Bélgica: esta biblioteca alimenta-se de massa-mãe de todo o mundo

Algumas têm mais de 100 anos, outras integram água benta, arroz cozido ou lima. Sobreviveram a histórias de samurais, guerras, corridas ao ouro e navegações. Em St. Vith, uma biblioteca colecciona e estuda massas-mãe de todo o mundo, incluindo Portugal. Que segredos pode esconder o berço de fermentação do pão à antiga?

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No final do século XIX, mais de 100 mil pessoas migraram até Seattle para se lançarem numa corrida ao ouro que as levaria a percorrer mais de 3000 quilómetros por montanhas e nevões até à região de Klodike, no Canadá. Entre os mantimentos que transportavam consigo pelo sudoeste do Alasca, o mais precioso era carregado junto ao calor do peito: um frasco de massa-mãe. Era um dos poucos ingredientes que sobrevivia às temperaturas negativas que se faziam sentir e, a partir dela, cada garimpeiro conseguia alimentar-se sempre de panquecas feitas sobre a fogueira. Manter vivo aquele berço de fermentação e microrganismos era tão essencial e difícil que quem o conseguia era considerado um mineiro experiente e apelidado de Sourdough (massa-mãe em inglês).

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No final do século XIX, mais de 100 mil pessoas migraram até Seattle para se lançarem numa corrida ao ouro que as levaria a percorrer mais de 3000 quilómetros por montanhas e nevões até à região de Klodike, no Canadá. Entre os mantimentos que transportavam consigo pelo sudoeste do Alasca, o mais precioso era carregado junto ao calor do peito: um frasco de massa-mãe. Era um dos poucos ingredientes que sobrevivia às temperaturas negativas que se faziam sentir e, a partir dela, cada garimpeiro conseguia alimentar-se sempre de panquecas feitas sobre a fogueira. Manter vivo aquele berço de fermentação e microrganismos era tão essencial e difícil que quem o conseguia era considerado um mineiro experiente e apelidado de Sourdough (massa-mãe em inglês).

Foi esta história centenária – e alguns exemplares de massa-mãe que, desde então, terão passado de geração em geração – que levou Karl De Smedt a voar até aos Estados Unidos e ao Canadá no início de Maio. Durante a viagem, percorreu troços do trajecto outrora feito pelos garimpeiros de Klodike, de Seattle a Dawson City, cozinhando panquecas, focaccias e maklas junto à caravana, com massa-mãe recolhida pelo caminho. “Foi definitivamente a busca por massa-mãe mais singular que alguma vez fiz”, conta. À nossa frente, temos os três exemplares que trouxe da jornada, agora guardados em frascos de vidro num dos frigoríficos que compõem a única biblioteca de massas-mãe do mundo, localizada em Sankt Vith, uma pequena cidade no sul da Bélgica.

O projecto criado em 2013 pela Puratos, uma multinacional ligada ao sector da padaria, pastelaria e chocolateria sediada em Bruxelas, integra 108 massas-mãe recolhidas em mais de 20 países, de Itália à Austrália, do México a Singapura. Na verdade, 107, porque a receita que há-de ocupar 84.ª posição ainda não foi enviada. “Quando chegamos a acordo com alguém para integrar uma amostra na biblioteca atribuímos-lhe um número, mas esta ainda não conseguimos recolher. Vem de Singapura.” Por estes dias, o número de exemplares até já deverá ter aumentado. Dias depois de termos visitado a biblioteca, no início de Outubro, Karl ia viajar até Espanha para recolher massas-mãe de padarias em Granada, Bilbau, Barcelona e Andorra.

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O objectivo da colecção, conta o responsável, passa não só por preservar a diversidade de massas-mãe que existe no mundo, com as suas receitas, histórias e tradições, como estudar os microrganismos que cada uma delas contém. Qual é a diferença entre uma massa francesa, uma italiana e uma espanhola? E entre as massas feitas à base de farinha de trigo ou de centeio, de diferentes variedades e moagens? E entre as massas líquidas e as densas? Que influência tem cada factor nas colónias de bactérias ácido-lácticas e de leveduras selvagens que vão surgir durante a fermentação e contribuir para as características únicas de pães, panquecas, bases de pizza ou panetones? “Existem milhares de perguntas que ainda temos de descobrir. Esse é o encanto da biblioteca.”

