Trufas, os mistérios dos diamantes da floresta
Novembro é época da trufa branca, a mais valiosa. Na Toscana e no Piemonte, acompanhámos dois caçadores de trufas por um mundo feito de homens, cães, silêncio, uma floresta cada vez mais ameaçada e esses estranhos frutos de aroma inebriante.
Giotto não é o mais disciplinado dos cães. Segue-nos aos saltos, impacienta-se quando Luca lhe pega ao colo para uma fotografia, desaparece de repente sem dizer para onde vai. Bieba é bastante mais bem comportada, nunca se afasta muito, verifica a área em círculo, como deve ser, e segue-nos, atenta ao que Luca espera dela. E o que se espera, de ambos, é que encontrem trufas brancas no meio da floresta.
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Giotto não é o mais disciplinado dos cães. Segue-nos aos saltos, impacienta-se quando Luca lhe pega ao colo para uma fotografia, desaparece de repente sem dizer para onde vai. Bieba é bastante mais bem comportada, nunca se afasta muito, verifica a área em círculo, como deve ser, e segue-nos, atenta ao que Luca espera dela. E o que se espera, de ambos, é que encontrem trufas brancas no meio da floresta.
Para um caçador de trufas, o cão é praticamente tudo. “Noventa por cento do trabalho é feito por ele”, diz Luca, que trabalha para a Savini Tartufi, uma das empresas de trufas mais famosas da região de Florença, na Toscana. Por isso, um bom cão (a melhor raça é o Lagotto Romagnolo, como Giotto) pode custar entre cinco e oito mil euros e tem que ser treinado desde bebé e durante os primeiros seis meses, primeiro esfregando trufas na mãe antes de ele mamar e depois, quando já come, dando-lhe minúsculos pedacinhos. Quando cresce, o cão aprende a encontrar a trufa e a entregá-la ao dono — a recompensa é um biscoito e é nisso que ele está concentrado.
Criado com o aroma e sabor das trufas, o cão chega à floresta e dispara em busca destes tesouros escondidos debaixo da terra, onde nem os olhos nem os narizes dos homens os conseguem detectar. É aí que se percebe que o que se pagou pelo cão e o que se investiu no seu treino é largamente compensado: a trufa branca estava este ano a 2500 euros o quilo, e no ano passado, que foi mau por causa da falta de chuva, atingiu valores muito mais elevados.
Se há na trufa um lado de glamour e de festa, quando, nos restaurantes, o chef chega à mesa e, generosamente, raspa lascas de trufa para os pratos e quase se ouve o som das caixas registadoras a marcar o preço a subir a cada grama que cai, gracioso, em cima dos ovos ou das massas, há também um outro lado, muito diferente, de comunhão com a natureza. Foi esse que fomos conhecer no nosso passeio com Luca, Giotto e Bieba.
“As trufas não são uma variedade cara de batatas”, começa por avisar Luca. “A única coisa que não sabemos sobre elas é quanto tempo demoram a crescer. Isto porque enquanto crescem não cheiram, só começam a cheirar no final da vida.” Há uma janela de oportunidade pequena para podermos apreciar uma trufa: ela tem que ser detectada pelo cão nesse momento em que começa a ter aroma e, uma vez apanhada, deve ser comida o mais rapidamente possível. Ao fim de quatro ou cinco dias, perdeu já todo o aroma e começa a tornar-se esponjosa.
A nossa “caçada” acontece de dia, como com todos os turistas que fazem o programa disponibilizado pela Savini Tartufi, mas os verdadeiros caçadores de trufas (e são cerca de 600 os que fornecem esta empresa) preferem trabalhar de noite, quando há paz, silêncio e, sobretudo, quando ninguém consegue ver onde é que eles encontraram uma trufa. Há um secretismo em redor desta arte porque, ano após ano, as trufas nascem nos mesmos locais e quem tem experiência vai construindo um mapa mental para saber onde as encontrar.
Os cães continuam a saltar à nossa volta, cada um com o seu estilo. Quando um deles parece detectar alguma coisa, não ladra, mas a cauda indica que está a cheirar uma trufa. Depois, é deixá-lo escavar, ajudando um pouco, e incentivando-o. “Dai, dai, fa vedere”, repete Luca, já quase deitado no meio das árvores, numa zona inclinada. Giotto está excitadíssimo e esgravata cada vez com mais energia. Nós debruçamo-nos tentando perceber o que é que o cão terá visto. Mas, na realidade, não viu nada e só o cheiro chega às narinas dele (antigamente eram usados porcos para este trabalho, mas Luca explica que davam demasiado prejuízo porque comiam muitas trufas).
