E não é que isto é mesmo de comer?

O dia em que me estreei à mesa de um restaurante com o selo de qualidade Michelin. Antiqvvm, Porto, uma estrela.

Foto
Lara Jacinto/NFactos

Que partida esta, a de convidarem um apreciador de comida tradicional a visitar um templo de comida experimental e inovadora! Já se vê que a discrepância não chamusca nem pode chamuscar a arte e saber de quem pretende estar na vanguarda da cozinha. Por isso vou esforçar-me por não deixar que a inépcia do crítico cause prejuízo ou injustiça ao criticado.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Que partida esta, a de convidarem um apreciador de comida tradicional a visitar um templo de comida experimental e inovadora! Já se vê que a discrepância não chamusca nem pode chamuscar a arte e saber de quem pretende estar na vanguarda da cozinha. Por isso vou esforçar-me por não deixar que a inépcia do crítico cause prejuízo ou injustiça ao criticado.

Primeiro o lugar, o restaurante Antiqvvm, no ambiente romântico da Quinta da Macieirinha, onde se instalou em tempos o Solar do Vinho do Porto. Bonitas arcadas fechadas a vidraças que nos dão o jardim e o concelho de Gaia de além-rio. A atenção aos pormenores constrói a qualidade: toalhas, guardanapos, talheres, música ambiente, mas, antes e durante a entrada em cena dos pratos, a atitude dos funcionários, esses intermediários tão importantes entre nós e aquilo que fomos buscar, é determinante. Passaram com distinção: acolhedores, atenciosos, prestáveis, simpáticos, conhecedores. Sem toque de uma certa sobranceria que por vezes afasta candidatos a clientes certos.

Inicia-se o desfile de experiências com um prato branco no centro do qual existe um pequeno reservatório com água. O funcionário, com uma pinça, pega no que parece ser uma pastilha branca alta, compacta, e põe-na cuidadosamente no centro do reservatório. Quando, intrigado, observava eu o que poderia sair dali de comestível, avisou-me, mesmo a tempo, que era uma toalhinha para limpar as mãos. De facto, em contacto com a água, a parecença de pastilha inchou, cresceu e transformou-se num rolinho de tecido que cumpriu a sua função.

Entretanto, ajudam-me, simpaticamente, a encontrar o meio copo de vinho que, além da indispensável água, será companhia na sequência de sabores: Quinta Valle de Passos, tinto. Gostei.

Logo de seguida, dois pequeninos pratos de entradas inauguraram os procedimentos. Mas não eram pratos: uma bola em porcelana branca com a parte de cima elegantemente côncava recebia – nessa reentrância onde a colher redonda que me aguardava em cima da mesa mal cabia – uma ostra disposta nos tons de verde dos molhos; numa taça, bocadinhos de chicharro em molho de guacamole, tomates-cereja. O olhar está conquistado, pois a apresentação vai à frente, a demonstrar a qualidade de quem concebeu com tanta felicidade estética e confeccionou com esmero. Os sabores são suaves.

Foto
Nelson Garrido

Trazem-me pão, em pratos separados: uma fatia de focaccia de alecrim, ainda quente, muito boa, e um pedacinho de broa de Avintes, que reconheci com alegria, sem ser preciso esperar pela explicação. Senti-me mais acompanhado.

Segue-se esturjão fumado em molho de manga e moscatel em gel. Agridoce, mas não enjoativo. Exótico, mas não ameaçador.

Prato de peixe: pregado em terrina de porco com molho de funcho e puré de aipo. Bom sabor. Subtil. Mas eu, por uma questão prática, descartaria o prato de bordas excessivamente altas, que estorvam os talheres no seu trabalho.

Prato de carne: presa de porco com espinafres, cogumelos, risotto de cevadinha e molho de vinho tinto. Paremos um pouco: risotto é italiano para dizer “um arroz de”. Gosto de arroz. Mas este risotto engana-nos, porque não tem arroz, mas cevadinha. Ora, quando chega à língua, em vez daqueles grãos de que temos memória, surgem uns bagos inchados, leves, separados, que escorregam uns sobre os outros e brincam connosco. Confundiram-me. Gosto de arroz na arrozada. Além disso — eu sei que sou só eu — não tenho, dos cogumelos, a ideia de serem a mais interessante textura para se comer. De os fotografar, já gosto...

Agarro-me à broa de Avintes para saber onde estou. Ao contrário da focaccia, agradável, mas talvez um pouco salgada, a perfeição da broa de Avintes salva-me, reconforta-me. Dá-me de volta o Norte.

Sobremesa: “smile” de panna cotta de maracujá sobre uma bolacha. O amargo ligeiro da panna cotta em forma de carinha sorridente é contrariado pelo doce da bolacha. Um bocadinho de gelado de limão sela a refeição.

Confirmo o meu problema: não sou perseguidor de sabores diferentes para além dos de um cabrito assado no forno que me provem realmente que o que eu não gostava era de mau cabrito assado. Tenho um limite, talvez baixo, para o número de sabores novos ou combinações raras que admito numa refeição. Ultrapassado, começa a tocar um alarme que passa do estômago para o fígado. Não foi o caso. Ficou tudo em paz com a subtileza das combinações e a mestria da confecção e da apresentação. As quantidades não foram acima nem abaixo do necessário, com a sensação de uma digestão tranquila.

Neste requinte de almoço, sou o único português. Um casal jovem japonês vai fotografando os pratos e alternando de lugar, não sei porquê, ao longo da refeição. Atrás, uma rapariga faz perguntas em inglês, talvez para um blogue. Do outro lado da sala, um francês dos seus 70 anos aprecia os pedidos de seu vagar. Ao meu lado, uma jovem japonesa, sozinha, opta pelo mesmo que eu: “menu executivo” com prato de peixe e prato de carne. O restaurante é, de facto, uma boa embaixada de Portugal.