Aston Martin lança eléctrico em 2019 mas será "o último do planeta" a fazer um autónomo
Marek Reichman, vice-presidente da marca britânica, diz que a empresa está preparada para a nova mobilidade, sem ceder naquilo que a distingue.
O papel de um responsável criativo é fundamental numa empresa que se "norteia pela beleza" como a Aston Martin. E dentro deste construtor de carros desportivos e de luxo – que este ano apresentou o seu conceito de avião e ajudou a produzir bicicletas –, esse papel cabe a Marek Reichman, vice-presidente e Chief Creative Officer da Aston Martin, que passou por Lisboa para mostrar como é que o centenário fabricante do carro preferido de James Bond está a preparar o futuro.
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O papel de um responsável criativo é fundamental numa empresa que se "norteia pela beleza" como a Aston Martin. E dentro deste construtor de carros desportivos e de luxo – que este ano apresentou o seu conceito de avião e ajudou a produzir bicicletas –, esse papel cabe a Marek Reichman, vice-presidente e Chief Creative Officer da Aston Martin, que passou por Lisboa para mostrar como é que o centenário fabricante do carro preferido de James Bond está a preparar o futuro.
O portefólio de modelos nunca foi tão grande como será em 2020: no próximo ano terá à venda o primeiro modelo 100% eléctrico, o Rapide E, que servirá como experiência de mercado para, no ano seguinte, se assistir ao renascer do histórico Lagonda, que terá dois modelos eléctricos no mercado em 2020. Serão eles os dois pilares da mobilidade eléctrica desta empresa que, aos 105 anos de vida, entrou na bolsa, a 3 de Outubro. E que apesar de desenvolver produtos cuidadosamente construídos, para carteiras muito ricas, até já olha para eventos de massas como a Web Summit como um sítio fundamental para se promover nos dias de hoje.
A Aston Martin está a criar um carro eléctrico, o Rapide E. Quando é que vai ser lançado?
Vamos pô-lo à venda em 2019. Seremos o primeiro construtor de carros de luxo a colocar no mercado um carro 100% eléctrico, com uma bateria de 800 volts, com a qual reduziremos o tempo de carregamento em 50%.
Quantos exemplares vão produzir?
Serão 155 unidades, são especiais e muito muito importantes para nós porque eles também nos permitirão recolher directamente junto do cliente um conjunto de dados qualitativos e quantitativos. Vamos poder saber junto dos compradores como é que eles vão usar o carro, se valorizam mais a autonomia ou a performance, qual é o padrão de utilização dos nossos carros com bateria eléctrica (BEV, battery electric vehicle).
Mas um Aston Martin é um carro de utilização diária?
Tipicamente, diria que um carro nosso faz em média 4000 quilómetros por ano, por isso a resposta à sua pergunta é: não são, regra geral, carros de utilização diária. Mas há excepções e nesses casos vamos obter uma visão directa e clara sobre a forma como são usados. Além disso, em 2021 lançaremos o Lagonda, construído sob uma plataforma BEV. Tudo isto é para nós um processo de aprendizagem. Se perguntarem ao Andy [Palmer, CEO da Aston Martin], que é o “avô” do Nissan Leaf, ele dir-vos-á que o primeiro carro eléctrico que uma marca fabrica serve para perceber as diferentes frequências e padrões de utilização e outras questões que mudam quando se produz um carro que não é movido a combustíveis fósseis.
Um cliente Aston Martin deve ser alguém muito especial. Como é que ele reagirá a um motor eléctrico?
Exacto! Começa logo na questão do som versus o silêncio. O que é que vai pensar o dono de um Aston Martin silencioso, face ao dono de alguém que tem um carro nosso com um motor V12? Isto são questões com que nos deparámos durante a preparação do Rapide E e com as quais continuamos a lidar agora que o estamos a construir.
Para a marca, o que é que significa produzir um carro destes com bateria eléctrica?
Mostra que reconhecemos que o futuro não será eternamente dos carros de combustíveis fósseis. Mostra que nós compreendemos a exigência que foi colocada em cima da mesa, para que a indústria do automóvel mude e que altere a concepção dos produtos.
A Aston Martin também vai mudar?
Eu diria que somos uma empresa mais ou menos agnóstica no que se refere ao tema do combustível, porque somos uma empresa focada na beleza. E é óbvio que um carro eléctrico também pode ser bonito. Um V12 é algo de belo, um carro com a nossa plataforma BEV pode ser igualmente belo, enquanto objecto. É claro que assumimos a nossa herança, a história dos grandes motores V8 ou V12, mas temos obviamente de pensar no futuro da Aston Martin e no futuro dos nossos produtos.