O renascimento da massa-mãe

Na Maison du Levain, inaugurada em Maio, é contada a história da massa-mãe desde os primórdios, quando o pão mais não era do que uma “combinação de grãos inteiros, provavelmente misturada com leite, água ou sangue de animais”. A exposição interactiva é a mais recente adição ao Centro do Sabor do Pão, no qual a biblioteca também se integra e onde a empresa concentra a investigação nesta área. É lá que vamos conhecendo a evolução da panificação ao longo dos séculos: como tudo muda com a invenção dos moinhos, como o pão se torna mais fofo com a descoberta da fermentação natural (leia-se massa-mãe), como ganham mais volume quando passam a ser cozinhados no forno. E como a massa-mãe quase desaparece quando Louis Pasteur descobre como sintetizar levedura.

Mas, afinal, o que é a massa-mãe? Também conhecida como massa velha ou massa azeda, não é mais do que um fermento natural, feito com água, farinha e os microrganismos que entram espontaneamente na mistura (contidos nos dois ingredientes, no ar ou nas mãos do padeiro). Com o tempo, a relação complexa que se estabelece entre eles vai provocar a fermentação da mistura, não só levando ao crescimento da massa, mas também dando-lhe uma textura, sabor e cheiro característicos. É um ingrediente vivo, que precisa de ser alimentado regularmente com farinha fresca. E, conta Karl, daqueles “complicados, trabalhosos e inconsistentes”. No livro O Padeiro Perfeito, publicado em 1778, Antoine-Augustin Parmentier falava da “laboriosa escravidão dos padeiros” que, para manter a sua “arte”, não podiam dormir mais do que três horas seguidas.

Por isso, quando Louis Pasteur descobriu como isolar e reproduzir artificialmente a levedura mais comummente presente no pão, a massa-mãe quase desapareceu. O “fermento de padeiro” era muito mais fácil de utilizar, fiável e rápido. Permitia produzir em maior quantidade e a uma velocidade sem precedentes. “Tornou possível alimentar muita gente, porque a população mundial sofria um boom naquela altura, mas fez com que muitos pais não passassem a herança da massa-mãe aos filhos e esse conhecimento se perdesse.” A diversidade começou a diminuir e a qualidade também. “Nenhum produto fermentado, como o vinho, a cerveja ou o queijo, sofreu uma disrupção tão grande como a panificação.” O frasco n.º 43 é reflexo deste esquecimento por parte da industria. Contém a primeira massa-mãe que Karl alguma vez viu, em 1994, quando lhe estenderam um balde branco para as mãos e lhe pediram para alimentar de farinha. Fazer o quê? A massa borbulhava e aquilo parecia-lhe tão surreal quanto mágico. Tinha terminado o curso de padaria e confeitaria em 1988, trabalhado numa padaria belga durante seis anos (embora responsável pela área da pastelaria) e só em São Francisco, nos EUA, é que descobria o que era massa-mãe.

Nos anos 1980, uma nova vaga de padeiros começou a recuperar a tradição, impulsionada pelo interesse em ingredientes e processo mais naturais, lentos e saudáveis. A tendência tem ganho, nos últimos anos, crescente popularidade. Porque, descreve Karl, o ingrediente mais importante para se fazer pão é, afinal de contas, “o tempo”. E, para isso, a massa-mãe é um elemento essencial: “A digestão da farinha já foi parcialmente feita por ela e o nosso corpo consegue absorver todos os nutrientes." E como dá mais sabor e textura ao pão, permite cortar no sal ou no açúcar. É por isso que Karl acredita que esta não é uma moda, mas uma tendência que veio para ficar e estender-se à industria panificadora. É isso que o consumidor procura: um produto fresco, com mais sabor e saudável. “A distinção entre pão industrial e artesanal já não é 100% correcta”, defende o responsável. “Agora é entre pão feito de forma lenta ou rápida.”

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Viagem ao mundo do pão

Percorrer as prateleiras refrigeradas da pequena biblioteca é como viajar à mesa do mundo e das suas histórias e tradições. O frasco n.º 1, por exemplo, contém massa-mãe do pão de Altamura, considerado produto com denominação de origem protegida em Itália. Nas Sátiras de Horácio, publicadas em 37 a. C., o poeta romano descrevia-o como “o melhor pão que se alguma vez se podia ter, tão bom que o sábio viajante vai abastecido dele na sua viagem”. Da Grécia, veio massa-mãe criada com água benta embebida em manjericão, feita anualmente na vila de Kobothekla durante a cerimónia ortodoxa em que se celebra a descoberta da cruz de Cristo entre folhas daquela planta por Santa Helena. E do Japão a massa-mãe de anpan da padaria Kimurai, uma receita que terá sido criada em 1875 por um samurai que perdeu o emprego e terá aberto uma padaria para estimular o consumo de pão entre a população. Entre os ingredientes, arroz cozido e malte de arroz, aos quais é depois adicionado pasta de feijão-azuqui e flor de cerejeira salgada.

