resposta, no âmbito da Diáspora, tinha um nome: os Estados Unidos da América. A consagração da liberdade religiosa na Constituição norte-americana, aprovada em 1787, e a própria vocação natural do país possibilitaram a integração bem-sucedida de culturas e religiões diversas no “sonho americano”... Com efeito, o melting pot nos EUA não é assimilacionista, valorizando pelo contrário a dupla pertença: à nação americana, por um lado, e ao grupo étnico ou religioso de origem, por outro. A “dupla lealdade”, que na Europa foi sempre motivo de desconfiança e fonte de antissemitismo, é na cultura americana algo de natural e de intrínseco. A história dos judeus nos EUA tem momentos menos felizes, mas globalmente é uma história de sucesso, uma excepção na vivência judaica e um modelo único de integração bem-sucedida. O judaísmo americano conseguiu realizar as aspirações que a Revolução Francesa fez nascer entre os judeus: encontrar uma pátria e ter uma vida normal. Tal como os outros povos...
É talvez por isso que o choque causado pelo massacre de Pittsburgh foi duplamente brutal: em primeiro lugar pela morte cruel dos 11 judeus da Comunidade “Árvore da Vida”, mas também pelo carácter inesperado e inédito do mesmo. O massacre de Pittsburgh, o mais grave até hoje perpetrado contra os judeus nos EUA e levado a cabo por um racista branco clamando que “os judeus têm de morrer”, vem abalar a tranquilidade da comunidade judaica americana, cujas instituições e sinagogas abertas ao público são um símbolo da confiança na sua identidade americana.
Nos seus primeiros comentários sobre o massacre, Donald Trump atribuiu parte da responsabilidade às próprias vítimas por não terem seguranças à porta da sinagoga. Provavelmente essa situação irá infelizmente mudar, obrigando as instituições judaicas americanas a recorrer aos mesmos meios de segurança europeus que transformam escolas e sinagogas em fortalezas. Mas o que é claro para a comunidade de Pittsburgh é que os incidentes antissemitas aumentaram 57% desde a tomada de posse de Trump como Presidente dos EUA. O que é claro é que o discurso politico-ideológico de líderes como Trump e Bolsonaro, de Orban na Hungria, Mateusz Morawiecki na Polónia ou Matteo Salvini na Itália, alimentam e libertam a expressão mais ou menos violenta dos sentimentos mais primários e básicos das populações em tempos de crise – em particular, o racismo, a xenofobia e o antissemitismo. O atentado de Pittsburgh mostra claramente que mesmo que o alvo da violência sejam em primeiro lugar os imigrantes e os muçulmanos, ela acabará sempre por atingir os judeus. E, é a minha convicção, nenhum destes líderes acorrerá em seu socorro...