Falou de mudança na indústria, mas o panorama é muito diferente entre fabricantes. Como definiria a situação actual da Aston Martin, em que ponto está esse processo de transformação?
Temos a vantagem de sermos um fabricante independente. A Mercedes tem cerca de 4% do capital e fornece motores bem como sistemas eléctricos que usamos no DB11 Vantage e no DBS e que usaremos em alguns dos nossos futuros produtos. Como somos uma pequena empresa britânica, não temos os recursos para investir os milhões necessários no desenvolvimento de sistemas eléctricos e por isso uma das grandes vantagens de termos um parceiro tecnológico como a Mercedes é ter acesso às novas tecnologias que eles estão ou vão desenvolver, bem como acesso às plataformas e sistemas digitais.
Mas a Mercedes vende para todo o lado e em massa, ao contrário da Aston Martin. Isso acaba por ser uma vantagem?
O reverso da medalha é que nós só produzimos 85 mil carros. Se me puser a olhar para o volume da nossa produção e para a interface com os nossos clientes, eu diria que num ano irei reunir-me com pelo menos mil clientes que me dirão directamente como é que usam o carro que produzimos para eles. Isso ajudar-nos-á a redefinir como é que o cliente Aston Martin quer ter e usar os sistemas interconectados que vamos ter no futuro, sejam eles o da Realidade Aumentada, o do controlo por voz ou por gestos, e como querem usar esse tipo de sistemas. É preciso lembrar que há carros nossos a fazer corridas de 24 horas, durante as quais monitorizamos constantemente o carro e o piloto. Não há muitos construtores que reúnem esta quantidade de dados, que conseguem saber como nós sabemos qual é o comportamento do carro a longo de cada milímetro da pista…
Está a falar-nos de carros de corrida…
Estou a falar de como nós podemos fazer a transformação digital da nossa empresa e dos nossos produtos. Temos a capacidade de recolher dados, muitos dados, a questão está como sempre em saber o que se faz com esses dados. Como vendemos um produto de luxo, temos clientes que vão sempre querer o melhor de dois mundos: querem comprar algo artesanal, algo que foi cozido, pintado e construído à mão; mas ao mesmo tempo exigem ter o melhor que a tecnologia tem para oferecer. O facto de sermos mais pequenos e, ao mesmo tempo, de recolher todas essas informações, vai permitir-nos aprimorar o produto para cada cliente.
E no futuro vai haver um Aston Martin 100% autónomo?
Diria que poderá haver, mas será o último carro do planeta a ser totalmente autónomo.
Porquê o último?
Porque um Aston Martin é construído para ser conduzido.
Mas faz sentido um fabricante querer ficar de fora de algo que parece cada vez mais ser o futuro do carro?
Não digo que ficaremos de fora. O Aston Martin vai ter a capacidade de ser autónomo, mas só terá essa capacidade quando a legislação assim o exigir. Penso que todos os sistemas que já existem, todos os módulos que veremos surgir no futuro serão fantásticos para a nossa sociedade. Travar as mortes nas estradas com a ajuda do carro autónomo, tornar as nossas vidas mais eficientes, tudo isso será fantástico. Mas o que vamos fazer com o tempo que vamos poupar? O cliente Aston Martin vai querer pegar no seu carro e ir com ele para uma pista. No fim de contas, tem de haver uma razão para quereremos poupar o tempo que actualmente perdemos nessas coisas. E nós fazemos um produto para pessoas que querem conduzir. Posso dar outro exemplo desta nossa atitude: sempre dissemos que queríamos manter uma caixa manual de velocidades em produtos nossos porque há pessoas que querem ter esse sentimento visceral que advém de conduzir os nossos carros.
Há pouco dizia que o vosso foco é a beleza. O que remete para a estética dos carros que, no mercado de massas, parece cada vez mais igual entre marcas. Se tirássemos os logótipos das marcas, provavelmente não conseguiríamos dizer a que marcas pertencem certos modelos. Por que é que isto está a acontecer?
Temos de regressar às premissas do design. O design existe para resolver um problema. Mas também serve para olhar para a tecnologia, para os materiais e combinar isso tudo numa solução que responda, que satisfaça um mercado, uma procura. Todos os carros resultam de um compromisso, de uma cedência, e o verdadeiro luxo é aquele mercado em que a cedência é a mais reduzida. Se olharmos para os segmentos de entrada, para o mercado de massas, aí há tanta pressão para evitar falhas que o risco de não ceder se traduz no risco de não chegar ao número suficiente de clientes. Quem está nesses mercados, olha para todos os dados e vê que toda a gente está a comprar uma característica e por isso todos passam a querer dar o mesmo ao mercado.
