Pode seguir?

A mobilidade é condição de acesso à saúde, à educação, às demais prestações sociais do Estado; pressuposto de todas as políticas públicas, deve colmatar as falhas destas e procurar que a mobilidade espacial não precluda a mobilidade social.

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Attilio Fiumarella

Em 1999, descia a Avenida da Boavista de eléctrico, ia ver o mar na hora do almoço. Em 2001, quando começava o meu trabalho, na Rua de Ceuta (onde acabariam de rebentar o túnel), fui também trabalhar para Lisboa. Chegar a Campanhã era uma aventura.

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Em 1999, descia a Avenida da Boavista de eléctrico, ia ver o mar na hora do almoço. Em 2001, quando começava o meu trabalho, na Rua de Ceuta (onde acabariam de rebentar o túnel), fui também trabalhar para Lisboa. Chegar a Campanhã era uma aventura.

O trabalho em gestão urbana pediu a teoria que enquadrasse a prática, ou a fizesse questionar, e fui fazer uma pós-graduação (no fim, questionei ambas). Triangulava entre Porto, Coimbra e Lisboa e o início e o fim da viagem só não eram problema em Lisboa, ainda que com interfaces humanamente falhados, arquitectónica e urbanamente tristes.

Com mais trabalho, rendi-me a andar com a roda no ar. Os pais deram-me um carro a diesel, com 130.000 quilómetros, não imaginando que fizesse outros tantos. Viajava depois do último comboio e de trabalhar, amiúde, mais de 12 horas. Ia ver pais, avós, amigos, cheirar o sargaço na Apúlia. Com o carro, abarcava um terço do país. Mas deixei de debulhar três livros em oito dias, além dos jornais. Deixei a conversa dos diferentes comboios: deputados no alfa-pendular, militares, trabalhadores da CP, estudantes e emigrantes ilegais, no inter-cidades e no inter-regional. Custou-me também não dormir: viajando de comboio, completava o sono que faltara na noite.

Acabei a estudar mobilidade num doutoramento. Deparei-me com o facto de um carro (T0 em movimento?) ser visto como uma redoma, que serve para pensar em todas as amarguras e resolvê-las. Quem vive ao volante julga mandar na sua vida, pelo domínio aparente que essa liberdade de movimento confere — poder, a qualquer hora, ir a todo o lado. A dada altura, pertence mais ao lugar em movimento do que à origem ou ao destino. Conduzir é não ler, não escrever, ouvir apenas a sua voz, a do auricular ou a da telefonia. A viagem de carro confere a quase ubiquidade, mas leva o sono, o rendimento adicional conferido por essa mobilidade e traz a indisponibilidade para o que quer que seja no fim. Na viagem solitária, perde-se a percepção da realidade, dada pelo confronto temporário e contido com o outro, com o que isso implica de confiança e de aceitação, que os transportes colectivos, espaços de confinamento, com códigos escritos e silentes de actuação, são lugares de debate, cumplicidade e levantamento — de urbanidade e de cidadania, portanto. Tal como as ruas de Ruy Belo, são os sítios “…onde passamos pelos outros/mas passamos principalmente por nós”.

Questiono, pois, a aceitação do investimento privado no transporte individual, a par de mais um quarto de volta (desastrado e milionário) do Metro do Porto. Aquele investimento, de lucro privado, tem custos públicos: congestionamento das vias, aumento do tempo de viagem do transporte colectivo, emissões de carbono. Em desconformidade com o bom senso e a lei, aprovam-se, quase secretamente, projectos que contradizem as políticas de mobilidade apregoadas. Debitam estes projectos para eixos estruturantes, prevendo sérias dotações de estacionamento, sem estudos de impacto e planos de mobilidade: Campo 24 de Agosto, Bonjardim, 5 de Outubro, Amial, Arrábida. Quem promove investimentos privados desta envergadura devia ter noção da entropia que gera; e quem aprecia, ciente da entropia de todos, deveria recusar. Articular mobilidade-habitação-emprego é de elementar prudência e todos estes empreendimentos falham-no clamorosamente.

A mobilidade é condição de acesso à saúde, à educação, às demais prestações sociais do Estado; pressuposto de todas as políticas públicas, deve colmatar as falhas destas e procurar que a mobilidade espacial não precluda a mobilidade social.

Nos retratos em estúdio, dizia-se “Stand still, keep going”, expressão que serviu de mote a uma exposição de Robert Frank. No cartaz, havia duas fotografias da mudança de posição do carreto de uma máquina de escrever – parado, no momento do arranque, em movimento, no percurso da escrita. Paremos, pois, para podermos continuar e começarmos então, como ensina Molder — que isto assim não pode seguir.