Touradas: em liberdade, as culturas evoluem e as tradições humanizam-se

Não podemos dizer-nos humanistas e fechar os olhos ao sofrimento animal que está presente numa tourada.

Foto
Jon Nazca/Reuters

“A tauromaquia não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização e manteremos como está." A discussão do Orçamento do Estado 2019 ficou marcada por estas declarações da ministra da Cultura, Graça Fonseca, a propósito da decisão do Governo relativamente à taxa do IVA fixada em 13% para os espectáculos tauromáquicos, não acompanhando a descida prevista para os 6% dos espectáculos verdadeiramente culturais de canto, dança, música, teatro e circo.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

“A tauromaquia não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização e manteremos como está." A discussão do Orçamento do Estado 2019 ficou marcada por estas declarações da ministra da Cultura, Graça Fonseca, a propósito da decisão do Governo relativamente à taxa do IVA fixada em 13% para os espectáculos tauromáquicos, não acompanhando a descida prevista para os 6% dos espectáculos verdadeiramente culturais de canto, dança, música, teatro e circo.

As palavras da ministra e a conquista do PAN nesta matéria provocaram a reacção de Manuel Alegre e de outros conservadores socialistas que, de imediato, saíram em defesa do sector tauromáquico (e da caça), dizendo que "é este tipo de intolerâncias [como as touradas] que cria os Bolsonaros". E como se já não fosse suficientemente mau conotar uma medida da mais elementar justiça a regimes ditatoriais, Manuel Alegre vem, numa carta aberta a António Costa, invocar os valores da liberdade, da tolerância e da opinião do outro para sustentar a sua posição.

Vamos, portanto, deixar prevalecer o gosto de alguns (cada vez menos) mesmo que esse gosto se traduza em torturar e matar animais? E se o gosto fosse torturar outros animais como cães ou gatos? E se o gosto fosse torturar e matar pessoas, também era válido? Nada poderia ser mais despropositado e falacioso.

Os valores do século XXI não se coadunam com esta visão dos animais e do mundo, em que se acredita ser possível contrapor uma “cultura do gosto” a uma cultura de não-violência. Não se pode confundir liberdade de “gosto” ou de “opinião”, com a liberdade para permitirmos manifestações colectivas que se traduzem num culto ou numa apologia da violência, aplaudida e financiada pelo dinheiro de todas e todos nós.

Não podemos dizer-nos humanistas e fechar os olhos ao sofrimento animal que está presente numa tourada.

Mas não deixa de ser curioso que — não sendo de agora que se tem avançado nestas matérias, ainda que timidamente — só agora tenham saído em tão beligerante defesa do sector, precisamente quando se mexeu nos interesses económicos que têm alimentado esta actividade, qual balão de oxigénio.

Não me recordo de terem pedido a demissão de qualquer responsável político quando se alterou o Regulamento do Espectáculo Tauromáquico, que passou a impor restrições à actividade, desde logo por se reconhecer que a salvaguarda do interesse público passa também pela defesa do bem-estar animal, ou quando se aprovou o estatuto jurídico próprio dos animais cujas consequências estão ainda por perceber, inclusive ao nível da limitação na realização destes espectáculos.

Recordo ainda que foi precisamente António Costa quem promoveu a criação da figura do Provedor Municipal dos Animais de Lisboa, que tem por missão zelar pelos direitos e interesses dos animais. E que, aquando da cerimónia da minha tomada de posse naquelas funções, referiu ser tempo de questionarmos certas tradições como as touradas.

Mas talvez não estejamos a falar de cultura ou tradição, antes de interesses económicos de meia dúzia de agentes do sector, que procuram dividir a opinião pública com estas manobras de distracção. Hoje foi o fim da isenção do IVA, amanhã poderá ser a avultada quantia que anualmente serve para financiar esta actividade e que ascende a largos milhões de euros. Um dos casos mais flagrantes é a isenção de IMI que a Praça de Touros do Campo Pequeno beneficia no valor de nove milhões de euros ao ano.

Não me espanta, por isso, que esta ala mais conservadora, felizmente já ultrapassada pelo sentir social da actualidade e pelas gerações futuras dos seus próprios partidos, se agite tanto. Estamos a mexer com interesses que até aqui não eram questionados, mesmo sacrificando valores tão basilares quanto o respeito pelo bem-estar animal.

Essa tem sido, aliás, a estratégia de distracção da indústria em declínio das touradas, que prontamente causa ruído sempre que algum responsável político ousa contestar o seu divertimento marialva.

Tal como nós, há cada vez mais pessoas a acalentar o sonho, cada vez mais real, de que um dia seremos uma sociedade verdadeiramente livre e compassiva no que respeita aos direitos dos animais. Uma sociedade onde a palavra liberdade não assenta no pressuposto de que para gáudio de alguns se pode legitimamente provocar tamanho sofrimento e barbárie a um animal na arena. A nossa liberdade termina aqui, onde começa o sofrimento dos outros, sejam pessoas ou animais.

Até lá assistimos, com alguma ironia, ao estrebuchar do sector tauromáquico, que agora se manifesta e protesta tentando evitar o inevitável: a morte anunciada das touradas.