O outro diário adolescente da II Guerra: “Experimentei tão pouco da vida. Tenho medo da morte”
Conhecemos bem o de Anne Frank, que morreu no campo de concentração de Bergen-Belsen em 1945, mas ainda não lemos o de Renia Spiegel, executada aos 18 anos numa pequena cidade da Polónia. Até aqui só estava editado em polaco, em breve chegará às livrarias em inglês. A Smithsonian publicou um excerto — a Segunda Guerra outra vez em directo e na primeira pessoa.
Há quase 70 anos Renia Spiegel escreveu a última entrada no seu diário. São três parágrafos em que esta jovem polaca, judia, se dirige à mãe, de quem acaba de receber uma carta com uma fotografia, e a Deus. “A polícia do ghetto judeu veio na noite passada. Ainda não pagámos tudo. Oh! Por que não pode chover dinheiro? Afinal, é a vida das pessoas. Chegaram tempos horríveis. Não imaginas quão horríveis, mamã. Mas Deus toma conta de nós e, embora eu esteja terrivelmente assustada, confio Nele.”
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Há quase 70 anos Renia Spiegel escreveu a última entrada no seu diário. São três parágrafos em que esta jovem polaca, judia, se dirige à mãe, de quem acaba de receber uma carta com uma fotografia, e a Deus. “A polícia do ghetto judeu veio na noite passada. Ainda não pagámos tudo. Oh! Por que não pode chover dinheiro? Afinal, é a vida das pessoas. Chegaram tempos horríveis. Não imaginas quão horríveis, mamã. Mas Deus toma conta de nós e, embora eu esteja terrivelmente assustada, confio Nele.”
Nesse mesmo dia, 25 de Julho de 1942, já à noite, Renia parece despedir-se, como se pressentisse que o fim não tardava: “Meu querido diário, meu bom e adorado amigo! Passámos por tempos aterradores juntos, mas agora enfrentamos o pior dos momentos. (...) Escuta, Israel, salva-nos, ajuda-nos. Protegeste-me das balas e das bombas, das granadas. Ajuda-me a sobreviver! E tu, minha querida mamã, reza por nós hoje, reza com força.” Seria executada cinco dias depois.
Anos antes, em 1939, quando Renia estava já a viver em casa dos avós na pequena cidade de Przemysl, e a irmã sete anos mais nova, Ariana, estava de visita, tinham ficado separadas da mãe. Com a Polónia dividida entre russos e alemães, acabaram por ficar em lados opostos da “fronteira” que o arranque da Segunda Guerra Mundial desenhou a régua e esquadro. Róza, que se mudara com Ariana para Varsóvia para que a filha pudesse seguir uma carreira no mundo do espectáculo (chamavam-lhe a “Shirley Temple polaca” por se ter estreado em palco aos oito anos, cantando, tocando piano e recitando poesia), permanecera na capital, território sob ocupação nazi.
Um excerto do diário da jovem Renia Spiegel (1924-1942) foi agora publicado pela primeira vez em inglês, na revista mensal da Smithsonian Institution, uma das mais importantes organizações de educação e cultura norte-americanas, que também lhe dedicou um longo artigo, assinado pela escritora e jornalista Robin Shulman.
O diário escrito em mais de 700 páginas de cadernos escolares durante quase três anos, e que foi pela primeira vez editado na Polónia em 2016, deverá chegar de novo às livrarias em breve, já que Ariana, que se radicou nos Estados Unidos depois da guerra, celebrou este Verão um acordo com a St Martin’s Press, uma das maiores editoras do mundo em língua inglesa, para o publicar, num volume que incluirá também a sua própria história de sobrevivência.
Pelo artigo e excertos publicados na revista americana, entretanto citados pela imprensa internacional, é possível dizer sem medo de errar que o relato que Renia faz daqueles três anos (1939-1942) resulta de um olhar genuíno sobre o que a rodeia, misturando as preocupações comuns de uma adolescente — a escola, os colegas, os professores, as discussões com a irmã, o corpo em transformação, o seu primeiro amor e com ele o primeiro beijo — com as de uma jovem mulher que se vê mergulhada num cenário trágico, temendo pela sua própria vida e pela daqueles que ama, sentindo-se por vezes profundamente sozinha.
“Deus salvou o Zygus [o seu namorado, Zygmunt Schwarzer]. Ele estiveram a levar pessoas toda a noite. Reuniram 1260 rapazes. Há tantas vítimas, pais, mães, irmãos. (...) Esta foi uma noite terrível, demasiado terrível para descrever. Mas o Zygus esteve aqui, o meu querido, querido e amoroso. Abraçámo-nos e beijámo-nos sem parar”, escreve a 19 de Junho de 1942, depois de um raide da Gestapo ter enviado mais de mil judeus de Przemysl para os campos de trabalho, matando ainda inúmeros membros das suas famílias.
