O cinema português sedento de se parecer com o real
A vertigem das imagens no mundo pós-Internet provocou uma desorientação. De certa forma, aquilo que a televisão, o YouTube ou as redes sociais nos dão a ver são imagens fortes de um real muitas vezes impregnado de discursos contraditórios em que confluiu um tempo já denominado de pós-verdade (termo algo equívoco, mas que, pelo menos, assinala o furacão de imagens desordenadas que caracteriza o nosso tempo). Esta vertigem do real, em que concorrem telejornais, vídeos virais ou programas de reality tv, flui para uma nova ordem visual do mundo contemporâneo que não podia deixar de contaminar o cinema. Pretendemos aqui assinalar como isso se evidenciou no recente cinema português.
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A vertigem das imagens no mundo pós-Internet provocou uma desorientação. De certa forma, aquilo que a televisão, o YouTube ou as redes sociais nos dão a ver são imagens fortes de um real muitas vezes impregnado de discursos contraditórios em que confluiu um tempo já denominado de pós-verdade (termo algo equívoco, mas que, pelo menos, assinala o furacão de imagens desordenadas que caracteriza o nosso tempo). Esta vertigem do real, em que concorrem telejornais, vídeos virais ou programas de reality tv, flui para uma nova ordem visual do mundo contemporâneo que não podia deixar de contaminar o cinema. Pretendemos aqui assinalar como isso se evidenciou no recente cinema português.
Sendo um dos exemplos mais marcantes do cinema de autor no panorama contemporâneo, o cinema português tem, como todos sabemos, ganho particular visibilidade no contexto internacional, estando presente nos grandes festivais e sendo valorizado como um cinema nacional de características cosmopolitas. Mesmo que se exponha, nesses fóruns, como um cinema nacional, as suas características formais há muito que deixaram de depender de uma singularidade própria, sobretudo pela diversidade de vozes que o constitui. No entanto, tem havido uma particular adesão dos cineastas portugueses a uma realidade quase “mediática” de Portugal. É como se os nossos autores não pudessem escapar a esta vertigem de que falamos.
A verdade é que talvez não tivesse sido possível de outra forma, precisamente porque o país viveu a última década intensamente. Para o bem e para o mal, essa intensidade foi importante para impor uma agenda do real no cinema português. Uma agenda marcada politicamente por uma das maiores crises económicas que o país viveu. O “cinema da crise” foi um cinema agarrado às circunstâncias sociais; mas foi também um cinema inventivo, procurando, como falava Godard, “fazer filmes politicamente”. O empreendimento desmedido de Miguel Gomes, com As Mil e Uma Noites, dividido em três volumes, é disso um exemplo supremo. Combinando as notícias investigadas por jornalistas, numa clara aproximação ao real imediato, com uma ficcionalização surrealista, inventava histórias tão próximas do quotidiano e, ao mesmo tempo, tão absurdamente expostas. A grandiosa cena do tribunal, no segundo volume, parecia uma colagem de recortes de notícias de “sociedade” misturadas com o fino trato do cinema de autor.
Deste filme agregador, maior do que si mesmo, saíram outras pontas soltas: São Jorge, de Marco Martins – num terreno mais linear, centrado numa violência espontânea que as sociedades em crise rapidamente espoletam; Fátima, de João Canijo – cujo percurso já adivinhava esta obsessão com a reprodução das práticas culturais portuguesas; ou A Fábrica de Nada, de Pedro Pinho – outro OVNI, desmedido, onde cabe o documentário, o panfleto político e o musical. O filme foi talvez o ponto de chegada de um cinema a reagir à crise, muitas vezes com humor, outras com violência, mas abrindo o retrato àqueles que, na margem, mais sofreram com esse tempo. A Fábrica de Nada era também a ponta de um icebergue: o do cinema documental português, nas suas diversas hibridizações, que teriam na produtora Terratreme o seu programa “político” mais claro.
Cinema de crise – de Portugal e do mundo – o cinema português viveu esta década com fulgor criativo e com desânimo por uma certa deriva neo-liberal. Viveu-o e consumiu-o em diálogo permanente com a vertigem das imagens mediáticas. Neste contexto, Diamantino, a primeira longa-metragem de Gabriel Abrantes, é, ao mesmo tempo, opositor e continuador destas derivas do cinema português. O cinema de Abrantes sempre fugiu da marca “nacional”: nos seus filmes, aspectos maiores da contemporaneidade – o mundo pós-colonial ou as problemáticas de género – colocam-no numa pós-modernidade alheia à tradição autoral do cinema português. Com este seu último filme, esse aspecto reforça-se, mas Abrantes não resiste a tocar a realidade “jornalística” portuguesa, fazendo de Diamantino uma adaptação livre de Cristiano Ronaldo, o “nosso” ícone pop e o rei das imagens. A aproximação de uma personagem fictícia e de uma real é tão evidente que o filme se torna uma variação da representação mediática do jogador. Tal como com Ronaldo, Diamantino vive numa teia económica montada por pessoas próximas e um dilema existencial sobre a sua excepcionalidade. Claro que Abrantes constrói para depois destruir, lançando-se numa intricada narrativa em que o humor trágico se apodera desta figura nacional. Para Abrantes, o cinema pós-crise é um cinema letal, um cinema que quer desconstruir o real, apesar de se apoiar nele. Um cinema que vem depois do real.
Entre o real e as suas dimensões várias, estes filmes – de Gomes a Abrantes – vivem já um mundo diferente: um mundo em que as imagens já não parecem o que são. Em diálogo com essas imagens, o cinema passou a ser uma coisa outra, passou também a ser vertigem, excesso, sedenta de se parecer com o real.
Daniel Ribas é professor e programador