O Parlamento Europeu tem "cada vez mais antieuropeus na bancada"
“Há uma falta de pedagogia dos governos face às vantagens da Europa”, diz o diplomata que se confessa também “muito céptico” sobre a aplicação do Tratado de Lisboa aos casos da Polónia e Hungria: as penalizações contra a violação dos valores europeus foram pensadas para outros tempos e “são dificilmente adaptáveis”.
Francisco Seixas da Costa, o diplomata que fez boa parte da carreira em organizações internacionais multilaterais, foi secretário de Estado dos Assuntos Europeus entre 1995 e 2001. Nesse período, representou Portugal nas negociações dos tratados de Amesterdão e Nice. Foi já como observador que assistiu ao desfecho do Tratado de Lisboa, com o qual, diz, "a Europa iludiu-se a si própria".
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Francisco Seixas da Costa, o diplomata que fez boa parte da carreira em organizações internacionais multilaterais, foi secretário de Estado dos Assuntos Europeus entre 1995 e 2001. Nesse período, representou Portugal nas negociações dos tratados de Amesterdão e Nice. Foi já como observador que assistiu ao desfecho do Tratado de Lisboa, com o qual, diz, "a Europa iludiu-se a si própria".
Esteve nas negociações do Tratado de Nice que subiu o número de eurodeputados após o alargamento a 27 e reforçou os seus poderes. Quais as dificuldades dessa negociação?
Os alargamentos da União Europeia (UE) levaram quase sempre à mudança dos tratados, a mais neutral foi a suscitada pela entrada de Portugal e Espanha. O alargamento aos países do Leste, um imperativo de natureza política e estratégica, levou a uma reflexão na União para alterar os tratados e adaptá-los às novas exigências. Os que se habituaram numa UE a 12 ou a 15 a ter o poder de decisão essencial não quiseram que numa União largada essa capacidade fosse fortemente afectada. Muitas das alterações dos tratados de Nice e de Lisboa - antes houve a tentativa de Tratado Constitucional - têm a ver com as relações de poder e a necessidade de alguns países justificarem às suas opiniões públicas que o facto de serem contribuintes líquidos e de terem um peso demográfico grande determinava mais poder no processo decisório. Por isso, há países que pela introdução do novo mecanismo de decisão do Tratado de Lisboa procuraram garantir que em cada decisão de Bruxelas havia um número mínimo de países representados, 55%, e que as decisões correspondiam, no mínimo, a 62% da população.
A negociação foi difícil?
Foi difícil porque pela primeira vez traz uma realidade nova na União, que é a distinção. No passado, a França e a Alemanha tiveram a mesma posição em número de votos, de eurodeputados e de comissários. Em Nice, tudo muda. A Alemanha passa a ter mais eurodeputados que a França, o factor demográfico passar a ter mais importância e reforça o país mais populoso, a Alemanha, o que foi difícil para os franceses.
O Tratado Constitucional era uma compensação para Paris?
Era a vitória de uma certa Europa política, era um avanço para a unidade política, que não era federalista no sentido tradicional, mas traduzia um salto qualitativo de natureza quase semântica no processo europeu. O Tratado Constitucional não era muito diferente do que acabou por ser o Tratado de Lisboa, mas o facto de aparecer como Constitucional foi lido em muitos países como um salto em frente que criava uma subordinação demasiado grande das entidades nacionais face às europeias.
Um passo maior que a perna?
Claramente. A prova foi que a primeira rejeição é na Holanda, seguida da França e o processo parou. Ironicamente podemos dizer que, se a primeira rejeição tivesse sido em Portugal, seguida da Irlanda, as coisas teriam sido diferentes.
O interessante é que a Europa consegue este milagre, o de se iludir a si própria, isto é renegociar um tratado, o Tratado de Lisboa, que no fundo não é muito diferente do anterior, o Constitucional. Em primeiro lugar, a criação de um presidente do Conselho Europeu que evita que seja o primeiro-ministro do país com a presidência [de turno] a garantir em termos funcionais por seis meses essa mesma presidência. Criou-se um Alto Representante para a Política Externa e de Segurança que passou a vice-presidente da Comissão Europeia. Ao sê-lo, há pela primeira vez na história da UE, uma ligação entre duas instituições que em princípio são separadas. O facto de o Alto Representante ser do Conselho de Ministros e ao mesmo tempo vice-presidente da Comissão permite maior coerência entre as funções das duas entidades.
Em Lisboa, houve também o reforço dos poderes do Parlamento Europeu. Pode-se ir mais longe?
Aumentaram os poderes de co-decisão, os poderes do Conselho com o Parlamento. Houve necessidade de equilibrar o que sempre se chamou défice democrático. Convém lembrar que, quando começou, o Parlamento Europeu era constituído por parlamentares que vinham dos parlamentos nacionais e só depois passam a ser eleitos. À medida que ganha poderes, o Parlamento Europeu deixa de ser apenas um órgão declaratório, passa a decisório, e cada vez mais os Estados têm cuidado com quem enviam para o Parlamento Europeu.