Admitindo que a comparação de Renia Spiegel com Anne Frank, é óbvia para a maioria dos leitores — ambas são mulheres muito jovens, ambas escrevem sobre o que é ser-se judeu durante a Segunda Guerra, sem deixar de fora os temas da adolescência —, Robin Shulman faz questão de notar que a primeira é um pouco mais velha e mais “sofisticada” do que a segunda, escrevendo tanto em poesia como em prosa. Mais relevante no jogo das diferenças, sublinha a jornalista, é o facto de o diário de Renia ter sido escrito em contacto directo com o mundo, ao passo que o de Anne é feito quando a jovem alemã estava já escondida com a família num anexo do escritório do pai, em Amesterdão.
“Lendo tão diferentes relatos na primeira pessoa lembra-nos que cada uma dos milhões de vítimas do Holocausto teve uma experiência única e trágica”, continua a autora do artigo para a Smithsonian.
A primeira entrada do diário
“Por que razão decidi começar um diário hoje? Aconteceu alguma coisa importante? Não! Eu só quero um amigo. Alguém com quem possa conversar sobre as minhas preocupações e alegrias do dia-a-dia. Alguém que sinta o que eu sinto, que acredite no que digo e nunca revele os meus segredos”, começa por escrever, a 31 de Janeiro de 1939, esta jovem polaca que sonhava ser professora e conhecer o mundo. Tinha apenas 15 anos. Menos de três meses antes, a começar a 9 de Novembro de 1938, uma onda de violência anti-semita tinha atravessado a Alemanha, a Áustria e a República Checa. Durante 48 horas, centenas e centenas de sinagogas, escolas, lojas e casas que pertenciam a cidadãos judeus foram destruídas. Aquela que ficou conhecida como a Noite de Cristal acabaria com quase cem judeus assassinados, muitos deles espancados nas ruas, e com mais de 20 mil deportados para os campos de concentração.
No Verão de 1941, Renia fala, assim, do que sente ao ter de usar a braçadeira branca com a estrela de seis pontas, eficaz contributo para a violenta discriminação dos judeus na Polónia ocupada pelas forças alemãs: “Para ti eu continuarei a ser a mesma Renia, mas para outros tornar-me-ei inferior: uma rapariga usando uma braçadeira branca com uma estrela azul. Serei uma judia.”
Com o começo da guerra descreve a criação do ghetto em Przemysl, onde é obrigada a viver, e a deportação de membros da sua comunidade. Dia 15 de Julho de 1942: “Lembra-te deste dia; lembra-te bem. Contarás às próximas gerações. Desde as 8h de hoje que nos fecharam no ghetto. Agora vivo aqui. O mundo está separado de mim e eu estou separada do mundo.”
As últimas entradas do diário são do seu namorado, Zygmunt Schwarzer, um rapaz de olhos verdes, filho de um médico e de uma pianista, que se juntara à resistência local.
Zygmunt chamava-lhe Renusia e escreve pela primeira vez no diário, visivelmente incomodado por “invadir” aquele espaço de intimidade, a 27 de Julho de 1942, dando conta de que os seus pais e Renia não conseguiram o visto de trabalho necessário para evitar serem deportados para o campo de extermínio de Belzec e que, por isso, terão de continuar escondidos. E escreve para fazer uma promessa que não conseguirá cumprir: “Juro a Deus e à história que salvarei as três pessoas que me são mais queridas, mesmo que me custe a minha própria vida. E Tu vais ajudar-me, Senhor!”
Zygmunt, que lhe oferecera chocolates pelo seu aniversário, conseguira tirar Renia e a irmã do ghetto e, depois de entregar Ariana ao pai de uma amiga, que não era judeu e acabaria por juntá-la à mãe em Varsóvia, iludindo a Gestapo, levou a namorada e os seus próprios pais para o sótão da casa de um tio. Foi aí que os soldados alemães os encontraram, executando-os de imediato, a 30 de Julho de 1942. “Três tiros! Três vidas perdidas! Tudo o que consigo ouvir é tiros, tiros. (...) A minha vida acabou. Minha querida Renusia, o último capítulo do teu diário está completo”, escreve.
Mudar de nome e de vida
Róza e Ariana sobrevivem à guerra. A mãe de Renia, que entretanto arranjara documentos falsos e mudara o nome para Maria, conseguiu que a filha mais nova fosse baptizada — passou a chamar-se Elzbieta e, mais tarde, Elizabeth — e ingressasse numa escola católica.
Depois de ter visto praticamente todos os seus familiares e amigos mortos pelos nazis, incluindo o seu marido e a filha mais velha, Róza estava decidida a sobreviver com Ariana a todo o custo. Depois de uma série de episódios dignos de filme, que inclui até uma relação com um oficial do Exército alemão, acabou por conseguir vistos para ambas e mudou-se para os Estados Unidos.
