A definição do amor, segundo Júlio e Inês

O amor é ter disponibilidade. E sim, ainda é possível - resumem o psiquiatra Júlio Machado Vaz e a jornalista Inês Meneses, no livro O Amor é. Numa mimetização dos diálogos que mantêm há dez anos na rádio, falam de morte, das fugas, da solidão, do eterno retorno.

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Livro "O amor é" é lançado esta sexta-feira, às 18h30, no El Corte Inglés, de Lisboa Manuel Roberto

São dez conversas em que uma jornalista e um psiquiatra falam de como a solidão ameaça tornar-se uma epidemia pior do que a obesidade, de como se pode estar só dormindo na mesma cama, dos amores felizes, da adolescência, das rupturas, da culpa judaico-cristã, de como se sacrificam os amigos no altar do amor. O mote é sempre dado por uma canção ou por um poema, escalpelizados até à vírgula, numa escolha tão ecléctica que nela cabem nomes como Carlos Tê, Jacques Brel, Fausto, Leonard Cohen e Hanif Kureishi, entre outros. A linguagem dispensa jargão “psi”. Corre rente aos sentimentos, com espaço para gargalhadas sonoras ou o psiquiatra em causa não fosse Júlio Machado Vaz, em relação estável com a comunicadora Inês Meneses, juntos há dez anos no programa radiofónico “O Amor é”.

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São dez conversas em que uma jornalista e um psiquiatra falam de como a solidão ameaça tornar-se uma epidemia pior do que a obesidade, de como se pode estar só dormindo na mesma cama, dos amores felizes, da adolescência, das rupturas, da culpa judaico-cristã, de como se sacrificam os amigos no altar do amor. O mote é sempre dado por uma canção ou por um poema, escalpelizados até à vírgula, numa escolha tão ecléctica que nela cabem nomes como Carlos Tê, Jacques Brel, Fausto, Leonard Cohen e Hanif Kureishi, entre outros. A linguagem dispensa jargão “psi”. Corre rente aos sentimentos, com espaço para gargalhadas sonoras ou o psiquiatra em causa não fosse Júlio Machado Vaz, em relação estável com a comunicadora Inês Meneses, juntos há dez anos no programa radiofónico “O Amor é”.

Apesar da coincidência temática, são inéditas as conversas transcritas no livro O Amor É – Para Memória Futura, lançado esta sexta-feira, com prefácio de Manuel Sobrinho Simões. “Fui ter com o Júlio ao Porto, levava cinco temas – quatro canções e um poema – e ele propôs outros cinco, e fechamo-nos numa sala, durante vários dias. O livro resulta desta longa conversa, partida em dez momentos”, explica Inês Meneses, para quem “pensar o outro é das coisas mais fascinantes da vida”.

Na maior parte das vezes, Inês Meneses fica-se pelo papel de perguntadora, mas os papéis invertem-se, por vezes, ou não se classificasse o interlocutor como “um machista lúcido”, que soma óbvias diferenças geracionais (ele tem 69 anos, ela 47) e cuja amostra pode estar enviesada porque se compõe em boa parte das questões que lhe levam os que o procuram no consultório. “Quando eu, por exemplo, ainda dou uma visão da mulher como a grande cuidadora, a Inês diz ‘atenção, Júlio, as coisas já não são bem assim’, o que me dá muita segurança, porque eu, mesmo não querendo, estou a expressar uma opinião relacionada com a minha geração ou baseada na clínica. Esta diferença etária é muito útil, e leva a um equilíbrio que pode ser difícil, porque a Inês também sabe – e não o questiona – quando lhe digo ‘cuidado com esses discursos muito optimistas porque o duplo padrão esmaeceu mas não desapareceu. Não se deixe enganar pelo paleio politicamente correcto’”, relata Júlio Machado Vaz.