É preciso voar até ao México, no entanto, para encontrar a receita preferida de Karl. Diz-se que o pão mais conhecido de Guadalajara foi trazido por um soldado e padeiro francês do exército do imperador Maximiliano e dele ganhou o nome: Birote. A massa-mãe é uma combinação de ingredientes que Karl “nunca tinha visto”: água, farinha de trigo, cerveja, ovos e lima. O pão ganha uma crosta grossa e um sabor azedo característico e é com ele que se fazem tortas ahogadas: uma sandes recheada de carne de porco, pasta de feijão, cebola e mergulhada em molho de pimento.

Todas as massas-mãe que integram a biblioteca são enviadas para o laboratório da Universidade de Bari, em Itália, onde a equipa liderada pelo investigador Marco Gobbetti estuda a composição microbiológica de cada amostra. Todos os microrganismos encontrados são separados e depois preservados no congelador da biblioteca. “Temos mais de 900 amostras diferentes ali armazenadas”, aponta Karl. Dessa análise já surgiram coincidências ainda por explicar. Como o facto de, até agora, apenas terem encontrado a levedura torulaspora delbrueckii (comum nos “vinhos premium”) em duas massas-mãe de farinhas e continentes diferentes: o mexicano birote e um pão suíço à base de centeio. “A única coisa que encontro em comum entre as duas padarias é ambas estarem localizadas a mais de 1500 metros de altitude.” Ou duas massas-mãe inglesas que apenas coincidem no facto de terem sido feitas por mulheres. De acordo com o investigador Rob Dunn, os microrganismos presentes nas mãos poderão ter influência no resultado final. Para testá-lo, convidaram 16 padeiros de países diferentes, em parceria com a biblioteca. “Dei-lhes farinha, uma receita e um protocolo que tinham de seguir, mas quando chegaram cá vimos logo que as massas-mãe não estavam exactamente iguais”, recorda Karl. A publicação dos resultados estava prevista para o final de Outubro.

E como é que se explica que uma das massas-mãe recolhidas em Portugal, no Museu do Pão, em Seia (a outra foi entregue por uma panificadora industrial que pediu anonimato), contenha lactobacillus otakiensis, uma bactéria ácido-láctica normalmente encontrada nos picles tradicionais japoneses sunki? “Os navegadores portugueses estiveram muitos anos no Japão. Será que vem daí?”, questiona-se Karl, de olhos na ficha técnica que surge no ecrã. A biblioteca não está aberta ao público, mas é possível visitá-la virtualmente no site do projecto, onde se pode consultar a origem e composição microbiológica de cada massa-mãe e conhecer as histórias de alguns exemplares através de pequenos documentários gravados nos locais. Quem tiver uma massa-mãe pode ainda inscrevê-la na biblioteca online, onde estão actualmente registadas mais de 1300 receitas. Foi lá que Karl descobriu a pizzaria de Seattle onde começou a última viagem, cuja massa-mãe é mantida viva de geração em geração desde os tempos da corrida ao ouro de Klondike. Dessa viagem, terão vindo alguns dos exemplares mais antigos da colecção. No entanto, Karl admite que “não é possível confirmar a idade de uma massa-mãe”. “Confiamos naquilo que nos dizem”, reconhece. “Mas agora sabemos a data exacta em que entraram na biblioteca e daqui a uns anos podemos compará-las com outras acabadas de criar.”

Esquecida por tanto tempo, a massa-mãe reabre agora todo um universo por explorar. E por experimentar. “É uma coisa incrível, fez-me olhar para a panificação de uma forma completamente diferente”, conta Karl. “Tem regras mas, ao mesmo tempo, não existem fronteiras. É possível fazer massa-mãe com diferentes farinhas, grãos, usar fermentados de frutas, feijões, ervas, especiarias.” Do último frigorífico vão ter de sair em breve as “pequenas experiências” que anda a fazer para dar espaço a mais massas-mãe. Fermentados de manjericão, maçã, grãos de café, alperce, passas, kiwi, mandarina. A lista continua. “Podem dar um sabor especial a uma massa-mãe e todos contêm leveduras selvagens.” De dois em dois meses, a equipa leva quatro dias a alimentar com a farinha original cada massa-mãe da biblioteca. “Podia pensar-se que são todas iguais, mas umas fermentam só um pouco, outras são tão poderosas que explodem com a tampa e saem para fora.” É uma colónia-viva que habita em cada frasco, “com uma personalidade própria”, como se fosse “um animal de estimação”. Dela só pode nascer um pão com carácter.

A Fugas viajou a convite da Puratos