Taberna dos Cabrões: ossos, iscas e um chocalho quando há “gado novo”
É uma taberna onde reina a boa disposição, por entre as piadas de Serafim e as melhores iscas do Montijo e mais além.
Estamos sentados a comer um prato de rins grelhados e a olhar com alguma inveja para o que, noutras mesas, parece ser um cozido, mas que aqui se chama “ossos carregados” e que já tinha acabado quando fizemos o nosso pedido, quando a porta que dá para o pátio se abre e entra uma figura imponente com um chocalho na mão.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Estamos sentados a comer um prato de rins grelhados e a olhar com alguma inveja para o que, noutras mesas, parece ser um cozido, mas que aqui se chama “ossos carregados” e que já tinha acabado quando fizemos o nosso pedido, quando a porta que dá para o pátio se abre e entra uma figura imponente com um chocalho na mão.
Serafim Tavares, nascido nas Beiras há 61 anos, mas homem do Montijo desde sempre, é grande, de bigode afirmativo, e toca o chocalho com tanta energia que quase damos um salto na cadeira com o susto. Mas na Taberna dos Cabrões, no Montijo, é sempre assim, os almoços acontecem entre brincadeiras — “dizemos que o chocalho é quando há gado novo”, explica depois, quase a desculpar-se pela brejeirice.
Mas é precisamente pela brejeirice e pela animação que muita gente vem a esta casa, no Alto das Barreiras, com uma fachada onde ainda se lê Vinhos e Petiscos e que quase passaria despercebida a quem vai na estrada, não fosse o grande número de carros estacionados junto à porta — sempre sinal de que alguma coisa boa se passa no interior.
Serafim está na grelha, mas de vez em quando faz a sua aparição na sala, diz umas quantas piadas relacionadas com o nome do estabelecimento, deixa os clientes às gargalhadas e volta para o trabalho. Mas se o nome desperta a curiosidade e as piadas chamam gente, o facto é que a comida é o mais importante. E aqui come-se bem.
“Não trabalhamos com congelados, o grão é posto de molho, o feijão é posto de molho, a alface é apanhada no dia, se comeu alface agora ao meio-dia, às 10h ela ainda estava na terra”, garante Serafim, quando, às 16h30, consegue finalmente sentar-se a conversar connosco no pátio exterior, onde fica também, numa zona coberta, a grelha que durante a hora do almoço não pode largar.
Este pátio onde estamos, Serafim conhece-o muito bem, desde pequeno. “Fui criado aqui ao lado, onde é a Fábrica Isidoro”, conta. “A gente fugia à minha mãe para vir para aqui para a brincadeira.” Nesse tempo, como diz a fachada voltada para a estrada, esta era uma casa de vinhos e petiscos. “Havia uma senhora que esteve aqui 55 anos dentro do balcão. Tenho ali o alvará de 1946, que é o mais antigo do Montijo ainda em actividade.”
Por volta de 2002, Serafim começou a vir “vender uns copos” — e nunca mais saiu. Para acompanhar os copos fazia umas comidas, começaram a servir um almoço e a casa foi-se fazendo. A história do nome, já a contou mil vezes, mas aqui fica para memória futura: “À tarde juntava-se sempre bastante gente, porque a fábrica do tijolo ainda trabalhava. Havia aqui um indivíduo, que por acaso até era da minha criação, que dizia que só pagava para cabrões. Estavam ali uns sete e ele disse ‘se for cabrão podes dar-lhe um copo’. No final perguntou quanto era e todos tinham bebido, e ele disse ‘ah, bebeu tudo, então é uma taberna de cabrões.” E assim ficou.
Com a Ana, “que está nas contas, ao balcão, e foi criada aqui praticamente” com ele, e com o filho, Serafim tornou a Taberna dos Cabrões uma referência. “Até o nosso actual primeiro-ministro veio aqui”, antes de ser chefe do Governo, diz, lembrando o momento que deu até foto no jornal.
Mas manter uma casa de onde os clientes saiam sempre felizes não é tarefa fácil. Serafim levanta-se às seis da manhã para garantir produto fresco. “Hoje, eram seis e já estava no mercado abastecedor para retalhistas a escolher o meu produto. Vou lá comprar tudo, não quero que me tragam nada. Ao talho vou todos os dias, porque as coisas acabam. Ali no quadro já devem estar cruzes dos pratos que acabaram, amanhã é tudo fresco outra vez.” Quando chegou das compras, já era altura de “pôr os ossos ao lume” num prato de Inverno que, “para quem não comer os enchidos, pode-se considerar um cozido light”.
Mas o prato mais famoso são as iscas (e, segundo diz Serafim, António Costa é um dos apreciadores). “Vêm pessoas de longe por causa delas. A diferença é que eu corto-as fininhas, se pedir no talho não cortam assim. E são temperadas na hora, não as ponho a marinar, o nosso alho é branquinho por causa disso. E como são muito fininhas, ganham gosto.”
No início, o que sabia fazer na cozinha era desenrascar-se — “eu tinha uns oito anos e já estrelava ovos para mim e para o meu irmão” — mas o gosto foi-se instalando e hoje vai a outros restaurantes e conversa com amigos cozinheiros, sempre a querer aprender mais. “Amanhã era para fazer grão com mão de vaca, mas afinal vai ser um borregozinho à pastor”, promete.
Às vezes, olhando para o movimento à porta, havia quem perguntasse: “Como é que aquela barraca mete tanta gente?”. Serafim faz um sorriso modesto: “Você vê, a casa é humilde, pobre. A gente tenta fazer a diferença.” Quanto aos cabrões, não é caso para preocupação. “Como diz um cliente nosso, nem todos os que aqui vêm são, mas nem todos os que são vêm, senão era preciso um restaurante daqui até Pias.” E lança uma das suas sonoras gargalhadas.