Desta dinâmica entre os dois – que muitos já sentem como “coisa lá de casa” de tanto os ouvirem aos microfones da Antena Um, onde o programa passa em versão curta todos os dias e em versão longa ao fim-de-semana, nascem reflexões sem qualquer pretensão de se tornarem verdades universais. “Aquilo de que gosto nas conversas é que às vezes encontro respostas para perguntas que eu nem sabia que estavam em cima da mesa”, avança Inês Meneses, para quem o livro cumprirá a sua missão se, “no ritmo tão sôfrego e tão veloz em que as pessoas vivem”, conseguir que as pessoas parem e “pensem um bocadinho, a partir de cada frase dos autores das canções ou dos poemas”.

A paixão (segundo Nicolau da Viola)

A letra de Carlos Tê, tornada património nacional pela voz de Rui Veloso, dá o mote para o questionamento adolescente sobre se é ou não possível “amar alguém que não ouve a mesma canção”. “Há duzentos ou trezentos anos, a adolescência como nós a conhecemos não existia”, recua o psiquiatra, para quem a adolescência é a faixa etária “em que as pessoas estão escarranchadas num muro entre aquilo que é a nossa quase total dependência durante a infância e o sonho da vida adulta e da independência”. Esvanece-se aí aquela “certa agressividade em relação ao sexo oposto” – se estivermos a falar de heterossexuais – e começa-se a tactear o terreno em relação ao outro e acusam-se as primeiras dores do amor. Absolutas, claro. “Ele está apaixonadíssimo por aquela rapariga! Desde logo porque sofre. Se não é correspondido, sofre. Se é correspondido, tem inseguranças, sofre. Se os pais lhe moerem a cabeça, sofre. E tudo isto é completamente aceitável porque a sociedade judaico-cristã sempre associou o amor ao sofrimento”, analisa Machado Vaz, para a seguir discorrer sobre os malefícios dos filmes de Fred Astaire e Ginger Rogers na cabeça dos que deles se serviram como ideais de uma certa noção de amor romântico; pouco compaginável, portanto, com as discussões quotidianas sobre quem leva os filhos à escola e os traz para casa.

Mas, antes disso, há tempo para que o verso “a saliva que eu gastei para te mudar” ajude a perorar sobre a forma como os egos conflituam numa relação amorosa. “A tentativa de mudar o outro, muitas vezes verdadeiramente tirânica e imperialista, surge amiúde quando a relação já está estabelecida”, reflecte o psiquiatra, para quem a postura “eu estou aqui, tu se quiseres é que tens de vir para ao pé de mim”, que atravessa toda a canção, dita a morte de muitas relações e para concluir que a concepção de amor enquanto fusão entre duas pessoas “é um exagero” que merece ser substituído por outra hipótese: “Aquela de que a soma de duas pessoas é igual a uma terceira coisa, algo diferente que se forma pela soma de ambos”. Logo, conclui Inês Meneses, uma definição possível de amor seria a disponibilidade. “Ela não teve disponibilidade para ficar – nem meia hora ficou. Mas, na verdade, e antes disso, ele também não teve disponibilidade para aceitar que ela pudesse não gostar da mesma musica que ele. Ele passa uma imagem dela como sendo a intolerante, a que não aceitou o concerto que ele lhe propôs com tanto sacrifício. Mas quando propomos alguma coisa a outra pessoa, além do risco que estamos a correr, estamos a entregar o embrulho bonito. Ele entregou-lhe o embrulho todo bonito, de uma coisa de que ele gostava, e o que ela fez foi dizer que não gostava. E ele não se permitiu dar-lhe um outro presente.”

Os velhos de Jacques Brel

A partir de uma canção de 1967, escrita por um cantor que já sentia o fim do amor ao fim de 38 anos de uma vida em que se manteve casado, apesar das inúmeras amantes, a jornalista e o psiquiatra demoram-se a tentar decifrar esse equilíbrio de trapezista de alguém que, não sendo capaz de abdicar do lugar seguro do casamento – da ligação à terra que este representa –, nunca deixou de ser alguém “permanentemente insatisfeito e com um gosto pela ferida”. E, como pano de fundo, uma certa ideia de velhice, a dificuldade em suportar as dificuldades físicas e psicológicas do passar dos anos. E, como pano do fundo, a tentação sempre inglória em que muitos caem de encarar um filho “como terapêutica para uma relação que coxeia”. “Em geral, isso não resulta”, vaticina Machado Vaz, à laia de aviso.