De repente, por entre a confusão de terra, raízes, folhas, botas que escorregam, cães abanando as caudas com os focinhos cheios de pó, Luca exclama: “Ele já a tem”. A trufa, branca, pequena, retorcida, está entalada entre os dentes de Giotto. Espreitamos para a boca do animal. Lá está ela. Ele segura-a, mas não a danifica. Com cuidado, Luca mete e mão e retira-a. Poucos segundos depois, Giotto está regalado a mastigar o seu biscoito e nós, fascinados, a fotografar a trufa que Luca segura entre os dedos.
“Nunca se encontram duas no mesmo buraco”, explica. “Por isso é muito importante mostrar a trufa em primeiro lugar ao cão para ele perceber que já a temos. Se não, continua a tentar escavar porque o cheiro ainda está na terra.”
O passeio continua e a cena repete-se mais duas vezes. De cada vez que encontramos uma trufa, Luca tem o cuidado de tapar o buraco, repondo a terra, uma forma de não dar a entender a outros onde é que foi feita a descoberta e de repor as condições naturais para que a trufa volte a nascer. Menos cuidadosos são os javalis, que, neste momento, constituem a concorrência mais agressiva dos caçadores de trufas — e são muito pouco discretos, deixando buracos escavados por onde passam.
Os caçadores de trufas entendem a natureza. Conhecem esse segredo que se estende por baixo dos nossos pés, enterrado na terra húmida. Gostam do silêncio, de ouvir apenas as patas dos cães sobre os galhos secos e as folhas mortas. Mas sabem que este é, em muitos locais, um modo de vida ameaçado.
Mudança de cenário. Estamos agora nos arredores de Bra, na zona de Turim, no Piemonte, algumas semanas antes da visita ao Savini Tartufi. Há também um homem, Marco Varaldo, e um cão, Fido, mas aqui, neste momento, as trufas que se encontram são ainda as negras. Encontramo-nos junto às vinhas de Dolcetto, com as uvas já muito maduras e dulcíssimas. Daí seguimos para a zona da floresta, que, afirma Marco, tem vindo a diminuir cada vez mais, substituída pela vinha e por outras actividades agrícolas vistas como mais rentáveis. Nos últimos 40 anos, cerca de 60% da floresta nesta zona desapareceu.
As trufas são, como os cogumelos, um fruto da terra que se desenvolve em simbiose com certas árvores e que têm características diferentes conforme a árvore a que estão ligadas — o carvalho, por exemplo, com a sua madeira mais dura surge associado a uma trufa mais escura e mais aromática. Mas, frisa Marco, “só com muita experiência é que se pode tentar saber a que árvore pertence a raiz à qual está ligada determinada trufa”. Mesmo para ele é difícil e já anda aqui há muitos anos — “aos cinco vinha atrás do meu avô e aos seis já ia sozinho para a floresta” — mas uma coisa sabe: “Não há duas trufas iguais, cada uma tem o seu sabor e o seu perfume.”
Este é todo um delicado ecossistema que se vai destruindo. Se as árvores desaparecem, todo esse mundo subterrâneo e misterioso, sobre o qual sabemos ainda relativamente pouco, desaparece também. “O único inimigo das trufas são, na realidade, os humanos”, escreve Sergio Rossi no livro Truffles: The Divine Earth. “Não os que as apanham nem aqueles que nunca as encontrarão. Não os que a vendem nem sequer aqueles que gostam de as comer. Os seus inimigos são as pessoas que destroem as valas, nivelam a terra, cortam as árvores e arrancam as plantas. [As trufas] não gostam de ser perturbadas ou poluídas e hoje nós somos especialistas em ambas as coisas. Por isso, marginalizamos as trufas; as suas terras e árvores vão diminuindo e o seu aroma vai-se dissolvendo.”
Deixamos as vinhas para trás e entramos na zona mais escura e húmida da floresta. Fido deixou de comer as uvas caídas no chão e está agora concentrado naquela que é a sua missão: encontrar trufas. Ao princípio parece difícil, mas a certa altura fareja alguma coisa e fica fixado num determinado local. Mesmo quando o dono, que vai falando com ele no dialecto do Piemonte, parece não conseguir encontrar nada, o cão insiste e não sai dali enquanto os dois não chegarem à trufa.
“Apanhar trufas não pode ser um negócio”, diz Marco, “tem que ser um hobby”. Daí que, apesar dos preços a que se conseguem vender estes “diamantes da terra”, seja difícil concorrer com os vinhos. “Todos os anos há um aumento da procura de trufa, mas cada vez temos menos floresta”, lamenta.