Se olharmos para os produtos que se distinguem, que nessa perspectiva poderíamos considerar mais fora da caixa, mesmo no mercado de massas, aqueles que não cedem tanto, que são ousados, que questionam as razões, conseguem distinguir-se. O [Nissan] Qashqai é um bom exemplo disso. É um modelo que não se assemelhava a nenhum outro produto e que tem sucesso.
Mas depois todos quiseram ser o próximo Qashqai…
Acredito que a beleza deveria ter um papel mais relevante no mercado de massas e a decisão sobre se isso acontece ou não depende muitas vezes da relação de forças entre o design e quem manda.
A lógica da Aston Martin é design primeiro e engenharia depois, ou o contrário?
[Gargalhadas] Tenho a certeza que se perguntar ao Andy [Palmer] ele vos dirá que somos uma companhia norteada pelo design, porém sabemos que design sem engenharia de alto nível não tem funcionalidade nem performance. Porém, diria que se tivéssemos de comprometer 0,1 ou 0,2 segundos [na performance de um carro] em nome da beleza, provavelmente cederíamos.
A Aston Martin entrou recentemente na bolsa de Londres e talvez não tenha corrido tão bem quanto desejariam. Como é que a administração olha para esse processo?
A entrada em bolsa através da Oferta Pública de Venda Inicial (IPO na sigla inglesa) é importante em termos da longevidade do negócio. Toda a equipa de gestão sob liderança do Andy desejava a entrada em bolsa. Queríamos a governance que a empresa merece e necessita para ter futuro. Em 105 anos de vida, a empresa conheceu tempos muito diversos, teve ciclos bem distintos e alguns nada fáceis devido à falta de investimento. Houve quem a comprasse como se fosse um troféu. Era vendida, era amada, faziam coisas e depois quando se esgotava o ciclo de vida do produto ou da gestão voltava-se ao marasmo. A independência que agora temos dá-nos a governance apropriada para evitar que tudo isso se repita, garante que o free cash flow [proveitos] que se gera possa ser investido em produtos.
Mas os resultados não foram os que se esperavam, as acções venderam-se por um preço mais baixo e caíram rapidamente…
Mesmo assim, creio que fomos o maior IPO na Europa, somos o primeiro fabricante automóvel britânico a conquistar esta independência desde a Jaguar há uns 30 anos. O IPO significa que a empresa tem um plano para o seu segundo século de vida.
E onde é que a Aston Martin quer chegar com esse plano para os próximos 100 anos?
Estamos a expandir o portefólio da empresa como nunca se viu, nunca houve sete modelos em simultâneo. Faremos 7000 carros desportivos por ano, entrámos no mercado dos SUV, vamos recuperar o Lagonda com dois modelos e apontamos para uma produção máxima de 14 mil unidades, duplicando a nossa capacidade de produção. Temos duas fábricas neste momento, dois estúdios de design e um mais pequeno em Xangai… Isto mostra que a empresa se está a tornar global, mas conservando a exclusividade que a caracteriza.
O mercado europeu representa um quarto das vossas vendas. Como é que olham para o “Brexit”?
Temos planos para o “Brexit” e uma situação que é bastante diferente dos grandes produtores mundiais. Dada a dimensão mais pequena da nossa produção, podemos tomar medidas que outros não podem. Se as barreiras e as taxas alfandegárias se tornarem impeditivas, nós poderemos optar mais facilmente por algumas alternativas que já estão pensadas para garantir que a nossa produção não é afectada.
O que significa encontrar um executivo da Aston Martin numa conferência de tecnologia como a Web Summit?
Significa que a empresa está num ponto completamente distinto daquele em que se encontrava há cinco anos.
Em que sentido?
Há cinco anos simplesmente não estaríamos num evento destes. Não estaríamos a considerar a Web Summit como algo importante para os nossos futuros clientes e para o futuro da empresa, não estaríamos a pensar nas centenas de startups que vão a uma coisa destas, no mundo digital em que estes millennials vivem. Mas agora, sob esta liderança, pensamos que este é provavelmente um dos sítios mais importantes para estarmos, porque à medida que o mundo se transforma e se torna mais digital, empresas como a nossa têm de estar na linha da frente, ou no centro, desse movimento. No passado, fomos talvez demasiado britânicos e por isso éramos apenas a marca do carro do James Bond. Mas quando vamos à Web Summit, as pessoas começam a perceber melhor o que é a Aston Martin, qual a sua filosofia.