A triangulação amorosa, primeiro, a propósito de Simone de Beauvoir e de Jean-Paul Sartre e dos respectivos amantes, mas ainda da vida sentimental de Brel, que em 1960, escreve, numa carta à mulher – não é difícil imaginar Júlio Machado Vaz, neste exercício de recitação soletrada, a partir do rádio lá de casa: “Sobretudo, tu merecias mais amor, minha Mie, ao passo que eu só consigo dar-te toda a gentileza e ternura de que sou capaz. Cem vezes esperei de ti uma frase dizendo que preferias deixar-me, mas talvez tu não sejas tão infeliz quanto eu penso, talvez também tu, como eu, não tenhas esta dupla necessidade de arder no amor que mata alguns homens. Mas talvez, hoje em dia, nós estejamos acima, ou melhor, para lá do amor. Cúmplices, gentis, ternos. Porque, enfim, nós devíamos detestar-nos e tu, creio, amas-me muito, e eu, mesmo se pratico aquilo a que os idiotas chamam ‘fraquezas culpáveis’, nunca faço nada que não seja em função de ti e dos nossos”.

Será ainda amor, aquilo que os une, Júlio? “Já perdi a conta das pessoas que ouvi dizerem-me: ‘Sabe que nós agora temos uma relação tão calma que até fico preocupado? Isto ainda será amor?’. As pessoas estranham a mudança e questionam-se se isso não será apenas comodismo. Brel está a afirmar que a paz é uma armadilha, que os amantes já não estão em movimento e que, eventualmente, se estão a tornar simples amigos. E prossegue: protegemos menos os nossos mistérios, damos menos oportunidades ao acaso. Ou seja, está a falar de rotinas. E, no fim, refere: mas a doce guerra não tem fim. Para Brel, há uma enorme nostalgia da ternura, mas também deve existir uma dimensão de combate. Se não houver combate, para ele já não é amor, pois já não consegue aguentar, aborrece-se.”  

A velhice, agora. “Brel considera a velhice uma catástrofe. A velhice é o descalabro. Veja estas imagens que são fortíssimas: ‘Os velhos já não falam… Ou às vezes, apenas com a ponta dos olhos. Mesmo ricos, são pobres… Já não têm ilusões e só lhes resta um coração para dois’”, cita o psiquiatra, para quem a vida “a 200 à hora” do intérprete belga sublima essa omnipresença da iminência da morte e a recusa dos dias povoados por “livros cheios de sono”, pianos fechados, gatos mortos e deambulações limitadas pela distância que vai da cama à janela, da cama ao sofá. Da noção “breliana” de velhice à forma como esta tende a ser vivida nos dias de hoje, descontadas diferenças sócio-económicas, vão séculos de distância: “Passou o tempo em que a palavra ‘sexagenário’ assustava. (…). Pelo meu consultório, todos os dias passa gente que descreve quotidianos gratificantes, seja na saúde, ou no amor. (…) Os mais velhos namoram, casam, divorciam-se, pagam o preço, recebem os dividendos. Resistem a uma sociedade que tende a ver sexo e juventude como sinónimos e envolvem-se em relações com a mesma naturalidade que reservam às boleias dadas aos netos.”

Entre a velhice a adolescência, sobram páginas para responder ao SOS de Rui Reininho e dos seus “Homens temporariamente sós”, pretexto para se encarar a forma como a sociedade destigmatizou a solidão voluntária, e de como o próprio mercado imobiliário se adaptou a este segmento. Há tempo para exercícios de semiótica de frases como esta do Ruy Belo quando diz “No teu amor por mim há uma rua que começa”. E depois disto, pouco apetece acrescentar, a não ser que Júlio Machado Vaz e Inês Meneses podem ser interpelados esta sexta-feira, no El Corte Inglés de Lisboa, no lançamento do livro, às 18h30, e que o rendez vous se repete no dia 24, pelas 17h, na Biblioteca Almeida Garret, no Porto.