Hoje, o Parlamento Europeu ganhou poderes muito importantes no Orçamento e passou a ter um papel mais decisivo nas áreas legislativas em que o Conselho decidia por maioria qualificada. O aumento dos processos de co-decisão, a relação entre o Parlamento e o Conselho foi alargada a mais áreas, o que significa que no Parlamento Europeu os deputados passam a ter um acesso e poder em sectores e áreas temáticas mais importantes. Os lobbies europeus - lobbies no sentido positivo - passaram a ter um papel junto dos deputados, o que dá mais protagonismo e força ao Parlamento e maior legitimidade às decisões da União. E retira ao Conselho o ónus da decisão, que é partilhada. O que levanta outro problema que o Tratado de Lisboa procurou resolver, o papel dos parlamentos nacionais. No Tratado de Lisboa, estes recebem alguma recuperação de poderes segundo o princípio da subsidiariedade e a capacidade de rever algumas decisões europeias. Não sei se utilizaram estas capacidades, provavelmente foi algo cosmético.
Porquê cosmético?
Sempre foi tensa a relação dos parlamentos nacionais com o Parlamento Europeu, na ideia de quanto mais reforçarmos este menos poderes têm os nacionais. Há parlamentos que sentem o desapossar dos poderes pela Europa de forma dramática, o caso mais evidente é o britânico.
É aqui que está o motivo de a opinião pública olhar de soslaio para o Parlamento Europeu, apesar de consagrada a petição pública para propostas legislativas?
Julgo que o princípio da petição de um milhão de cidadãos fazer uma proposta à Comissão nunca foi utilizado. Nesta decisão do Tratado de Lisboa há um aspecto do politicamente correcto. Não há uma opinião pública europeia, mas 28, as nacionais mobilizadas por uma agenda de interesses e preocupações diversas. Com o alargamento dos últimos anos, como vimos nas crises norte-sul em matéria económico-financeira, e leste-oeste com os refugiados, esta diversidade que é rica é também uma fraqueza para a identidade da UE.
Um alemão sabe que o seu governo é sempre relevante no aspecto europeu, pelo que há uma hierarquia subliminar que dita uma diversa mobilização para as eleições europeias. O cidadão português sente que a sua voz, com 20 deputados – os alemães têm 90 -, é menos importante, o que o leva à abstenção.
Qual é a forma de resolver a situação?
A realidade será sempre esta, mas há uma falta de pedagogia dos governos face às vantagens da Europa. Os governos quase sempre procuram que a UE seja o bode expiatório do que corre mal e que as suas decisões sejam a glória nacional. A Europa passa da Europa das soluções a ser a dos problemas, o que é muito complicado de reverter. Mesmo em Portugal, com postura favorável à vida europeia, há uma degradação objectiva, por um conjunto variado de factores. Um deles é que as novas gerações não têm ideia do que era Portugal antes de estarmos na União.
Sendo o Parlamento a bancada de excelência do multilateralismo, que efeitos têm as actuais críticas à multilateralidade?
A grande perversão que afecta o Parlamento Europeu, e uma ironia democrática, é de ter cada vez mais antieuropeus na bancada. A democracia tem esta fragilidade, a de abrir caminho aos seus inimigos, mas não podemos pôr só no parlamento quem pensa e está a favor da Europa. Nos últimos anos, devido a uma certa má vontade suscitada por políticas europeias, aumentou o número de deputados eurocépticos e eurocríticos. "Europrudentes" como diriam alguns em Portugal.
Somado a isto, há o facto de alguns governos nacionais terem uma atitude extremamente reticente face ao projecto europeu, que vão ter direito, após as eleições europeias e a substituição da Comissão, a nomear um comissário que pode ir com ideias antieuropeias. Estas ideias, somadas às de outros comissários da mesma linha, ainda que minoritários mas com eco nos deputados eurocépticos, leva a uma espécie de quinta coluna que vai introduzir clivagens hoje inexistentes. Por isso, estas eleições europeias são das mais importantes porque estamos pela primeira vez com uma União muito diversificada, com sensibilidades diferenciadas, algumas das quais quase no limite da coerência dos princípios que esses países subscreveram quando entraram. Arriscamo-nos que essa diversidade possa bloquear o funcionamento da União.
Depois do "Brexit" é cordial a revisão prevista do número de eurodeputados por país?
Haverá um rateio, cuja lógica foi feita em Nice. A discussão agora estará a ser feita de forma mais racional, mas seguramente quem vai ganhar com a repartição vão ser os maiores países que, também é verdade, numa lógica relativa estão desprotegidos. Isto é, o seu número de deputados não corresponde necessária e automaticamente à sua população. Não sei se mais um ou menos um deputado é relevante ao nível das decisões, mas é simbólico e na UE, onde estamos a transferir para uma gestão comum um conjunto de valores de soberania, o simbolismo é importante para além do valor objectivo do processo decisório. E os Estados mais pequenos e pobres, que estão ligeiramente distanciados do padrão médio de interesses do projecto legislativo em Bruxelas, necessitam de mostrar às suas opiniões públicas que não estão desmunidos de influência sobre o projecto europeu.