Apesar de ter passado por vários campos de concentração, incluindo Auschwitz-Birkenau, a mais eficaz das máquinas de extermínio da rede nazi, Zygmunt também sobreviveu. Nos anos 1950, já a viver na América, casado e com dois filhos, localizou a família da sua antiga namorada e entregou-lhe o diário. Ainda que o deles fosse um amor muito jovem, Ariana, hoje com 87 anos, garantiu ao diário britânico The Guardian que a irmã foi a mulher da vida dele.
A avaliar pela descrição que o filho Mitchell faz da relação que o pai tinha com o diário de Renia, a que Robin Shulman regressa no seu artigo para a Smithsonian, Ariana tem razão. Passadas décadas, Zygmunt, que fizera uma cópia do diário, dedicava à antiga namorada uma espécie de “altar” no escritório que mantinha em casa, na cave. Na parede tinha pendurada uma fotografia dela e passava horas a ler o que escrevera naqueles três anos. E chorava. “Aparentemente, ele estava a apaixonar-se pelo seu diário”, admitiu Mitchell. “Falava-me de Renia. Ela estava presente em espírito.”
60 anos no cofre
Décadas depois de ter sido entregue a Róza, o diário da jovem polaca, aparentemente escrito às escondidas da família, reapareceu em Nova Iorque. Esteve guardado num cofre durante 60 anos. “Ela era uma rapariga brilhante, a presidente do clube literário da escola”, disse ao Guardian Ariana. “Nós costumávamos viver na propriedade rural do meu pai e ela adorava os pássaros e o seu canto, as árvores e o vento a soprar... Acho que ela tinha um espírito que a fazia ver as coisas com grande profundidade.”
Ariana só soube da existência do diário quando o namorado da irmã chegou aos Estados Unidos e procurou a sua mãe. Nunca a viu escrever nele e ainda hoje não sabe como é que Zygmunt conseguiu mantê-lo intacto, depois de ter passado por vários campos de concentração.
A mãe não sabia o que fazer com ele e fechou-o num cofre até à sua morte. Ariana, que depois de casada assumiria o nome de Elizabeth Bellak, herdou-o, mas só começou a lê-lo depois de publicado, em pequenas porções, para que a dor não fosse insuportável. “Nunca consegui lê-lo antes. (...) É uma história terrível. [Renia] tinha o pressentimento de que poderia não sobreviver e menciona-o no diário. E ela acaba por morrer, tão jovem, com 18 anos. É isso.” Lê-lo era regressar àquele passado que ela fizera por esquecer.
Foi a filha, conta, quem a convenceu de que o diário não dizia apenas respeito à história da família. “É muito comovente”, disse ao mesmo jornal Alexandra Bellak. “Lê-lo foi de partir o coração porque sabemos como a história acaba, mas também porque a sua escrita é muito bonita. Ela é tão madura, e atenciosa, e introspectiva. É uma jovem mulher que atravessa a puberdade, que se apaixona pela primeira vez, que tem pequenas discussões com a irmã mais nova. E vemos quão inteligente ela é, com todas as referências que faz a filósofos e a compositores e músicos da clássica, é muito impressionante.”
Atendendo a tudo o que vivera na guerra, e a todas as pessoas que perdera, Ariana, que nos Estados Unidos se tornou professora e se casou com um colega, também ele judeu, só muito mais tarde revelou à família a sua origem. Os dois filhos só souberam na adolescência que a mãe era judia. Alexandra Bellak tinha 12 anos e fez um comentário discriminatório sobre os judeus — Ariana resolveu, então, que chegara a hora de lhes dizer de onde vinha e de lhes contar parte da história.
Em 2015, Ariana e a família criaram, com amigos, a Fundação Renia Spiegel, que tem por principal missão a publicação e divulgação do seu diário, e que atribui um prémio de poesia, algo de que a jovem polaca se orgulharia. No seu diário há sempre espaço para ela, frequentemente misturada com a prosa. Numa entrada de 7 de Junho de 1942, por exemplo, começa por escrever: “Para onde quer que olhe há derramamento de sangue. Há mortes, assassínios. (...) Senhor meu Deus, deixa-nos viver, eu suplico-Te, quero viver! Experimentei tão pouco da vida. Não quero morrer. Tenho medo da morte. É tudo tão estúpido, tão mesquinho, tão sem importância, tão pequeno. Hoje estou preocupada com o facto de ser feia; amanhã posso parar de pensar para sempre.” Para em seguida se dedicar àquilo que parece um poema de amor, muito provavelmente escrito com Zygmunt na cabeça: “Pensa, amanhã podemos já não existir/ (...) Hoje estás vivo/ Há ainda tempo para sobreviver/ (...) A eternidade não chega para todos os beijos.”
Nota: As citações do diário de Renia Spiegel usadas neste artigo foram traduzidas a partir dos excertos publicados em inglês na revista mensal da Smithsonian Institution. A tradução do original em polaco para inglês foi feita por Anna Blasiak e Marta Dziurosz.