Voltemos à Toscana e ao Savini Tartufi. Depois da caçada, regressamos, satisfeitos, com as nossas três trufas brancas, à sede da empresa, onde é possível comprar os muitos produtos feitos à base de trufa — garante Luca que aqui se usam sempre pedacinhos de trufas que, por terem sido mordidas pelos cães ou estarem marcadas por algum outro golpe, não são vendidas aos restaurantes, e nunca os aromas artificiais de trufa que se vêm frequentemente neste tipo de produtos.
Nas paredes, fotos antigas contam a história desta família que há quatro gerações se dedica à apanha de trufas. Lá está a Vespa verde original com que, no início do século, Zelindo Savini ia para a floresta e as imagens da venda de trufas nas feiras. O ar cheira a trufa. Luca vai buscar meia dúzia delas, embrulhadas num pano azul aos quadrados e abre-o para que as possamos ver mais de perto. Olhamos, encantados, irresistivelmente atraídos pelo aroma. Qual é o fascínio que a trufa encerra?
A forma é retorcida e não particularmente bonita, o sabor é ténue. Tudo reside neste aroma, que primeiro se esconde no escuro da terra e depois, quando uma trufa é encontrada, resiste tão pouco que queremos captar cada segundo — como se ali se revelasse o próprio mistério da vida.
A Fugas viajou a convite do Ritz Four Seasons
Como escolher e preparar trufas
Estão identificados cerca de 60 tipos diferentes de trufas no mundo e 25 destes existem em Itália, mas apenas nove são comestíveis. Apesar de as mais famosas serem as trufas brancas de Alba, há muitos outros locais em Itália onde se encontram trufas das diferentes variedades (para a lista completa das Città del Tartufo, consultar cittadeltartufo.com).
As trufas brancas têm o nome científico de Tuber magnatum Pico, o tamanho é variável e são apanhadas entre Setembro e Dezembro, mas têm a sua época alta em Novembro. A trufa negra Tuber melanosporum Vitt pode ter o tamanho entre a avelã e a laranja e é apanhada entre Novembro e Março, enquanto a Tuber aestivum Vitt é chamada trufa de Verão e existe entre Junho e Novembro.
No livro Truffles: The Divine Earth, Sergio Rossi aconselha cuidado na hora de comprar trufas porque, dados os valores muito altos envolvidos, há muitos casos de fraude. E deixa alguns conselhos: é importante saber qual o tipo de trufa que se está a comprar e se está na época dela; a trufa deve estar inteira, sem sinais de lascas e sem terra (para ficarem limpas devem ser escovadas, mas não passadas por água) — a terra não só acrescenta peso como pode estar a ser usada precisamente para esconder imperfeições. Ao toque, a trufa deve ser firme, mas não demasiado dura, se estiver esponjosa significa que já passou do prazo.
Uma vez adquirida, a melhor forma de manter a trufa com aroma é guardá-la num recipiente de vidro, num guardanapo que deve ser mudado diariamente. A trufa branca, mais delicada, pode durar até cinco dias em boas condições, a negra de Verão aguenta entre dez dias a duas semanas.
Quanto à forma de as comer, os especialistas recomendam que não se fuja aos pratos clássicos, aqueles que já provaram ser o par perfeito para as trufas: ovos, sejam mexidos ou escalfados, e massas frescas. A trufa preta pode ser raspada, a branca deve ser laminada sobre o prato imediatamente antes de se começar a comer.
O menu de Pascal Meynard no Ritz
É já uma tradição no Ritz Four Seasons de Lisboa: Novembro chega com o menu de trufa branca criado pelo chef Pascal Meynard. Depois da visita a Itália e da excursão para apanhar trufas com a Savini Tartuffi, o chef do restaurante Varanda desenvolveu o menu deste ano, que incluirá alguns pratos já clássicos, como o tagliolini fresco com parmesão e trufa branca ou o filet mignon com emulsão de trufa branca. Antes, Pascal apresenta vieiras com couve-flor, óleo de avelã e trufa branca e, como prato principal, um filete de peixe-galo, legumes de Inverno, cogumelos chantarelles e trompetas da morte e trufa branca ou, em alternativa, o filet mignon, que é acompanhado por espargos verdes, pecorino e emulsão de trufa branca. E nem a sobremesa vai escapar à trufa: gelado de fava tonka e trufa, caramelo e flor-de-sal. O menu tem um custo de 160€ sem bebidas e é aconselhável reservar previamente.