Os eurodeputados aprovaram duas propostas para a aplicação do artigo 7.º do Tratado de Lisboa à Hungria e Polónia por quebra dos valores europeus. Que efeitos práticos terá isso?E, senão tiver, o que acontece?
É uma boa questão que só o futuro vai responder. Vejo com cepticismo a possibilidade de esses mecanismos irem até ao fim. Sabemos que a comunidade é uma comunidade de interesses, por vezes para além dos princípios, e que o isolamento de um país pode configurar a afectação de interesses, por exemplo, de natureza económica. Tenho a sensação de que a UE, por vezes, dá mais relevo e importância ao bom relacionamento e que será capaz de flexibilizar políticas para garantir esse bom entendimento.
Estou muito céptico sobre a aplicação do artigo 7.º do Tratado de Lisboa. Foi em Nice que, durante a presidência portuguesa e com o caso austríaco em fundo, que introduzimos esta norma para contrariar a deriva de algum Estado-membro. Pensávamos que eventualmente um Estado pudesse sair dos carris, só que hoje há vários a saírem dos carris e os mecanismos previstos no Tratado de Lisboa são dificilmente adaptáveis. Há países que, mesmo que não tenham saído dos carris, estão pouco disponíveis a associarem-se a uma medida punitiva que, mais tarde, pela sua própria evolução interna que não podem prever, lhes possa a vir a ser aplicada. A criação de um precedente pode-lhes ser negativa.
Se a comunidade de interesses está acima dos princípios, o que resta da União?
A União fez uma opção estratégica que teve o seu preço. Quando foi criada funcionava apenas na base de algumas questões económicas e a sua homogeneidade política e ideológica era muito grande. A entrada de Portugal, Espanha e Grécia foi neutral face a estes equilíbrios. E foram muito compensados com fundos comunitários que melhoraram a paisagem, os bolsos e tiveram impacto na mudança das mentalidades, porque na altura a União era um clube de países ricos. O alargamento à Áustria, Suécia e Finlândia, reforçou o pilar neutralista no sentido de segurança e defesa. Depois entraram os países do Leste, mais interessados em serem membros da NATO do que da UE, têm mais gratidão aos Estados Unidos do que a Bruxelas, e trouxeram para a União todas as suas idiossincrasias, os seus problemas internos e as suas minorias. A UE quando fez este alargamento não teve a noção da "Babilónia" que aí vinha. Na altura tínhamos a noção de que a ânsia dos países do centro e leste europeu se tornarem membros da União era tal que, para eles, era uma espécie de colonização política do leste. Também trouxeram outra questão difícil de resolver. Ao longo de décadas esses países tinham visto as suas soberanias tuteladas por Moscovo, pelo que tornou-se muito difícil pô-las em partilha na União Europeia, quando as tinham acabado de recuperar. Por isso, há um esforço de repatriação da soberania, que se vê claramente na Polónia.
O mundo actual, entre a financeirização da economia e o capitalismo autoritário asiático, retira espaço ao discurso dos valores europeus?
Hoje fala-se de 80% de economia e 20% do resto, a União vive marcada por um discurso económico-financeiro limite. Mais do que isso, dividida por esse discurso, como se viu durante a crise de 2007. Quando se fala de valores dá-me a ideia que se lhes dedica uns minutos escassos. Habituámo-nos na UE, com diferenciações nacionais em função das constituições, a um certo modelo liberal e democrático assente em princípios que os Estados-membros se comprometiam a subscrever nos critérios de Copenhaga que estão na Carta dos Direitos Fundamentais e plasmados nos tratados. Hoje verificamos que certos governos europeus estão polarizados e seduzidos por modelos de natureza autoritária, de suposta eficácia na governação, que os transforma em democraturas, democracias que têm qualquer coisa de ditaduras. Pensávamos que isto só ocorria em países como a Turquia, Singapura ou as Filipinas, nunca na UE, mas não deixa de a afectar e a alguns governos europeus que se sentem com as mãos suficientemente livres para tentarem algumas aventuras.
Até onde pode resistir a Europa?
O teste são as eleições europeias. Estamos sem liderança europeia, o governo alemão que era fundamental para a direcção europeia está em crescentes fragilidades internas. O francês está em situação difícil e vivemos um tempo dramático em Itália, que durante anos foi elemento garantido no processo europeu e que tem derivas que não só põem em causa os equilíbrios económico e financeiros europeus como os princípios básicos que pensávamos adquiridos em matéria de respeitos de direitos humanos e de minorias. Estamos em tempos muito complexos, é preciso ser muito optimista para ser optimista.
A frase sobre os modelos de democraturas foi corrigida às 12h30.